Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

20º Domingo do Tempo Comum

20º Domingo do Tempo Comum

Sem fogo não é possível

 

José Antonio Pagola

Num estilo claramente profético, Jesus resume toda sua vida com umas palavras insólitas: “Eu vim para lançar fogo sobre a terra: e como gostaria que já estivesse aceso!”. De que está a falar Jesus? O caráter enigmático da sua linguagem leva os exegetas a procurar a resposta em diferentes direções. De qualquer caso, a imagem do “fogo” convida-nos a nos aproximarmos do Seu mistério de forma mais ardente e apaixonada.

O fogo que arde no seu interior é a paixão por Deus e a compaixão pelos que sofrem. Jamais poderá ser revelado esse amor insondável que anima toda sua vida. Seu mistério nunca ficará encerrado em fórmulas dogmáticas nem em livros de sábios. Ninguém escreverá um livro definitivo sobre ele. Jesus atrai e queima, perturba e purifica. Ninguém poderá segui-lo com o coração apagado ou com piedade entediada.

Sua palavra faz arder os corações. Oferece-se amistosamente aos mais excluídos, desperta a esperança nas prostitutas e confia nos pecadores mais desprezados, luta contra tudo o que faz mal ao ser humano. Combate os formalismos religiosos, os rigores desumanos e as interpretações estreitas da lei. Nada nem ninguém podem acorrentar a sua liberdade para fazer o bem. Nunca poderemos segui-Lo, vivendo na rotina religiosa ou no convencionalismo “do correto”.

Jesus inflama conflitos, não os apaga. Não veio trazer falsa tranquilidade, mas tensões, confrontos e divisões. Na verdade, introduz o conflito no nosso próprio coração. Não podemos defender-nos da sua chamada por detrás do escudo dos ritos religiosos ou das práticas sociais. Nenhuma religião nos protegerá do seu olhar. Nenhum agnosticismo nos libertará de seu desafio. Jesus está a chamar-nos para viver em verdade e amar sem egoísmo.

Seu fogo não se extinguiu após mergulhar nas águas profundas da morte. Ressuscitado para uma vida nova, seu Espírito continua a arder ao longo da história. Os discípulos de Emaús sentem arder nos seus corações quando ouvem suas palavras enquanto caminham junto a eles.

Onde é possível sentir hoje esse fogo de Jesus? Onde podemos experimentar a força de sua liberdade criadora? Quando ardem os nossos corações ao acolher seu evangelho? Onde se vive de forma apaixonada seguindo seus passos? Embora a fé cristã parecesse extinguir-se hoje entre nós, o fogo trazido por Jesus ao mundo continua a arder sob as cinzas. Não podemos deixar que se apague. Sem fogo no coração, não é possível seguir Jesus.


JOSÉ ANTONIO PAGOLA cursou Teologia e Ciências Bíblicas na Pontifícia Universidade Gregoriana, no Pontifício Instituto Bíblico de Roma e na Escola Bíblica e Arqueológica Francesa de Jerusalém. É autor de diversas obras de teologia, pastoral e cristologia. Atualmente é diretor do Instituto de Teologia e Pastoral de São Sebastião. Este comentário é do livro “O Caminho Aberto por Jesus”, da Editora Vozes.


Imagem ilustrativa de Frei Fábio Melo Vasconcelos

Leituras bíblicas para este domingo

Primeira Leitura: Jr 38,4-6.8-10

Leitura do Livro do Profeta Jeremias: Naqueles dias, 4disseram os príncipes ao rei: “Pedimos que seja morto este homem; ele anda com habilidade lançando o desânimo entre os combatentes que restaram na cidade e sobre todo o povo, dizendo semelhantes palavras; este homem, portanto, não se propõe o bem-estar do povo, mas sim a desgraça”.

5Disse o rei Sedecias: “Ele está em vossas mãos; o rei nada vos poderá negar”. 6Agarraram então Jeremias e lançaram-no na cisterna de Melquias, filho do rei, que havia no pátio da guarda, fazendo-o descer por meio de cordas. Na cisterna não havia água, somente lama; e assim ia-se Jeremias afundando na lama. 8Ebed-Melec saiu da casa do rei e veio ter com ele, e falou-lhe: 9“Ó rei, meu senhor, muito mal procederam esses homens em tudo o que fizeram contra o profeta Jeremias, lançando-o na cisterna para aí morrer de fome; não há mais pão na cidade”.

10O rei deu, então, esta ordem ao etíope Ebed-Melec: “Leva contigo trinta homens e tira da cisterna o profeta Jeremias, antes que morra”.

– Palavra do Senhor.


Responsório: Sl 39

— Socorrei-me, ó Senhor, vinde logo em meu auxílio!

— Socorrei-me, ó Senhor, vinde logo em meu auxílio!

— Esperando, esperei no Senhor,/ e inclinando-se,/ ouviu meu clamor.

— Retirou-me da cova da morte/ e de um charco de lodo e de lama./ Colocou os meus pés sobre a rocha,/ devolveu a firmeza a meus passos.

— Canto novo ele pôs em meus lábios,/ um poema em louvor ao Senhor./ Muitos vejam, respeitem, adorem/ e esperem em Deus,/ confiantes.

— Eu sou pobre, infeliz, desvalido,/ porém, guarda o Senhor minha vida,/ e por mim se desdobra em carinho./ Vós me sois salvação e auxílio:/ vinde logo, Senhor, não tardeis!


Segunda Leitura: Hb 12,1-4

Leitura da Carta aos Hebreus: Irmãos: 1Rodeados como estamos por tamanha multidão de testemunhas, deixemos de lado o que nos pesa e o pecado que nos envolve. Empenhemo-nos com perseverança no combate que nos é proposto, 2com os olhos fixos em Jesus, que em nós começa e completa a obra da fé. Em vista da alegria que lhe foi proposta, suportou a cruz, não se importando com a infâmia, e assentou-se à direita do trono de Deus.

3Pensai pois naquele que enfrentou uma tal oposição por parte dos pecadores, para que não vos deixeis abater pelo desânimo. 4Vós ainda não resististes até ao sangue na vossa luta contra o pecado.

– Palavra do Senhor.


Evangelho: Lc 12,49-53

Naquele tempo, disse Jesus a seus discípulos: 49Eu vim para lançar fogo sobre a terra, e como gostaria que já estivesse aceso! 50Devo receber um batismo, e como estou ansioso até que isto se cumpra! 51Vós pensais que eu vim trazer a paz sobre a terra? Pelo contrário, eu vos digo, vim trazer divisão. 52Pois, daqui em diante, numa família de cinco pessoas, três ficarão divididas contra duas 53e duas contra três; ficarão divididos: o pai contra o filho e o filho contra o pai; a mãe contra a filha e a filha contra a mãe; a sogra contra a nora e a nora contra a sogra”.

— Palavra da Salvação.

O fogo da cruz

Frei Clarêncio Neotti

Mais vezes dissemos que Lucas gosta de fazer contrastes. Hoje emprega o paralelismo, bastante comum na literatura do tempo: fogo-água (= batismo), desejo-angústia; acender o fogo-consumar o batismo. A associação água-fogo é característica da literatura apocalíptica hebraica, bastante comum também fora da Bíblia. O apocalipse era um gênero literário, como a poesia, o teatro, o romance. Ele era usado para descrever o julgamento de Deus sobre o mundo carcomido pelo pecado, invadido pela idolatria, e a construção de um mundo novo, fundamentado na piedade e na fidelidade a Deus.

Para nós ocidentais, o estilo apocalíptico apresenta dificuldade de compreensão. Mas o povo que escutava Jesus o compreendia muito bem. Jesus emprega, então, o estilo apocalíptico exatamente no momento em que se aproxima da etapa final de sua missão. A morte e a ressurreição representam para ele e para a humanidade o momento decisivo, o momento do julgamento divino: ou o discípulo aceita a morte de Cristo e morre com ele, para com ele e como ele ressuscitar, ou se escandaliza, isto é, recua diante do fato milagroso da Páscoa e se perde, porque não há outra porta para a eternidade fora da Morte e Ressurreição de Jesus de Nazaré, Filho de Deus, Salvador.

O povo esperava que Deus mandasse fogo do céu para queimar as injustiças. Ou renovasse o dilúvio. Jesus sugere que o fogo destruidor e o dilúvio purificador serão sua morte na cruz.


FREI CLARÊNCIO NEOTTI, OFMentrou na Ordem Franciscana no dia 23 de dezembro de 1954. Durante 20 anos, trabalhou na Editora Vozes, em Petrópolis. É membro fundador da União dos Editores Franciscanos e vigário paroquial no Santuário do Divino Espírito Santo (ES). Escritor e jornalista, é autor de vários livros e este comentário é do livro “Ministério da Palavra – Comentários aos Evangelhos dominicais e Festivos”, da Editora Santuário.

Opção por ou contra Cristo

Pe. Johan Konings

Sempre falando no Fim, Lc traz, no evangelho de hoje, a palavra de Jesus dizendo que veio trazer fogo à terra. Palavra que deixa transparecer ainda a participação de Jesus na efervescência escatológica de seu tempo (como aquela outra: 10,18: “Eu via Satanás cair do céu qual relâmpago!”). Jesus não era um desses teólogos que falam com termos assépticos. Partilhava a linguagem apocalíptica de seu tempo. Experimentava o Reino de Deus como uma força que vinha sobre ele. Por isso, não diz apenas que ele deve administrar um batismo de fogo (cf. 3,16), mas que ele mesmo deve ser imerso neste batismo escatológico; e como o deseja (12,50)! O Espírito de Deus veio sobre Jesus como fogo, ele viveu na obediência, recebeu sua missão escatológica, na fé e na esperança. E, por isso, é mais ainda nosso Redentor: porque ele é o protótipo de nossa fé. Podemos crer com ele. A fé não nos separa de Jesus, colocando-o do outro lado, como “objeto”. Somos com ele co-sujeitos da sua fé: ouvintes da palavra do Pai.

A 2ª leitura nos propõe, exatamente, Jesus como o supremo exemplo de fé (depois de Hb 11 ter oferecido todo um elenco de exemplos; cf. dom. pass.). Ele é o autor e consumidor de nossa fé. Como ele assumiu sua “corrida” e, transformado em sinal de contradição para o mundo, a levou corajosamente até o fim, nós também a devemos assumir e percorrer até o fim. Com Cristo, corremos ao encontro do Pai. Ele nos precedeu, por assim dizer, em nossa corrida.

Esta corrida é um certame. Coloca-nos numa posição dialética face ao mundo. Também nisso, Jesus €nosso exemplo: não veio trazer a paz – pelo menos não como a gente pensa – e sim a divisão (Lc 12,51); é sinal de contradição (Hb 12,3), como foram os profetas antes dele, especialmente Jeremias (1ª leitura). Nós esperamos facilmente uma paz que se imponha (graças a uma autoridade forte, um regime inabalável etc.). Jesus vem propor uma paz baseada na adesão e livre escolha; apela para a liberdade; portanto, abre também o caminho para o desacordo; pois não força ninguém a estar de acordo com ele. Ninguém pode ser forçado a amar o próximo como a si mesmo, isto é, dar-lhe a preferência quando preciso (pois isso é amar…). Ninguém pode ser forçado a entregar livremente sua vida por amor. .. Contudo, nisto consiste a paz que Jesus vem propor. Proposta que divide as pessoas em pró e contra, mesmo no seio da própria família. No momento em que Lc escrevia, isso era dura realidade, pois já tinham iniciado as perseguições contra os cristãos.

Para Lc, tudo isso são “sinais do tempo” (12,54ss, sequência da leitura de hoje). Sinais do tempo decisivo, em que também Deus tomará partido. Nós somos hoje sinais de contradição no mundo (e ai de nós se não o formos, pois este mundo não é compatível com Deus!). Devemos considerar isso como uma “situação escatológica”. A controvérsia em redor do ser cristão no mundo de hoje é um sinal do tempo da escolha; escolha do homem em favor ou contra Cristo, escolha de Deus em favor ou contra os que, com Cristo, querem ser seus filhos, ou não. Escolher entre o amor de Deus e o do mundo é a dimensão escatológica permanente do ser cristão.

Será que os cristãos devem então ser menos humanos? Gente carrancuda, eternos insatisfeitos? Insatisfeitos, sim (quem poderia estar satisfeito com a sem-vergonhice solta por aí?); carrancudos, não, pois é por amor ao mundo que estão insatisfeitos. Por paixão … padecem.

Por paixão, jovens escolhem profissões pouco lucrativas, para melhor servir seus irmãos deserdados, e ficam eles mesmos deserdados por seus pais. Por paixão, um bispo intelectual, Dom Romero, se toma porta-voz dos oprimidos e é ele mesmo suprimido. “Vim trazer a divisão…”


PE. JOHAN KONINGS nasceu na Bélgica em 1941, onde se tornou Doutor em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina, ligado ao Colégio para a América Latina (Fidei Donum). Veio ao Brasil, como sacerdote diocesano, em 1972. Em 1985 entrou na Companhia de Jesus (Jesuítas) e, desde 1986, atuou como professor de exegese bíblica na FAJE, Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte. Faleceu no dia 21 de maio de 2022.  Este comentário é do livro “Liturgia Dominical, Editora Vozes.

Reflexão em vídeo de Frei Gustavo Medella