26º Domingo do Tempo Comum
- 26º Domingo do Tempo Comum
- Textos bíblicos deste domingo
- Reflexões do exegeta Frei Ludovico Garmus
- Todos são chamados a trabalhar no Reino
- Um sim que seja sim
- O risco de instalar-nos na religião
- Formalismo religioso e verdadeiro serviço a Deus
- Reflexão em vídeo de Frei Gustavo Medella
26º Domingo do Tempo Comum
Basta que eu seja quem sou
Frei Gustavo Medella
Em sua Encíclica Evangelii Gaudium, o Papa Francisco dedica cinco parágrafos (93-37) ao tema do “Mundanismo Espiritual”, que ele define como a atitude de se esconder em aparências de religiosidade para buscar, em vez da glória de Deus, a glória e o bem-estar pessoais. Traz consigo uma hipocrisia entranhada que perverte os valores cristãos e os coloca a serviço de um discurso oportunista, interesseiro e inconsistente, que muda de acordo com as circunstâncias e as conveniências.
Quem abraça este modo ser, escolhe ocultar seus preconceitos e perversidades sob a capa de uma aparente piedade. Geralmente se apresenta como um defensor ferrenho de valores como a fé, a pátria e a família. No entanto, no modo de agir, mostra-se em total incoerência e desconexão com as verdades que procura apresentar pelo discurso. Sobre estes, Jesus foi firme em afirmar: “Nem todo aquele diz ‘Senhor, Senhor’ estrará no Reino dos Céus” (Mt 7,21) e “os cobradores de impostos e as prostitutas vos precedem no Reino de Deus” (Mt 21,31b). Tudo porque se julgam autossuficientes e preferem apostar num simplismo barato que divide o mundo entre bons e maus, ficando eles, é claro, no lado luminoso da história. Prescindem, inclusive, da Graça de Deus.
A proposta de Jesus, por sua vez, segue na direção contrária. Ele, embora Filho de Deus, não se recusou a participar das entranhas da miséria humana. Mesmo sem pecado, viveu cercado de fraquezas e compadeceu-se daqueles que as experimentavam. Agindo assim, ensina a seus filhos e filhas o itinerário da libertação percorrido na transparência de quem se reconhece pecador e se dispõe a vencer o próprio pecado, contrariando inclusive as próprias vontades mais imediatas, a exemplo do primeiro filho da parábola contada por Jesus no Evangelho deste 26º Domingo do Tempo Comum (Mt 21,28-32).
No seguimento de Jesus, ninguém precisa se preocupar em ser perfeito ou em ser “o melhor”. Basta contentar-se em ser quem é, confiando teimosamente na Misericórdia infinita de Deus.
FREI GUSTAVO MEDELLA, OFM, é o atual Vigário Provincial e Secretário para a Evangelização da Província Franciscana da Imaculada Conceição. Fez a profissão solene na Ordem dos Frades Menores em 2010 e foi ordenado presbítero em 2 de julho de 2011.
Imagem ilustrativa de Frei Fábio Melo Vasconcelos
Textos bíblicos deste domingo
Primeira Leitura: Ez 18,25-28
Assim diz o Senhor: 25“Vós andais dizendo: ‘A conduta do Senhor não é correta’. Ouvi, vós da casa de Israel: É a minha conduta que não é correta, ou antes é a vossa conduta que não é correta?
26Quando um justo se desvia da justiça, pratica o mal e morre, é por causa do mal praticado que ele morre. 27Quando um ímpio se arrepende da maldade que praticou e observa o direito e a justiça, conserva a própria vida. 28Arrependendo-se de todos os seus pecados, com certeza viverá, não morrerá”.
Salmo Responsorial: Sl 24
— Recordai, Senhor meu Deus,/ vossa ternura e compaixão.
— Recordai, Senhor meu Deus,/ vossa ternura e compaixão.
— Mostrai-me, ó Senhor, vossos caminhos,/ e fazei-me conhecer a vossa estrada!/ Vossa verdade me oriente e me conduza,/ porque sois o Deus da minha salvação;/ em vós espero, ó Senhor, todos os dias!
— Recordai, Senhor meu Deus, vossa ternura/ e a vossa compaixão que são eternas!/ Não recordeis os meus pecados quando jovem,/ nem vos lembreis de minhas faltas e delitos!/ De mim lembrai-vos, porque sois misericórdia/ e sois bondade sem limites, ó Senhor!
— O Senhor é piedade e retidão,/ e reconduz ao bom caminho os pecadores./ Ele dirige os humildes na justiça,/ e aos pobres ele ensina o seu caminho.
Segunda Leitura: Fl 2,1-11
Irmãos: 1Se existe consolação na vida em Cristo, se existe alento no mútuo amor, se existe comunhão no Espírito, se existe ternura e compaixão, 2tornai então completa a minha alegria: aspirai à mesma coisa, unidos no mesmo amor; vivei em harmonia, procurando a unidade. 3Nada façais por competição ou vanglória, mas, com humildade, cada um julgue que o outro é mais importante, 4e não cuide somente do que é seu, mas também do que é do outro. 5Tende entre vós o mesmo sentimento que existe em Cristo Jesus.
6Jesus Cristo, existindo em condição divina, não fez do ser igual a Deus uma usurpação, 7mas esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e tornando-se igual aos homens. Encontrado com aspecto humano, 8humilhou-se a si mesmo, fazendo-se obediente até à morte, e morte de cruz. 9Por isso, Deus o exaltou acima de tudo e lhe deu o Nome que está acima de todo nome.
10Assim, ao nome de Jesus, todo joelho se dobre no céu, na terra e abaixo da terra, 11e toda língua proclame: “Jesus Cristo é o Senhor!” — para a glória de Deus Pai.
Os dois filhos
Evangelho: Mt 21,28-32
-* 28 «O que vocês acham disto? Certo homem tinha dois filhos. Ele foi ao mais velho, e disse: ‘Filho, vá trabalhar hoje na vinha’. 29 O filho respondeu: ‘Não quero’. Mas depois arrependeu-se, e foi. 30 O pai dirigiu-se ao outro filho, e disse a mesma coisa. Esse respondeu: ‘Sim, senhor, eu vou’. Mas não foi. 31 Qual dos dois fez a vontade do pai?» Os chefes dos sacerdotes e os anciãos do povo responderam: «O filho mais velho.» Então Jesus lhes disse: «Pois eu garanto a vocês: os cobradores de impostos e as prostitutas vão entrar antes de vocês no Reino do Céu. 32 Porque João veio até vocês para mostrar o caminho da justiça, e vocês não acreditaram nele. Os cobradores de impostos e as prostitutas acreditaram nele. Vocês, porém, mesmo vendo isso, não se arrependeram para acreditar nele.»
* 28-32: O filho mais velho é figura dos pecadores públicos que se convertem à justiça anunciada por João Batista e por Jesus. O filho mais novo é figura dos chefes do povo, que se consideram justos e não se convertem.
Bíblia Sagrada – Edição Pastoral
Reflexões do exegeta Frei Ludovico Garmus
26º Domingo do Tempo Comum
Oração: “Ó Deus, que mostrais vosso poder sobretudo no perdão e na misericórdia, derramai sempre em nós a vossa graça, para que, caminhando ao encontro das vossas promessas, alcancemos os bens que nos reservais”.
- Primeira leitura: Ez 18,25-28
Quando o ímpio se arrepende da maldade que praticou,
Conserva a própria vida.
Ezequiel foi o único profeta que atuou entre os judeus exilados na Babilônia. Fez parte do primeiro grupo de exilados, em 597 a.C. Dez anos depois, quando Jerusalém foi destruída, novos grupos de judeus foram levados para Babilônia, engrossando a colônia de exilados já existente. Ezequiel era da classe sacerdotal, vivia entre os deportados e sofria junto com eles, longe de sua terra e do templo, com saudades de Sião (cf. Sl 137). Ainda antes de Jerusalém ser destruída Ezequiel sentiu-se chamado por Deus para profetizar em seu nome aos colegas de exílio. Procurava de todos os modos mostrar ao povo que estavam sofrendo pelos pecados cometidos contra Deus e injustiças praticadas contra o próximo. Apelava para a conversão, animando a esperança de salvação e de um próximo retorno a Jerusalém.
O exílio foi um tempo de reflexão e revisão de vida. Longe de sua terra, os exilados sentiam-se injustamente punidos por Deus pela culpa de seus pais e diziam: “Os pais comeram uvas verdes e os dentes dos filhos ficaram embotados” (Ez 18,2). O Profeta responde que Deus não pune a culpa dos pais nos seus filhos, mas cada um é responsável pelo seu próprio pecado. A solução não é acusar os outros, mas examinar o próprio coração, reconhecer os próprios pecados e arrepender-se para obter vida. Deus não deseja a morte de ninguém (18,32). Ele é misericordioso, sempre disposto a perdoar a quem se arrepende e muda de conduta.
Hoje, a pandemia do “corona vírus”, que está ceifando inúmeras vidas, impondo a quarentena a milhões de pessoas e paralisando a economia, é uma oportunidade única para revermos nossas relações humanas perturbadas e sociais perversas. É urgente expulsar de nosso planeta o sistema predatório do liberalismo econômico, que substitui a Deus pela riqueza de uns poucos, sujeita a virar palha no jogo financeiro especulativo (cf. Mt 6,19). É hora de transformar o sistema de morte em sistema que produza vida. A prioridade que se impõe é a vida humana digna para todos, numa sociedade justa e solidária com todos os seres vivos da Terra.
Salmo responsorial: Sl 24,4bc-5.6-7.8-9
Recordai, Senhor meu Deus, vossa ternura e compaixão!
2. Segunda leitura: Fl 2,1-11
Tende entre vós o mesmo sentimento
Que existe em Cristo Jesus.
Paulo escreve da prisão. Mesmo assim, sua carta é perpassada de alegria que brota de sua união com Cristo. Com esse espírito, exorta a comunidade a viver em harmonia, na fé e no amor fraterno. Não querendo ser o maior, mas o menor entre os irmãos. Não buscava o próprio interesse, mas o dos outros (Fl 2,1-5). Como Filho de Deus, podia ter escolhido o caminho do poder, mas, esvaziou-se de sua condição divina e assumiu a condição de servo. Colocou-se no mesmo chão em que nós vivemos. Mais ainda: Apresentou-se como quem é “manso e humilde de coração” (cf. Mt 11,29), pondo-se a serviço de todos: “Eu estou no meio de vós como quem serve” (cf. Lc 22,27). Identificou-se não com os poderosos, mas com a maioria das pessoas sujeitas à dominação, exploradas, desprezadas e marginalizadas; tornou-se solidário com todos os “crucificados” da história humana. Como o Servo do Cântico de Isaías, foi obediente até a morte de cruz. Por isso o Pai o ressuscitou dos mortos. O caminho de Cristo tornou-se o caminho do cristão. Paulo convida os cristãos a imitar o seu modelo, Jesus Cristo. Contava com a possibilidade de ser condenado à morte; por isso, o texto que ouvimos é uma espécie de testamento espiritual.
Aclamação ao Evangelho: Jo 10,27
Minhas ovelhas escutam a minha vos,
Minha voz estão elas a escutar;
Eu conheço, então, minhas ovelhas,
Que me seguem, comigo a caminhar.
- Evangelho: Mt 21,28-32
Arrependeu-se e foi. Os cobradores de impostos e as prostitutas
Vão entrar antes de vós no Reino do céu.
Jesus estava discutindo com os sumos sacerdotes e anciãos. Eles vieram questionar sua autoridade por ter armado uma “confusão” com os vendedores no templo. Neste contexto, Jesus lhes conta a parábola dos dois filhos. O pai tinha uma vinha, isto é, um sítio onde se plantavam cereais e frutas como a oliveira, a figueira e a videira. O sítio precisava de cuidados e o pai pediu ao primeiro filho: “Filho, vai trabalhar hoje na vinha!” Mas o filho respondeu com grosseria “não!”; depois se arrependeu e foi trabalhar. Pediu a outro filho a mesma coisa e ele logo disse: “Sim, Senhor, eu vou!” Mas não foi. Quando Jesus perguntou aos adversários qual foi o filho que fez a vontade do pai, a resposta era evidente: “O primeiro”. – O primeiro filho pecou por falta de educação, mas arrependeu-se e cumpriu a vontade do pai. O segundo filho foi até educado com o pai, mas não cumpriu sua vontade. É sobre o segundo filho que se concentra o foco da parábola, que Jesus aplica aos seus adversários: “As prostitutas e os cobradores de impostos vos precedem no Reino dos Céus”. Porque ouviram os apelos de conversão de João Batista e se converteram, o que não aconteceu com os adversários de Jesus. No sermão da montanha Jesus disse: “Nem todo aquele que me diz ‘Senhor, Senhor’, entrará no Reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus” (Mt 7,21).
FREI LUDOVICO GARMUS, OFM,é professor de Exegese Bíblica do Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis (RJ). Fez mestrado em Sagrada Escritura, em Roma, e doutorado em Teologia Bíblica pelo Studium Biblicum Franciscanum de Jerusalém, do Pontifício Ateneu Antoniano. É diretor industrial da Editora Vozes e editor da Revista “Estudos Bíblicos”, editada pela Vozes. Entre seus trabalhos está a coordenação geral e tradução da Bíblia Sagrada da Vozes.
Todos são chamados a trabalhar no Reino
Frei Clarêncio Neotti
Os fariseus e os escribas dividiam os homens em duas classes: os que eles consideravam bons e os que eles consideravam maus. Ou seja: em santos e pecadores. Bons eram aqueles que cumpriam formalmente as 366 leis; provavelmente deveriam ter posses, porque não passava pela cabeça deles que alguém, cumpridor da lei, não fosse recompensado por Deus com bens materiais. Comentamos esse modo de pensar no domingo passado.
Maus eram todos os outros, desde os não judeus até os que exercessem profissões incompatíveis com os horários de prática de lei (pastores e pescadores, por exemplo). A imensa maioria do povo estava nessa segunda classe, por serem pobres.
Os dois filhos da parábola representam as duas classes sociais. A vinha é o que Jesus chamou de ‘Reino dos Céus’, isto é, um modo de viver na presença de Deus. O dono é Deus. Ele convidou a ambos os filhos. A classe que se julgava eleita e santa disse ‘sim’. Mas, um ‘sim’ formal, da boca para fora. Não foi trabalhar na vinha. A outra classe, a dos pecadores, pelo pecado disse ‘não’, mas se arrependeu do pecado e foi para a vinha, isto é, aceitou Jesus e seus ensinamentos, converteu-se e participou do novo povo de Deus, da nova vinha do Senhor.
Jesus tomou dois tipos bem representativos dos ‘maus’. A prostituta, considerada pecadora pública, pega em flagrante; e o publicano, detestado, porque trabalhava para os romanos. Jesus dirigiu-se tanto à primeira quanto à segunda categoria de pessoas. Ambas necessitavam de conversão.
FREI CLARÊNCIO NEOTTI, OFM, entrou na Ordem Franciscana no dia 23 de dezembro de 1954. Durante 20 anos, trabalhou na Editora Vozes, em Petrópolis. É membro fundador da União dos Editores Franciscanos e vigário paroquial no Santuário do Divino Espírito Santo (ES). Escritor e jornalista, é autor de vários livros e este comentário é do livro “Ministério da Palavra – Comentários aos Evangelhos dominicais e Festivos”, da Editora Santuário.
Um sim que seja sim
Frei Almir Guimarães
Nós, cristãos, temos o privilégio de dispor de um outro método, relativamente à mundanidade, para nos avizinharmos da verdade: o arrependimento.
Christos Yannaras
♦ Um sim que, na realidade pode ser não, ou um não que venha transformar-se em sim. Mais uma parábola. A dos dois filhos. Um diz que faz as obras do Senhor. Mas não faz. O outro, diz que não, mas volta atrás e faz. O sentido da parábola de Jesus parece claro. No seguimento de Jesus, na construção do Reino há pessoas que dizem sim. Aparentemente vivem dentro dos bons padrões. E de outro lado há os que dizem não. Tudo claro até aqui. Há, no entanto, uma sorte de inversão. Os bons parece que colocaram em si uma etiqueta de bondade, mas que, na realidade esconde um pedaço de inverdade. Consideram-se justos, mas falta-lhes o fogo interior e sua fidelidade tem tudo do legalismo. Dizem que vão, mas não vão. Estão satisfeitos com o mundinho que criaram com tintas de religiosidade. Os que disseram não se arrependem e com ardor transformam o não em sim. Mudam de ideia. Arrependem-se. Convertem-se.
♦ De maneira clara Manicardi aborda nosso tema: “Naquele ‘mudar de ideia’ está o diálogo interior, está a tomada de consciência da realidade, está a audácia de olhar de frente para si próprio, um passo preliminar essencial para o agir responsável. Em suma, está um movimento em direção à responsabilidade, da decisão de passar a irresponsabilidade para a responsabilidade. Nesse sentido, longe de ser um sinal de fraqueza, o arrependimento é sinal de coragem e força. Embora seja raro e impopular, mesmo na Igreja, o gesto de quem reconhece ter errado, de quem admite ter tomado posições que se revelaram pouco conformes com o Evangelho e muda a sua posição, procurando ser mais fiel ao Evangelho, é sinal e grandeza humana e espiritual” (Luciano Manicardi, Comentário à Liturgia Dominical e Festiva, Ano A, Paulinas de Portugal, p.144).
♦ A vida, muitas vezes, é um madrasta desalmada. Acrescentei o adjetivo desalmada porque imagino que existam madrastas com alma. Há pessoas que, na realidade tiveram uma trajetória extremamente acidentada. Um certo mocinho cresceu num ambiente em que pessoas de seu relacionamento assaltavam e ele mesmo passou ser “sócio” do crime. Um mocinha bonita, jeitosa começa a se interessar por aventuras amorosas e receber recompensas e compensações, menina que nunca fora valorizada. Pessoas que pouco visitaram seu interior. Nunca questionaram o que vem a ser voz da consciência. Por um ou outro caminho foram tocadas. A moça sonhava com um companheiro único e a formação de uma família. O rapaz depois de cumprir um tempo de prisão, olhando-se no espelho queria ser diferente. Nessas e em tantas vidas pode irromper Cristo, sobretudo através do testemunho de pessoas que se tornaram evangelho vivo. Os que haviam dito não, disseram um sim cheio de ardor.
♦ Jesus se aproxima dos mais discriminados. Senta-se para comer com publicanos. Deixa que uma pecadora beije seus pés. É conhecido como amigo dos pecadores. Quem suspeita hoje realmente que os bêbados, os mendigos e todos os que formam o refugo, a escória da sociedade podem ser os primeiros do Reino? Quem podia imaginar que os aidéticos, dependentes de drogas poderiam preceder a alguns figurões da religião… (cf. Pagola, Mateus, p. 250.)
♦ A graça do arrependimento. Sim, trata-se de uma graça. Ter-se acostumado a usufruir das coisas e dos bens para si. Ter lucrado percorrendo os caminhos da noite. Ter usado o corpo dos outros…Todas essas páginas escuras. Arrepender-se quer dizer experimentar dor pelo que se cometeu, sobretudo de termos machucado aos outros, a nós mesmos e termos descuidado de responder ao amor do Senhor.
♦ O coração contrito é a única brecha por onde Deus pode entrar numa vida. Uma vida “acostumada” com as coisas da fé é impermeável a Deus e ao seu alvissareiro convite. O homem pode desviar o seu caminho, da primeira orientação de vida. O homem vive longe de seu ser verdadeiro. O coração contrito é um coração deslumbrado pela beleza e misericórdia de Deus. O coração contrito deixa Deus ser Deus. Éloi Leclerc: “O coração contrito é uma brecha íntima por onde pode entrar ainda qualquer coisa nova. É uma abertura ao Deus vivo e imprevisível; o Deus que vem”.
Oração
NÃO TENHAS MEDO
Não tenhas medo
de olhar para trás,
descobrirás que o amor está a um passo de ti.
Não tenhas medo
de olhar-Me nos olhos.
Eu acolherei a tua inquietação
e a tua incompleta purificação de luz.
Não tenhas medo,
Eu abençoarei a tua misericórdia
quando se faz abraço,
a tua piedade quando se faz ternura,
a tua dor quando se faz pão.
Não tenhas medo,
a paz existirá para ti também,
porque o Meu coração se recolhe ao lado do teu.
Luigi Verdi
FREI ALMIR GUIMARÃES, OFM, ingressou na Ordem Franciscana em 1958. Estudou catequese e pastoral no Institut Catholique de Paris, a partir de 1966, período em que fez licenciatura em Teologia. Em 1974, voltou a Paris para se doutorar em Teologia. Tem diversas obras sobre espiritualidade, sobretudo na área da Pastoral familiar. É o editor da Revista “Grande Sinal”.
O risco de instalar-nos na religião
José Antonio Pagola
Não são poucos os cristãos que acabam por instalar-se comodamente em sua fé, sem que sua vida se veja afetada. Poderíamos dizer que sua fé é um acréscimo, não algo nuclear que anima seu viver diário.
Quantas vezes a vida dos cristãos fica como que cortada em duas. Agem, organizam-se e vivem como todos os outros ao longo dos dias, e no domingo dedicam um certo tempo para prestar culto a um Deus que está ausente de suas vidas no resto da semana.
Cristãos que se desdobram e mudam de personalidade, segundo se ajoelhem para rezar a Deus ou se entreguem a suas ocupações diárias. Deus não penetra em sua vida familiar, em seu trabalho, em suas relações sociais, em seus projetos ou interesses. Desta forma, a fé se converte num costume, num reflexo, num “relaxamento semanal”, como diria Jean Onimus, e, em qualquer caso, numa prudente medida de segurança para esse futuro que talvez exista depois da morte.
Todos nós devemos perguntar-nos com sinceridade o que significa realmente Deus em nosso viver cotidiano. O que se opõe à verdadeira fé não é muitas vezes a incredulidade, mas a falta de coerência.
O que importa o credo que nossos lábios pronunciam, se falta depois em nossa vida um mínimo esforço de seguimento sincero de Jesus? O que importa – diz-nos Jesus em sua parábola – que um filho diga a seu pai que vai trabalhar na vinha, se depois na realidade não o faz? As palavras, por mais belas que sejam, não deixam de ser palavras.
Não reduzimos muitas vezes nossa fé a palavras, ideias ou sentimentos? Não esquecemos quase sempre que a fé verdadeira deve dar um significado novo e uma orientação diferente a todo o comportamento da pessoa? Nós cristãos não deveríamos ignorar que, na realidade, não cremos o que dizemos com os lábios, mas o que expressamos com nossa vida inteira.
JOSÉ ANTONIO PAGOLA cursou Teologia e Ciências Bíblicas na Pontifícia Universidade Gregoriana, no Pontifício Instituto Bíblico de Roma e na Escola Bíblica e Arqueológica Francesa de Jerusalém. É autor de diversas obras de teologia, pastoral e cristologia. Atualmente é diretor do Instituto de Teologia e Pastoral de São Sebastião. Este comentário é do livro “O Caminho Aberto por Jesus”, da Editora Vozes.
Formalismo religioso e verdadeiro serviço a Deus
Pe. Johan Konings
Na 1ª leitura, Ezequiel ensina que o justo, quando se desvia, se perde, enquanto o pecador que corrige sua vida se salva. Jesus, no evangelho, denuncia a atitude dos supostos “justos”. Não se converteram à pregação de João Batista; os publicanos e as prostitutas, sim. Referindo-se a isso, Jesus faz uma comparação: o “bom filho” diz ao pai que fará, mas não faz; o filho rebelde diz que não fará, mas faz… Qual dos dois, então, é o verdadeiro “justo”?
Não adianta ter o rótulo de justo por causa de habitual bom comportamento e por dizer piedosamente “sim” a Deus. Importa fazer de fato o que Deus espera. E se fizermos o que Deus espera de nós, não importa que antes tenhamos sido pecadores. Fazendo o que Deus espera, o pecador torna-se justo; não o fazendo, o justo torna-se pecador. O “estar bem com Deus” nunca é “direito adquirido”. Não há assentos cativos no céu… Um ladrão, acostumado desde o instituto de menores a viver de bens alheios, arrisca sua vida para salvar um banhista no mar; populares, não casados na Igreja, organizam uma vaquinha para ajudar uma família sem meios de sustento; um beberrão torna-se crente e deixa de beber, para sustentar melhor sua família. Pelo outro lado: padres e religiosos proclamam a “opção pelos pobres”, mas só têm tempo para os ricos e os inteligentes… Qual deles é o justo?
Apliquemos na prática o critério de discernimento que Cristo mesmo sugere na parábola: que é o que a pessoa diz e o que ela faz? Descobriremos com perspicácia o que é acomodação e o que é conversão, também em nós mesmos.
Importa reconhecer a justiça dos que não têm a fama, mas a praticam. E denunciar – para o bem deles e de todos; – os que têm fama de justiça, mas não a praticam. Neste sentido, para ser fiel a Jesus, a comunidade cristã deve expulsar o formalismo religioso, que consiste em observar as coisas formais e exteriores da religião, sem fazer de verdade o que Deus espera de nós: a contínua conversão e a prática da justiça e da solidariedade para com o irmão.
Convém meditar neste sentido o que fez o filho por excelência, Jesus: não se apegou a privilégios de divindade, mas fez a vontade do Pai, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz (2ª leitura).
PE. JOHAN KONINGS nasceu na Bélgica em 1941, onde se tornou Doutor em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina, ligado ao Colégio para a América Latina (Fidei Donum). Veio ao Brasil, como sacerdote diocesano, em 1972. Em 1985 entrou na Companhia de Jesus (Jesuítas) e, desde 1986, atuou como professor de exegese bíblica na FAJE, Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte. Faleceu no dia 21 de maio de 2022. Este comentário é do livro “Liturgia Dominical, Editora Vozes.
Reflexão em vídeo de Frei Gustavo Medella