Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

23º Domingo do Tempo Comum

23º Domingo do Tempo Comum

O privilégio do desapego 

 

Frei Gustavo Medella

“Se alguém vem a mim, mas não se desapega de seu pai e sua mãe, sua mulher e seus filhos, seus irmãos e suas irmãs e até da sua própria vida, não pode ser meu discípulo” (Lc 14,26).

À primeira vista, a frase de Jesus parece chocar quem a lê, dado que os laços familiares são, a princípio, algo importante e central na vida do ser humano. No entanto, se o leitor, em vez de colocar a ênfase do ensinamento sobre os parentes (pai, mãe, irmãos etc.) e perceber que no centro da questão está o desapego, a compreensão se torna mais fácil e plausível.

Apegar-se é um caminho que aprisiona e aliena, pois geralmente leva a uma espécie de “objetificação” do outro. Quem vive apegado a pessoas corre o risco de considerá-las coisas de sua propriedade. Pais com apego excessivo aos filhos, por exemplo, podem torná-los muito dependentes e pouco preparados para enfrentar os desafios da vida. No relacionamento a dois, o apego geralmente gera ciúmes excessivos e até violência. Ninguém é propriedade de ninguém.

Desapegar-se é, portanto, uma graça. É adquirir a maturidade de que a vida é maravilhosa, mas muito curta e passageira, tal como reza o salmista, quando diz que os dias do ser humano, “Eles passam como o sono da manhã, são iguais à erva verde pelos campos: De manhã ela floresce vicejante, mas à tarde é cortada e logo seca” (Sl 89). Carregar a cruz significa aceitar os limites a abraçá-los com amor, vivendo na gratuidade e confiando-se ao seguimento de Cristo sob os olhos amorosos do Pai.


FREI GUSTAVO MEDELLA, OFM, é o atual Vigário Provincial e Secretário para a Evangelização da Província Franciscana da Imaculada Conceição. Fez a profissão solene na Ordem dos Frades Menores em 2010 e foi ordenado presbítero em 2 de julho de 2011.


Imagem ilustrativa de Frei Fábio Melo Vasconcelos

Textos bíblicos para este domingo

Primeira Leitura: Sabedoria 9,13-18

Leitura do livro da Sabedoria – 13Qual é o homem que pode conhecer os desígnios de Deus? Ou quem pode imaginar o desígnio do Senhor? 14Na verdade, os pensamentos dos mortais são tímidos e nossas reflexões incertas: 15porque o corpo corruptível torna pesada a alma, e a tenda de argila oprime a mente que pensa. 16Mal podemos conhecer o que há na terra e com muito custo compreendemos o que está ao alcance de nossas mãos; quem, portanto, investigará o que há nos céus? 17Acaso alguém teria conhecido o teu desígnio, sem que lhe desses sabedoria e do alto lhe enviasses teu santo espírito? 18Só assim se tornaram retos os caminhos dos que estão na terra, e os homens aprenderam o que te agrada e pela sabedoria foram salvos. – Palavra do Senhor.


Salmo Responsorial: 89(90)

Vós fostes, ó Senhor, um refúgio para nós.

Vós fazeis voltar ao pó todo mortal / quando dizeis: “Voltai ao pó, filhos de Adão!” / Pois mil anos para vós são como ontem, / qual vigília de uma noite que passou. – R.
Eles passam como o sono da manhã, / são iguais à erva verde pelos campos: / de manhã ela floresce vicejante, / mas à tarde é cortada e logo seca. – R.
Ensinai-nos a contar os nossos dias / e dai ao nosso coração sabedoria! / Senhor, voltai-vos! Até quando tardareis? / Tende piedade e compaixão de vossos servos! – R.
Saciai-nos de manhã com vosso amor, / e exultaremos de alegria todo o dia! / Que a bondade do Senhor e nosso Deus † repouse sobre nós e nos conduza! / Tornai fecundo, ó Senhor, nosso trabalho. – R.


Segunda Leitura: Filêmon 9b-10.12-17

Leitura da carta de são Paulo a Filêmon – Caríssimo, 9eu, Paulo, velho como estou e agora também prisioneiro de Cristo Jesus, 10faço-te um pedido em favor do meu filho que fiz nascer para Cristo na prisão, Onésimo. 12Eu o estou mandando de volta para ti. Ele é como se fosse o meu próprio coração. 13Gostaria de tê-lo comigo, a fim de que fosse teu representante para cuidar de mim nesta prisão, que eu devo ao evangelho. 14Mas eu não quis fazer nada sem o teu parecer, para que a tua bondade não seja forçada, mas espontânea. 15Se ele te foi retirado por algum tempo, talvez seja para que o tenhas de volta para sempre, 16já não como escravo, mas, muito mais do que isso, como um irmão querido, muitíssimo querido para mim quanto mais ele o for para ti, tanto como pessoa humana quanto como irmão no Senhor. 17Assim, se estás em comunhão de fé comigo, recebe-o como se fosse a mim mesmo. – Palavra do Senhor.


Para ser discípulo de Jesus
Evangelho: Lc 14,25-33

-* 25 Grandes multidões acompanhavam Jesus. Voltando-se, ele disse: 26 «Se alguém vem a mim, e não dá preferência mais a mim que ao seu pai, à sua mãe, à mulher, aos filhos, aos irmãos, às irmãs, e até mesmo à sua própria vida, esse não pode ser meu discípulo. 27 Quem não carrega sua cruz e não caminha atrás de mim, não pode ser meu discípulo. 28 De fato, se alguém de vocês quer construir uma torre, será que não vai primeiro sentar-se e calcular os gastos, para ver se tem o suficiente para terminar? 29 Caso contrário, lançará o alicerce e não será capaz de acabar. E todos os que virem isso, começarão a caçoar, dizendo: 30 ‘Esse homem começou a construir e não foi capaz de acabar!’ 31 Ou ainda: Se um rei pretende sair para guerrear contra outro, será que não vai sentar-se primeiro e examinar bem, se com dez mil homens poderá enfrentar o outro que marcha contra ele com vinte mil? 32 Se ele vê que não pode, envia mensageiros para negociar as condições de paz, enquanto o outro rei ainda está longe. 33 Do mesmo modo, portanto, qualquer de vocês, se não renunciar a tudo o que tem, não pode ser meu discípulo.

* 25-35: Seguir a Jesus e continuar o seu projeto (= ser discípulo) é viver um clima novo na relação com as pessoas, com as coisas materiais e consigo mesmo. Trata-se de assumir com liberdade e fidelidade a condição humana, sem superficialismo, conveniência ou romantismo. O discípulo de Jesus deve ser realista, a fim de evitar ilusões e covardias vergonhosas.

Bíblia Sagrada – Edição Pastoral

Reflexões do exegeta Frei Ludovico Garmus

Oração: “Ó Deus, pai de bondade, que nos redimistes e adotastes como filhos e filhas, concedei aos que crêem no Cristo a verdadeira liberdade e a herança eterna”.

1. Primeira leitura: Sb 9,13-18

Quem pode conhecer os desígnios do Senhor?

O texto da primeira leitura parte de uma pergunta: Pode o ser humano conhecer os “desígnios”, isto é, os planos do Senhor? E responde que o ser humano é mortal e como tal é incapaz de conhecer, isto é, desvendar qual é o projeto de Deus que lhe diz respeito. Pode conhecer o mundo que o cerca, mas não o desígnio de Deus. Conhecer o desígnio ou vontade de Deus é um dom que Deus nos concede. Iluminado pela Sabedoria do espírito’ divino, o ser humano aprende como agradar a Deus e será salvo. A sabedoria transmitida pelas nossas famílias e pela comunidade cristã nos conduzem a Jesus. Cristo, a Sabedoria de Deus, é quem nos ensina o caminho da salvação.

Salmo responsorial: Sl 89

Vós fostes, ó Senhor, um refúgio para nós.

2. Segunda leitura: Fm 9b-10.12-17

Recebe-o, não mais como escravo, mas como um irmão querido.

Na segunda leitura ouvimos parte da menor das Cartas do apóstolo Paulo. Tem apenas um capítulo. Paulo está preso por causa da pregação do Evangelho. Na prisão está também um escravo fugitivo de nome Onésimo (= inútil), pertencente a um amigo cristão, chamado Filêmon. Paulo, já idoso e preso, não deixa de falar de Jesus ao escravo Onésimo, que se converte, é batizado e torna-se seu filho, que ele “fez nascer para Cristo na prisão”. Paulo é cidadão romano e respeita as leis do Império referentes a um escravo fugitivo. Dispõe-se a devolver o escravo. Poderia pedir a Filêmon que deixasse Onésimo como seu representante para cuidar de Paulo na prisão. Mas não o faz para não forçar um gesto de bondade de Filêmon. Pede-lhe que receba de volta Onésimo, já não como escravo, propriedade do patrão, mas como irmão muito querido em Cristo como o próprio coração de Paulo. Receba Onésimo como pessoa humana e como irmão em Cristo. Toda a Carta revela a delicadeza de Paulo no trato com os irmãos de fé. Paulo não despreza as leis romanas, mas eleva a relação patrão-escravo a um novo patamar mais elevado, onde prevalecem os direitos humanos e se vive o evangelho de Jesus Cristo. Entre os cristãos, diz Paulo, “já não há judeu nem grego, escravo nem livre, pois todos vós sois um só em Cristo Jesus” (Gl 3,28). Por fim, Paulo faz um último apelo: Recebendo Onésimo como escravo-irmão, Filêmon mostrará que está em comunhão de fé porque no escravo fugitivo recebe o próprio com Paulo.

Devolve o escravo Onésimo a Filêmon, como se fosse “o seu próprio coração”. Paulo ama Onésimo como irmão em Cristo, assim o deve receber Filêmon, já não como simples escravo, mas como irmão.

Aclamação ao Evangelho: Sl 118,135

Fazei brilhar vosso semblante ao vosso servo
e ensinai-me vossas leis e mandamentos.

3. Evangelho: Lc 14,25-33

Qualquer um de vós, se não renunciar a tudo que tem,
Não pode ser meu discípulo.

Jesus está a caminho de Jerusalém, onde seria preso, condenado à morte e crucificado. Era uma viagem à Cidade Santa para as celebrações da festa da Páscoa dos judeus e Jesus estava acompanhado por “multidões”. Muita gente do povo e os discípulos pretendiam proclamá-lo como rei, mas o propósito de Jesus era cumprir a vontade do Pai. No caminho, Jesus já havia alertado os discípulos que “o Filho do Homem seria entregue nas mãos dos homens” (9,21-22.43-45), porque um profeta devia morrer em Jerusalém (13,31-35). Multidões o acompanhavam para a festa. Mas acompanhar não é a mesma coisa que seguir a Jesus. Exige-se a capacidade de segui-lo no caminho que o levaria ao Gólgota. Por isso Jesus estabelece as condições para alguém se tornar um discípulo: 1) desapego da família e da própria vida; 2) carregar a própria cruz, isto é, as contradições, o desprezo e os sofrimentos que a vida cristã impõe; 3) enfim, renunciar-se a si mesmo, isto é, aos próprios projetos para assumir os que Jesus nos propõe.

Para esclarecer as exigências para os discípulos, Jesus conta duas pequenas parábolas que levam cada pessoa a medir as próprias capacidades de seguir o Mestre. A primeira parábola fala do homem que decidiu a construir uma torre, porém foi incapaz de concluí-la. Ficou coberto de vergonha porque as pessoas que passavam diante a torre inacabada diziam: “Este homem começou a construir e não foi capaz de acabar”! A construção de uma torre exige mais do que construir uma casa… A segunda parábola fala do rei que se preparava para a guerra contra um rei inimigo. Segundo Jesus, o rei deve examinar bem se tem um exército bem treinado, capaz de enfrentar as forças inimigas. Caso contrário, seria melhor enviar embaixadores e negociar a paz. A prudência aconselha a “não dar passos maiores que as pernas”.

Aos discípulos de ontem e de hoje, Jesus ensina que o discípulo precisa renunciar ao projeto pessoal e assumir o de Jesus. Não devemos enquadrar Jesus e sua mensagem em nosso projeto pessoal, mas abraçar o projeto que o Mestre nos propõe.


FREI LUDOVICO GARMUS, OFMé professor de Exegese Bíblica do Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis (RJ). Fez mestrado em Sagrada Escritura, em Roma, e doutorado em Teologia Bíblica pelo Studium Biblicum Franciscanum de Jerusalém, do Pontifício Ateneu Antoniano. É diretor industrial da Editora Vozes e editor da Revista “Estudos Bíblicos”, editada pela Vozes. Entre seus trabalhos está a coordenação geral e tradução da Bíblia Sagrada da Vozes.

Jesus dá o exemplo

Frei Clarêncio Neotti

São quatro as condições radicais postas por Jesus: o desprendimento das coisas familiares; o desprendimento da própria vida (dos próprios interesses); o desprendimento de qualquer tipo de posse material ou espiritual e o assumir a cruz, isto é, a própria história em suas situações concretas de cada dia. É, certamente, muito o que Jesus exige. Mas, se olharmos bem, é exatamente o que ele fez, quando veio a este mundo: deixou a glória do paraíso, assumiu a pobreza em todos os sentidos, “aniquilou-se a si mesmo, tomando a condição de servo” (Fl 2,7), sofreu todas as vicissitudes de seu tempo e de seu povo e morreu crucificado.

Jesus nada exige que não tenha experimentado primeiro. Aliás, Lucas sugere isso ao dizer que Jesus caminhava à frente das multidões, para quem ‘se voltou’ para ensinar (v. 25). Em outra ocasião, Jesus dissera explicitamente: “O discípulo, para ser perfeito, deve ser como o mestre” (Lc 6,40). Jesus repartiu tudo o que era e o que tinha com os discípulos, até mesmo seu poder divino de perdoar pecados e de santificar (Jo 20,23).

Mas quer repartir também a cruz e a morte, partes integrantes de sua missão salvadora, e partilhar a ressurreição e a glorificação, nova meta da criatura redimida.


FREI CLARÊNCIO NEOTTI, OFMentrou na Ordem Franciscana no dia 23 de dezembro de 1954. Durante 20 anos, trabalhou na Editora Vozes, em Petrópolis. É membro fundador da União dos Editores Franciscanos e vigário paroquial no Santuário do Divino Espírito Santo (ES). Escritor e jornalista, é autor de vários livros e este comentário é do livro “Ministério da Palavra – Comentários aos Evangelhos dominicais e Festivos”, da Editora Santuário.

Que seja bem feita a construção da vida

Frei Almir Guimarães

De novo estamos com o tema da urgência de um vigoroso seguimento do Mestre. Jesus traça algumas orientações a respeito das qualidades do discípulo. Tudo deve ser centrado nele, o Mestre. Nada pela metade. Não pensamos no seguimento meio longínquo de um Jesus encerrado no tempo que se foi, refém das páginas impressas de um livro chamado Bíblia ou engessado em fórmulas que aprendemos de cor, mas sem condições de dar cores belas à nossa vida. Pensamos no Cristo vivo e misteriosamente presente.

Viemos da nada. Vivemos. Um corpo com suas necessidades e reclamos. Os olhos, as mãos, os pés, anelos e desejos do coração. Perguntas e mais perguntas. De onde vim? Para onde vou? Esses outros, tantos outros? Como conviver? Esse planeta, essas águas, essas flores, essas ruas, essa gente toda? Esses dias de paz e de encantadora beleza e esse tempo de dores, de incompreensão?

Cabe-nos construir nossa vida a partir de nós e com os outros. Respeitar os gritos de nosso interior. Queremos a beleza, o bem, a verdade e não a ilusão. Queremos ser gente atenta aos movimentos da vida e às sugestões que Deus que as anda fazendo através dos mais sábios, do perfume do Evangelho e dos sinais dos tempos e simplesmente pelo palpitar da vida.

Crescer, viver, respeitar os que nos cercam, estar atento aos misteriosos apelos que o Senhor nos faz, não construir de qualquer maneira, cuidar da terra e da água, construir espaços de união e pontos que unam, evitar tudo o que possa nos animalizar, tornar-nos indiferentes a tudo e a todos. Tentar, a duras penas, ouvir o que o Mistério anda sussurrando aos nossos ouvidos por suas visitas. “Estou à porta e bato”. Queremos viver de maneira evangélica.

Casa na rocha, sair para a guerra com certeza da vitória. Os que querem seguir a Jesus calculam gastos, procuram se prevenir as surpresas que podem acontecer com o tempo que vai passando. Perseverança para que a torre seja concluída com êxito e não fique inacabada, que o exercito seja forte em coragem e número permitindo a vitória.

Como construir a vida com êxito e como discípulos do Senhor? Não existe receita mágica.

• Desde o tempo da juventude procurar a verdade do existir. Fugir de tudo que possa ser ilusão, mera aparência, ou seja, enganar-se a si mesmo. Sinceridade consigo mesmo, com sua verdade.
• No tempo privilegiado da juventude, entre os 16 aos 30 anos colocar as bases de uma vida sólida: viagens ao fundo do coração para escutar nossos sonhos mais legítimos, viver densas, profundas e sérias amizades, escolher com nitidez uma profissão que não somente dê bons salários, mas que seja também colaboração na construção de um mundo segundo o coração de Deus, fazer uma opção séria e bela pelo casamento, tomar a decisão de um vida de oração e de vivência da missa dominical. Lucidez, responsabilidade e firmeza de propósitos. Tudo feito sobre o sólido. Questão de decisão.
• A solidez uma existência humana e cristã se torna possível com o exercício do discernimento, tentar ver claro no meio do nevoeiro. Ter o hábito de refletir.
• Na formação sólida do discípulo de Cristo dever-se-á pensar em debates, exercício de meditação, revisões regulares do modo de viver.
• A primeira leitura, do livro da Sabedoria, afirma que os desígnios do Senhor só podem ser conhecidos precisamente pela sabedoria. Sabor das coisas. Sabor, sabedoria que acontece quando nos expomos à luz do Espírito que penetra o mais fundo de nós mesmos.


Oração

A terra começará a ser teu reino…

Se nós sairmos para a vida
partindo nosso pão com o faminto,
eliminando, uma a uma, as discórdias,
pondo o bem em todos os teus caminhos,
a terra começará, Senhor, a ser teu reino.

Se sairmos para a vida
armados de concórdia e sem estrondo,
tirando a opressão do oprimido,
abrindo a casa ao forasteiro,
a terra começará, Senhor, a ser o teu reino.

Se sairmos para a vida
vivendo em nossa carne o teu Evangelho,
dizendo que é urgente despertar,
que só os sinceros vêm teu reino,
a terra começará, Senhor, a ser teu reino.


FREI ALMIR GUIMARÃES, OFM, ingressou na Ordem Franciscana em 1958. Estudou catequese e pastoral no Institut Catholique de Paris, a partir de 1966, período em que fez licenciatura em Teologia. Em 1974, voltou a Paris para se doutorar em Teologia. Tem diversas obras sobre espiritualidade, sobretudo na área da Pastoral familiar. É o editor da Revista “Grande Sinal”.

O que é carregar a cruz?

José Antonio Pagola

A cruz é o critério decisivo para verificar o que merece trazer o nome de cristão. Quando as gerações cristãs o esquecem, sua religião se aburguesa, se dilui e se esvazia da verdade. Por isso, nós crentes precisamos perguntar-nos qual é o significado mais original do apelo de Jesus: “Quem não carregar sua cruz atrás de mim não pode ser meu discípulo”.

Embora pareça surpreendente, nós cristãos desenvolvemos frequentemente diversos aspectos da cruz, esvaziando-a de seu verdadeiro conteúdo. Assim, há cristãos que pensam que seguir o Crucificado é buscar pequenas mortificações, privando-se de satisfações e renunciando a prazeres legítimos para chegar – através do sofrimento – a uma comunhão mais profunda com Cristo.

Sem dúvida, é grande o valor de uma ascese cristã, e mais ainda numa sociedade como a nossa, mas Jesus não é um asceta que vive buscando mortificações; quando fala da cruz, não está convidando a uma “vida mortificada”.

Há outros para quem “carregar a cruz” é aceitar as contrariedades da vida, as desgraças ou adversidades. Mas os evangelhos nunca falam destes sofrimentos “naturais” de Jesus. Sua crucificação foi consequência de sua atuação de obediência absoluta ao Pai e de amor aos últimos.

Sem dúvida precisamos valorizar o conteúdo cristão desta aceitação, do “lado escuro e doloroso” da vida, a partir de uma atitude de fé; mas, se queremos descobrir o sentido original do chamado de Jesus, precisamos recordar com toda a simplicidade o que era “carregar a cruz”.

Carregar a cruz fazia parte do ritual da execução: o réu era obrigado a atravessar a cidade carregando a cruz e levando o titulus, um cartaz onde aparecia seu delito. Desta maneira, era mostrado como culpado perante a sociedade, excluído do povo, indigno de continuar vivendo entre os seus.


JOSÉ ANTONIO PAGOLA cursou Teologia e Ciências Bíblicas na Pontifícia Universidade Gregoriana, no Pontifício Instituto Bíblico de Roma e na Escola Bíblica e Arqueológica Francesa de Jerusalém. É autor de diversas obras de teologia, pastoral e cristologia. Atualmente é diretor do Instituto de Teologia e Pastoral de São Sebastião. Este comentário é do livro “O Caminho Aberto por Jesus”, da Editora Vozes.

Os cristãos e as estruturas sociais

Pe. Johan Konings

“Se Deus só serve para deixar tudo como está, não precisamos dele”; palavra de uma agente de educação popular. O Deus que é apenas o arquiteto do universo, mas fica impassível diante da injustiça dos habitantes de sua arquitetura, não tem relevância alguma. O cristianismo serve ou não para mudar as estruturas da sociedade? São Paulo tinha um amigo, Filêmon.

Este – como todos os ricos de seu tempo – tinha escravos, que eram como se fossem as máquinas de hoje. Um dos escravos, sabendo que Paulo tinha sido preso, fugiu de Filêmon para ajudar Paulo na prisão. Paulo o batizou (“o fez nascer para Cristo”).

Depois mandou-o de volta a Filêmon, recomendando que este o acolhesse, não como escravo, mas como irmão… Mais: como se ele fosse o próprio Paulo (2ª leitura).

Essa história é emocionante, mas nos deixa insatisfeitos. Por que Paulo não exigiu que o escravo fosse libertado, em vez de acolhido como irmão, continuando como escravo? Aliás, a mesma pergunta surge ao ler outros textos do Novo Testamento (1 Cor 7,21; 1Pd 2,18). Por que o Novo Testamento não condena a escravidão?

A humanidade leva tempo para tomar consciência de certas incoerências, e mais tempo ainda para encontrar-lhes remédio. A escravidão, naquele tempo, era uma forma de compensação de dívidas contraídas ou de uma guerra perdida. Imagine que se resolvesse desse jeito a dívida externa do Brasil! Seríamos todos vendidos (se já não é o caso…) Antigamente (?), a escravidão fazia parte da estrutura econômica. Na Idade Média, com os numerosos raptos praticados pelos piratas mouros, surgiram ordens religiosas para resgatar os escravos, até tomando o lugar deles. Mas ainda na época moderna, a Igreja foi conivente com a escravidão dos negros. A consciência moral cresce devagar, e mudar alguma coisa nas estruturas é mais demorado ainda, porque depende da consciência e das possibilidades históricas. As estruturas manifestam só aos poucos sua injustiça, e então leva séculos para transformá-las.

Porém, a lição de Paulo é que, não obstante essa lentidão histórica, devemos viver já como irmãos, vivenciando um espírito novo, que vai muito além das estruturas vigentes e que – como uma bomba-relógio – fará explodir, cedo ou tarde, a estrutura injusta. Novas formas de convivência social, voluntariados dos mais diversos tipos, organismos não-governamentais, pastorais junto aos excluídos – a criatividade cristã pode inventar mil maneiras para viver aquilo que as estruturas só irão assimilar muito depois.


PE. JOHAN KONINGS nasceu na Bélgica em 1941, onde se tornou Doutor em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina, ligado ao Colégio para a América Latina (Fidei Donum). Veio ao Brasil, como sacerdote diocesano, em 1972. Em 1985 entrou na Companhia de Jesus (Jesuítas) e, desde 1986, atuou como professor de exegese bíblica na FAJE, Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte. Faleceu no dia 21 de maio de 2022.  Este comentário é do livro “Liturgia Dominical, Editora Vozes.

Reflexão em vídeo de Frei Gustavo Medella