Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

1º Domingo da Quaresma

1º Domingo da Quaresma

Identificar as tentações

 

José Antonio Pagola

As tentações experimentadas por Jesus não são propriamente de ordem moral. São projetos nas quais lhe são propostas maneiras falsas de entender e viver sua missão. Por isso, sua reação nos serve de modelo para nosso comportamento moral, mas sobretudo nos alerta para não nos desviarmos da missão que Jesus confiou a seus seguidores.

Antes de mais nada, as tentações de Jesus nos ajudam a identificar com mais lucidez e responsabilidade as tentações pelas quais pode passar hoje sua Igreja e nós que a formamos. Como seremos uma Igreja fiel a Jesus se não estamos conscientes das tentações mais perigosas que nos podem desviar hoje de seu projeto e de seu estilo de vida?

Na primeira tentação, Jesus renuncia a utilizar Deus para “converter” as pedras em pães, saciando assim sua fome. Ele não seguirá esse caminho. Não viverá procurando seu próprio interesse. Não utilizará o Pai de maneira egoísta. Alimentar-se-á da Palavra de Deus. Apenas “multiplicará” os pães para saciar a fome das pessoas.

Esta é provavelmente a tentação mais grave dos cristãos dos países ricos: utilizar a religião para completar nosso bem-estar material, tranquilizar nossas consciências e esvaziar nosso cristianismo de compaixão, vivendo surdos à voz de Deus, que continua gritando para nós: “Onde estão os vossos irmãos?”

Na segunda tentação, Jesus renuncia a obter “poder e glória” sob a condição de submeter-se, como todos os poderosos, aos abusos, mentiras e injustiças nas quais se apoia o poder inspirado pelo “diabo”. O reino de Deus não é imposto,
ele é oferecido com amor. Ele só adorará o Deus dos pobres, fracos e indefesos.

Nestes tempos de perda de poder social é tentador para a Igreja procurar recuperar “o poder e a glória” de outros tempos, pretendendo inclusive um poder absoluto sobre a sociedade. Estamos perdendo uma oportunidade histórica de enveredar por um caminho novo de serviço humilde e de acompanhamento fraterno ao homem e à mulher de hoje, tão necessitados de amor e de esperança.

Na terceira tentação, Jesus renuncia a cumprir sua missão recorrendo ao êxito fácil e à ostentação. Ele não será um Messias triunfalista. Nunca porá Deus a serviço de sua vanglória. Estará entre os seus como aquele que serve.

Sempre será tentador, na Igreja, buscar o religioso para obter reputação, renome e prestígio. Poucas coisas são mais ridículas no seguimento de Jesus do que a ostentação e a busca de honras. Estas causam dano à Igreja e a esvaziam de verdade.


JOSÉ ANTONIO PAGOLA cursou Teologia e Ciências Bíblicas na Pontifícia Universidade Gregoriana, no Pontifício Instituto Bíblico de Roma e na Escola Bíblica e Arqueológica Francesa de Jerusalém. É autor de diversas obras de teologia, pastoral e cristologia. Atualmente é diretor do Instituto de Teologia e Pastoral de São Sebastião. Este comentário é do livro “O Caminho Aberto por Jesus”, da Editora Vozes.


Imagem ilustrativa de Frei Fábio Melo Vasconcelos

Mais do que vencer, o importante é manter o foco

Frei Gustavo Medella

Causou polêmica a comissão de frente da Escola de Samba Gaviões da Fiel, de São Paulo, ao trazer um passista fantasiado de diabo e um segundo caracterizado como Jesus sendo arrastado e jogado no chão pelo primeiro. Havia também um terceiro elemento fantasiado de anjo. De acordo com a contextualização do enredo, que levou para a avenida a história do tabaco, a caracterização fazia referência a Santo Antão, Pai da vida monástica que, segundo uma lenda, ao sugar o veneno da picada de uma serpente e cuspi-lo no chão, fez brotar as primeiras folhas de tabaco. Na hagiografia de Santo Antão, constam episódios em que ele no deserto combateu frente e frente com a figura do mal.

Parece que o alvo maior de indignação é que, na “batalha” que se seguiu na avenida, o diabo parecia sair vencedor sobre Jesus, que era arremessado e arrastado pelo chão sem maiores reações. Era por demais escandaloso e difícil de aceitar para as pessoas de fé que, “Aquele em quem depositaram sua confiança” aparecesse derrotado pelas forças contrárias. No entanto, quem busca acompanhar pelos Evangelhos a atuação e o comportamento de Jesus, dificilmente o verá preocupado em vencer qualquer tipo de batalha ou apresentando-se como alguém competitivo e ávido pela vitória.

O próprio texto do Evangelho deste Primeiro Domingo da Quaresma (Lc 4,1-13) não revela em Jesus uma figura preocupada em sair-se vencedora de um duelo contra o mal. No deserto, Ele apenas deixava-se conduzir pelo Espírito. A necessidade de ganhar a qualquer custo, de provar que era o mais forte, de apresentar-se como soberano – parece – era prioridade do diabo. No fundo, uma imensa falta de maturidade. Em Jesus, ao contrário, o único cuidado era o de não perder o foco, de não deixar escapar o fio condutor da missão amorosa que o Pai estava lhe confiando. E, neste objetivo, Jesus obtém êxito, não sem esforço, pois teve de superar a fome, o medo e certas inseguranças que seu lado humano carregava. E Ele superou.

Fica o ensinamento: lidar com as forças do mal, que gravitam dentro e fora de nós, não deve ser um exercício de combate, mas de concentração, de não perder o foco, de nos mantermos conectados à missão que o Senhor confia a nós como confiou a Jesus. Nosso Senhor é maduro o suficiente para não se deixar ofender por uma representação carnavalesca. Muito mais ofensivo ao coração de Deus são os gestos de desumanidade que têm aflorado com intensidade nos sombrios tempos que estamos vivendo. Para superá-los, precisamos, juntos, permanecer unidos a Jesus, com força, fé e foco.

Leituras bíblicas para este domingo

Primeira Leitura: Dt 26,4-10

Assim Moisés falou ao povo: 4“O sacerdote receberá de tuas mãos a cesta e a colocará diante do altar do Senhor teu Deus. 5Dirás, então, na presença do Senhor teu Deus: ‘Meu pai era um arameu errante, que desceu ao Egito com um punhado de gente e ali viveu como estrangeiro. Ali se tornou um povo grande, forte e numeroso. 6Os egípcios nos maltrataram e oprimiram, impondo-nos uma dura escravidão.

7Clamamos, então, ao Senhor, o Deus de nossos pais, e o Senhor ouviu a nossa voz e viu a nossa opressão, a nossa miséria e a nossa angústia. 8E o Senhor nos tirou do Egito com mão poderosa e braço estendido, no meio de grande pavor, com sinais e prodígios. 9E conduziu-nos a este lugar e nos deu esta terra, onde corre leite e mel.10Por isso, agora trago os primeiros frutos da terra que tu me deste, Senhor’. Depois de colocados os frutos diante do Senhor teu Deus, tu te inclinarás em adoração diante dele”.


Responsório (Sl 90)

— Em minhas dores, ó Senhor, permanecei junto de mim!

— Em minhas dores, ó Senhor, permanecei junto de mim!

— Quem habita ao abrigo do Altíssimo/ e vive à sombra do Senhor onipotente,/ diz ao Senhor: “Sois meu refúgio e proteção,/ sois o meu Deus, no qual confio inteiramente”.

— Nenhum mal há de chegar perto de ti,/ nem a desgraça baterá à tua porta;/ pois o Senhor deu uma ordem a seus anjos/ para em todos os caminhos te guardarem.

— Haverão de te levar em suas mãos,/ para o teu pé não se ferir nalguma pedra./ Passarás por sobre cobras e serpentes,/ pisarás sobre leões e outras feras.

— “Porque a mim se confiou, hei de livrá-lo/ e protegê-lo, pois meu nome ele conhece./ Ao invocar-me, hei de ouvi-lo e atendê-lo, e a seu lado eu estarei em suas dores”.


Segunda Leitura: Rm 10,8-13

Irmãos: que diz a Escritura? “A palavra está perto de ti, em tua boca e em teu coração”. Essa palavra é a palavra da fé, que nós pregamos.

9 Se, pois, com tua boca confessares Jesus como Senhor e, no teu coração, creres que Deus o ressuscitou dos mortos, serás salvo. 10É crendo no coração que se alcança a justiça e é confessando a fé com a boca que se consegue a salvação. 11Pois a Escritura diz: “Todo aquele que nele crer não ficará confundido”.

12Portanto, não importa a diferença entre judeu e grego; todos têm o mesmo Senhor, que é generoso para com todos os que o invocam. 13De fato, todo aquele que invocar o Nome do Senhor será salvo.


Evangelho: Lc 4,1-13

* 1 Repleto do Espírito Santo, Jesus voltou do rio Jordão, e era conduzido pelo Espírito através do deserto. 2 Aí ele foi tentado pelo diabo durante quarenta dias. Não comeu nada nesses dias e, depois disso, sentiu fome. 3 Então o diabo disse a Jesus: «Se tu és Filho de Deus, manda que essa pedra se torne pão.» 4 Jesus respondeu: «A Escritura diz: ‘Não só de pão vive o homem’.» 5 O diabo levou Jesus para o alto. Mostrou-lhe por um instante todos os reinos do mundo. 6 E lhe disse: «Eu te darei todo o poder e riqueza desses reinos, porque tudo isso foi entregue a mim, e posso dá-lo a quem eu quiser. 7 Portanto, se te ajoelhares diante de mim, tudo isso será teu.» 8 Jesus respondeu: «A Escritura diz: ‘Você adorará o Senhor seu Deus, e somente a ele servirá’.» 9 Depois o diabo levou Jesus a Jerusalém, colocou-o na parte mais alta do Templo. E lhe disse: «Se tu és Filho de Deus, joga-te daqui para baixo. 10 Porque a Escritura diz: ‘Deus ordenará aos seus anjos a teu respeito, que te guardem com cuidado’. 11 E mais ainda: ‘Eles te levarão nas mãos, para que não tropeces em nenhuma pedra’.» 12 Mas Jesus respondeu: «A Escritura diz: ‘Não tente o Senhor seu Deus’.» 13 Tendo esgotado todas as formas de tentação, o diabo se afastou de Jesus, para voltar no tempo oportuno.

* 4,1-13: Cf. nota em Mc 1,12-13 e em Mt 4,1-11. Lucas inverte a ordem das duas últimas tentações, porque em Jerusalém (Templo) é que acontecerá a suprema tentação e a vitória final sobre ela.

Bíblia Sagrada – Edição Pastoral

Reflexão do exegeta Frei Ludovico Garmus

1º Domingo da Quaresma 

Oração: “Concedei-nos, ó Deus onipotente, que, ao longo desta Quaresma, possamos progredir no conhecimento de Jesus Cristo e corresponder a seu amor por uma vida santa”.

  1. Primeira leitura: Gn 2,7-9; 3,1-7

Criação e pecado dos primeiros pais.

 Lemos hoje parte da segunda narrativa da criação. O texto não pretende dar uma explicação científica da origem do ser humano. Os capítulos 2 e 3 de Gênesis não contam a história de um indivíduo. Trazem, sim, uma mensagem profunda que se refere à vida de todas as pessoas. O Adão aqui representa a humanidade. A narrativa mostra a total dependência do ser humano de seu Criador, representada na imagem do oleiro (cf. Jr 18,1-6). Deus modela o ser humano a partir da terra fértil (húmus), sopra em suas narinas o sopro da vida. Depois planta um jardim com árvores e plantas de todas as espécies, entre elas a árvore da vida – à qual o homem tinha livre acesso – e a árvore do conhecimento do bem e do mal; dessa árvore o ser humano não devia comer o fruto: “No dia em que dela comeres… serás condenado a morrer” (Gn 2,17). Em seguida, Deus coloca o ser humano para cuidar do jardim que plantou. No texto hoje anunciado, o ser humano já aparece como homem e mulher, criados um para o outro, como auxílio, ajuda e companhia adequada (cf. 2,20-23). Agora são marido e mulher, ele e ela, complemento mútuo, um para o outro. A serpente mentirosa exerce a função do tentador e convence a mulher a desobedecer ao Criador: “No dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão – dizia a serpente – e vós sereis como Deus, conhecendo o bem e o mal”. No entanto, quando Adão e Eva desobedecem à ordem divina, os olhos deles se abrem e percebem a própria limitação (nudez, desamparo). O ser humano é mortal e limitado. Se Deus lhe tira o “sopro” de vida, volta ao pó do qual foi tirado (Sl 104,29-30). Não pode ocupar o lugar de seu Criador. No entanto, Deus não quer a morte do ser humano. Ele o criou livre, capaz de escolher entre o bem e o mal, entre a vida e a morte. Sem esta liberdade, jamais poderia escolher o bem e o Amor.

Salmo responsorial: Sl 50

Piedade, ó Senhor, tende piedade,

pois pecamos contra vós.

  1. Segunda leitura: Rm 5,12.17-19

Onde se multiplicou o pecado, aí superabundou a graça. 

A primeira leitura fala do pecado de Adão, que sucumbiu diante da tentação; e o evangelho narra as tentações de Jesus no deserto e como Ele as venceu. A segunda leitura compara a figura de Adão com a de Cristo. O pecado de Adão tornou pecadora toda a humanidade e gerou a morte. A fiel obediência de Jesus ao Pai, até a morte na cruz, gerou a vida divina para toda a humanidade. Deus torna justos, isto é, agradáveis a Deus, todos aqueles que acolhem com fé o dom gratuito de sua graça. Onde se multiplicou o pecado de Adão na humanidade pecadora, muito mais se multiplicou a graça em Jesus. Todos somos pecadores, condenados a morrer como filhos de Adão. Mas Jesus, o novo Adão, tomou o lugar de todos os pecadores, venceu a morte e conquistou para todos a vida eterna, na comunhão com Deus.

Aclamação ao Evangelho

     Louvor e glória a ti, Senhor, Cristo, Palavra de Deus.

      O homem não vive somente de pão,

      Mas de toda a palavra da boca de Deus.

  1. Evangelho: Mt 4,1-11

Jesus jejuou durante quarenta dias e foi tentado.

Depois de ser batizado por João, Jesus é tomado pelo Espírito de Deus e conduzido ao deserto. Passa aí quarenta dias e quarenta noites em jejum e oração e é tentando pelo diabo. Na primeira tentação o diabo sugere a Jesus que transforme as pedras em pão, se é de fato o Filho de Deus. E Jesus responde que o ser humano não vive somente de pão, “mas de toda a palavra que sai da boca de Deus”. A segunda tentação está ligada à “fome” de glória. O diabo sugere a Jesus que se jogue do ponto mais alto do Templo, diante de todo o povo, como prova que é Filho de Deus; certamente nada lhe aconteceria porque os anjos viriam em seu socorro. Jesus responde com a Escritura: “Não tentarás o Senhor teu Deus”. A terceira tentação se refere à “fome” de dinheiro e poder. O diabo leva Jesus ao alto de um monte e lhe mostra todas as riquezas do mundo e diz: “Tudo isso eu te darei, se te ajoelhares diante de mim, para me adorar”. E Jesus diz: “Adorarás ao Senhor teu Deus e somente a ele servirás”. São três tentações como formas de ser o Messias, mas Jesus escolheu ser o Messias, Servo Sofredor.

No deserto Jesus define as linhas orientadoras de sua missão. Para resolver o problema da fome de pão Jesus propõe a partilha do pão e a conversão para o Evangelho do Reino de Deus. Para a tentação da glória, Jesus propõe o amor ao próximo como serviço humilde. A terceira tentação é a de querer ser igual a Deus, como a serpente sugeriu para Adão e Eva (1ª leitura). A missão de Jesus se caracteriza pela luta constante contra o pretenso reinado do diabo neste mundo (v. 9), anunciando o evangelho do Reino de Deus. Ao final da 3ª tentação Jesus expulsa o diabo, prenúncio das expulsões de demônios durante sua vida pública.

Jesus exige de seus discípulos, de ontem e de hoje, uma opção básica: Ceder às tentações do diabo ou seguir firmemente a Jesus Cristo no caminho das práticas do Reino de Deus. “Não podeis servir a Deus e às riquezas” (Mt 6,24).


FREI LUDOVICO GARMUS, OFMé professor de Exegese Bíblica do Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis (RJ). Fez mestrado em Sagrada Escritura, em Roma, e doutorado em Teologia Bíblica pelo Studium Biblicum Franciscanum de Jerusalém, do Pontifício Ateneu Antoniano. É diretor industrial da Editora Vozes e editor da Revista “Estudos Bíblicos”, editada pela Vozes. Entre seus trabalhos está a coordenação geral e tradução da Bíblia Sagrada da Vozes.

Quem pode ensinar o que Deus deve fazer?

Frei Clarêncio Neotti

A terceira tentação toca num dos sentimentos mais caros de Jesus: a confiança no Pai do Céu. O demônio o chama de “Filho de Deus” (v. 9). Essa verdade evoca no coração de Jesus um mar de sensações e relacionamentos. Mais tarde, ele diria: “Todo o poder me foi dado nos céus e na terra” (Mt 28, 18). Se tinha todo o poder, por que não se tornar um messias taumaturgo? Um Cristo pairando no ar, na praça do templo, teria certamente bem mais seguidores que um Cristo pregado numa cruz, fora da cidade, entre criminosos. Mas essa é uma velha tentação: querer impor a Deus o que ele deve fazer. Essa presunção não se coadunava com a missão de Jesus, que viera “para fazer a vontade do Pai” (Hb 10, 9).

E a vontade do Pai passava pelo sofrimento e morte. Vem à mente o Jardim das Oliveiras. Diante da proximidade da hora, embora carregado de angústias, Jesus repete ao Pai: “Não se faça a minha vontade, mas a tua” (Lc 22,42). O demônio tentador, ao deixá-lo hoje, prometeu voltar “em momento oportuno” (v. 13). Lendo a Paixão, vemos que o momento oportuno foi aquele final de semana, quando Satanás tomou conta do coração de Judas (Jo 13,27), procurou apossar-se de Pedro (Lc 22,31), dispersou os Apóstolos (Mc 14, 50). O próprio Jesus chamou sua prisão de “hora do poder das trevas” (Lc 22,53). Mas acabou se realizando sua promessa: “Quando eu for crucificado, atrairei todos a mim” (Jo 12,32).


FREI CLARÊNCIO NEOTTI, OFMentrou na Ordem Franciscana no dia 23 de dezembro de 1954. Durante 20 anos, trabalhou na Editora Vozes, em Petrópolis. É membro fundador da União dos Editores Franciscanos e vigário paroquial no Santuário do Divino Espírito Santo (ES). Escritor e jornalista, é autor de vários livros e este comentário é do livro “Ministério da Palavra – Comentários aos Evangelhos dominicais e Festivos”, da Editora Santuário.

Tentação, deserto, Quaresma

Frei Almir Guimarães

Antes de mais nada, as tentações de Jesus nos ajudam a identificar com mais lucidez e responsabilidade as tentações pelas quais pode passar hoje sua Igreja e nós que a formamos. Como seremos uma Igreja fiel a Jesus se não estamos conscientes das tentações mais perigosas que nos podem desviar hoje de seu projeto e de seu estilo de vida? José Antonio Pagola

♦ O primeiro domingo da Quaresma sempre coloca diante de nossos olhos a figura de Jesus sendo tentado no deserto. Esse é o teor do Evangelho de Lucas hoje proclamado. Tentações de Jesus e nossas tentações. A primeira leitura, por sua vez, é uma profissão de fé na bondade de Deus que fez Israel atravessar o deserto e chegar à terra prometida. “Meu pai era um arameu errante que desceu do Egito com um punhado de gente e ali viveu como estrangeiro. Ali se tornou um povo grande, forte e numeroso. Os egípcios nos maltrataram e oprimiram impondo-nos uma dura escravidão”.

♦ Houve a libertação. Houve o tempo do deserto. Israel viveu a festa da volta. Deveria percorrer o deserto até chegar o destino. Deserto, no entanto das coisas duras. Falta de água, falta de comida, falta de certeza de que o empreendimento iria dar certo. Infidelidades. Desconfiança de Deus e de Moisés. O povo começa a fabricar um bezerro de ouro e cultuar essa imagem de metal. Não tem paciência de esperar a realização da promessa. Moisés intercede por este povo de cabeça dura. Um povo que irrita o próprio Deus.

♦ Na primeira tentação, Jesus recusa de atender à solicitação do diabo de transformar pedras em pão. A pessoa precisa, comer mas nem só pão vive o homem. Na segunda tentação, o inimigo sugere a Jesus o poder. Jesus, por sua vez, quer introduzir os homens num reino de justiça e de amor. A terceira tentação é solicitação para que Jesus provoque a Deus. Que ele se jogasse monte abaixo. Afinal de contas, o Senhor o tomaria pelas mãos. Jesus responde que não se tenta a Deus.

♦ Tentações de Jesus, nossas tentações. A satisfação das necessidades materiais não constitui o objetivo de nossa vida. A felicidade última do ser humano não consiste no desfrute e posse dos bens. Homem e mulher vão se tornando humanos quando aprendem a ouvir a Palavra do Pai. O ser humano existe para compartilhar e não possuir, dar e não reter, criar vida e não explorar o irmão.

♦ O sentido da vida não é buscar o poder, o mando, a dominação, o êxito pessoal a todo custo. Segundo Jesus, a pessoa acerta quando não busca seu próprio prestigio e poder, na competição e na rivalidade, mas quando é capaz de viver o serviço generoso e desinteressado.

♦ Deve-se resistir à tentação de querer milagres e manifestações extraordinárias de Deus a nosso favor. Não se pode tentar a Deus. O problema último da vida não se resolve sem riscos, lutas e esforços. Nada de fazer de Deus um mágico que venha resolver nossos problemas. A verdadeira fé não nos conduz à passividade, a deixar tudo a cargo de um Deus que imaginamos estar à nossa disposição. Quem compreendeu um pouco o que é ser fiel a Deus arrisca-se na luta pela justiça, paz e verdade.

♦ A Quaresma é tempo de examinar nossas tentações. Quaresma tempo de arrumar nossa vida. Quais seriam algumas de nossas tentações?

◊ Em nossa vida, por vezes, temos a tentação de deixar de lado empenhos e expedientes de vivência cristã porque “sentimos” Deus distante, não ouvindo nossos rogos e apelos. Vivemos então na repetição monótona até mesmo de gestos religiosos mas colocados sem alma. Tentação de parar no meio da estrada e sentir saudades das panelas do Egito.

◊ Estamos por demais envolvidos no mundo dinheiro, do ter, do usufruir as coisas, dos bens, do garantir o futuro, do acúmulo de bens nem sempre necessários. Não precisamos entrar em detalhes: gastança, consumismo, mercado, sofisticação. Seres epidérmicos e superficiais. Sem saudades porque anestesiados pela sociedade do ter.

◊ Grave tentação é a da indiferença. Não queremos esforçarmo-nos. Que tudo continue girando, o mundo, as pessoas… Esses outros, de perto e de longe, queremos que não nos perturbem. Imersos em nosso mundo pessoal e de pequenos interesses, movimentação incessantemente a telinha do celular, deixamos que as “pessoas se virem”. ApatiA. Inércia.

◊ Há ainda essa sutil tentação de não enfrentar nosso mistério pessoal, de fazer constantes viagens ao mais profundo de nós mesmos, na auscultação dos desejos mais profundos e com medo de que assim tenhamos que fazer opções que não queremos acolher. Tentação do medo de lançar-se na aventura da vida como Abraão.

◊ Tentação da intolerância. Tudo muda. Muda o mundo, mudam as pessoas, mudam os comportamentos. Há a tentação de intransigência em todos os níveis: no seio da família, na rejeição de comportamentos diferentes de nosso modo de ver as coisas, tentação do fanatismo religioso que em nome de Deus mata. Necessário se faz criar um clima de diálogo sereno, humilde e respeitoso.

◊ Nos diferentes níveis da vida e da sociedade há a tentação do poder, da busca do prestígio e da força em detrimento dos outros. Terrível tentação que gera excluídos e suscita ódios pessoais, grupais e nacionais. Sempre de novo os cristãos sabem que precisam andar com uma bacia a lavar os pés das pessoas e enxuga-los com seu carinho.

◊ Tentação de ter, de lucro e de poder que se manifesta na falta de apreço pela natureza. Desejo de fazer prédios, destruir por causa do agronegócio. Tentação terrível porque somos responsáveis de deixar a casa arrumada para os próximos habitantes.


Oração
Perdão, Senhor, porque somos pessimistas
e reparamos quase sempre o negativo.
Perdão, porque somos covardes e logo nos assustamos.
Perdão porque somos autossuficientes
e confiamos só em nossas forças.
Perdão porque somos céticos
e nos custa crer e confiar em ti.
Perdão, porque não olhamos para o futuro,
ocupados e preocupados apenas com o presente.
Perdão, porque nos queixamos de tudo.
Perdão, porque fugimos do esforço
e logo nos cansamos.
Perdão porque queremos tudo já e
não sabemos esperar.


FREI ALMIR GUIMARÃES, OFMingressou na Ordem Franciscana em 1958. Estudou catequese e pastoral no Institut Catholique de Paris, a partir de 1966, período em que fez licenciatura em Teologia. Em 1974, voltou a Paris para se doutorar em Teologia. Tem diversas obras sobre espiritualidade, sobretudo na área da Pastoral familiar. É o editor da Revista “Grande Sinal”.

Treinamento de fé

Pe. Johan Konings

Devidamente desacelerados do Carnaval, celebramos o 1º domingo da Quaresma. Aos mais velhos, “Quaresma” lembra jejum e penitência. Mas Isaías diz que Deus não se alegra com uma cara abatida. Talvez devamos encarar a Quaresma sob outro ângulo: como treinamento da fé. Em que acreditamos, afinal? Por qual convicção colocamos a mão no fogo, resistimos a provações, empenhamos a nossa vida?

Na sua origem, a Quaresma era o tempo de preparação dos catecúmenos para receber o batismo na noite pascal. Neste sentido, a 1ª leitura nos lembra o “credo” que o antigo israelita pronunciava na hora de oferecer os primeiros frutos de sua terra: o povo foi salvo por Deus. A 2ª leitura lembra o credo do cristão (que o batizando com toda a comunidade pronunciava na noite pascal): nossa salvação pela fé em Jesus Cristo. O evangelho mostra este credo em ação: Jesus dá o exemplo de adoração exclusiva a Deus. Jesus foi posto à prova. O diabo lhe sugeriu que transformasse pedras em pão, dominasse o mundo, deslumbrasse o povo … Mas Jesus preferiu fazer de sua vida um grande ato de adoração a Deus. E o diabo o deixou até a hora da grande provação – a hora da paixão e morte.

A Quaresma é uma subida à Páscoa, como os israelitas subiam a Jerusalém para oferecer suas ofertas e como Jesus subiu para oferecer sua vida. Nossa subida à Páscoa está sob o signo da provação e comprovação de nossa fé. Encaminhamo-nos para a grande renovação de nossa opção de fé. Se, nos primeiros tempos da Igreja, a Quaresma era preparação para o batismo e a profissão de fé, para nós é caminhada de aprofundamento e renovação de nossa fé. Pois uma fé que não passa por nenhuma prova e não vence nenhuma tentação pode se tomar acomodada, morta. Ora, a renovação de nossa opção de fé não acontece na base de algum exercício piedoso ou cursinho teórico. É uma luta, como foi a tentação de Jesus no deserto, ao longo de quarenta dias. A fé se confirma e se aprofunda em sucessivas decisões, como as de Jesus, quando resistia com firmeza e perspicácia às tentações mais sutis: riqueza, poder, sucesso.

Precisamos de treinamento em nossa opção por Deus. Antigamente, esse treinamento consistia no jejum, na mortificação corporal. Mas em nossa situação da América Latina, empobrecida e desigual, o treinamento da opção da fé se realiza sobretudo na sempre renovada opção pelos pobres e excluídos, no adestramento para a solidariedade cristã. A Campanha da Fraternidade nos treina para colocar nossa fé em prática. Adestra-nos para enfrentar os demônios de hoje, a tentação da idolatria da riqueza, da dominação, da discriminação, da competição. Exercitamos a nossa opção de fé, praticando-a na solidariedade fraterna, para, com Jesus, chegar à doação da própria vida, na hora da grande prova. Quem não se exercitar, talvez não saberá resistir.


PE. JOHAN KONINGS nasceu na Bélgica em 1941, onde se tornou Doutor em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina, ligado ao Colégio para a América Latina (Fidei Donum). Veio ao Brasil, como sacerdote diocesano, em 1972. Em 1985 entrou na Companhia de Jesus (Jesuítas) e, desde 1986, atuou como professor de exegese bíblica na FAJE, Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte. Faleceu no dia 21 de maio de 2022.  Este comentário é do livro “Liturgia Dominical, Editora Vozes.

Reflexão em vídeo de Frei Gustavo Medella