1º Domingo da Quaresma

- 1º Domingo da Quaresma
- Leituras bíblicas para este domingo
- Reflexão do exegeta Frei Ludovico Garmus
- Quem pode ensinar o que Deus deve fazer?
- Tentação, deserto, Quaresma
- Treinamento de fé
- Reflexão em vídeo de Frei Gustavo Medella
1º Domingo da Quaresma
Identificar as tentações
José Antonio Pagola
As tentações experimentadas por Jesus não são propriamente de ordem moral. São projetos nas quais lhe são propostas maneiras falsas de entender e viver sua missão. Por isso, sua reação nos serve de modelo para nosso comportamento moral, mas sobretudo nos alerta para não nos desviarmos da missão que Jesus confiou a seus seguidores.
Antes de mais nada, as tentações de Jesus nos ajudam a identificar com mais lucidez e responsabilidade as tentações pelas quais pode passar hoje sua Igreja e nós que a formamos. Como seremos uma Igreja fiel a Jesus se não estamos conscientes das tentações mais perigosas que nos podem desviar hoje de seu projeto e de seu estilo de vida?
Na primeira tentação, Jesus renuncia a utilizar Deus para “converter” as pedras em pães, saciando assim sua fome. Ele não seguirá esse caminho. Não viverá procurando seu próprio interesse. Não utilizará o Pai de maneira egoísta. Alimentar-se-á da Palavra de Deus. Apenas “multiplicará” os pães para saciar a fome das pessoas.
Esta é provavelmente a tentação mais grave dos cristãos dos países ricos: utilizar a religião para completar nosso bem-estar material, tranquilizar nossas consciências e esvaziar nosso cristianismo de compaixão, vivendo surdos à voz de Deus, que continua gritando para nós: “Onde estão os vossos irmãos?”
Na segunda tentação, Jesus renuncia a obter “poder e glória” sob a condição de submeter-se, como todos os poderosos, aos abusos, mentiras e injustiças nas quais se apoia o poder inspirado pelo “diabo”. O reino de Deus não é imposto,
ele é oferecido com amor. Ele só adorará o Deus dos pobres, fracos e indefesos.
Nestes tempos de perda de poder social é tentador para a Igreja procurar recuperar “o poder e a glória” de outros tempos, pretendendo inclusive um poder absoluto sobre a sociedade. Estamos perdendo uma oportunidade histórica de enveredar por um caminho novo de serviço humilde e de acompanhamento fraterno ao homem e à mulher de hoje, tão necessitados de amor e de esperança.
Na terceira tentação, Jesus renuncia a cumprir sua missão recorrendo ao êxito fácil e à ostentação. Ele não será um Messias triunfalista. Nunca porá Deus a serviço de sua vanglória. Estará entre os seus como aquele que serve.
Sempre será tentador, na Igreja, buscar o religioso para obter reputação, renome e prestígio. Poucas coisas são mais ridículas no seguimento de Jesus do que a ostentação e a busca de honras. Estas causam dano à Igreja e a esvaziam de verdade.
JOSÉ ANTONIO PAGOLA cursou Teologia e Ciências Bíblicas na Pontifícia Universidade Gregoriana, no Pontifício Instituto Bíblico de Roma e na Escola Bíblica e Arqueológica Francesa de Jerusalém. É autor de diversas obras de teologia, pastoral e cristologia. Atualmente é diretor do Instituto de Teologia e Pastoral de São Sebastião. Este comentário é do livro “O Caminho Aberto por Jesus”, da Editora Vozes.
Imagem ilustrativa de Frei Fábio Melo Vasconcelos
Leituras bíblicas para este domingo
Primeira Leitura: Dt 26,4-10
Assim Moisés falou ao povo: 4“O sacerdote receberá de tuas mãos a cesta e a colocará diante do altar do Senhor teu Deus. 5Dirás, então, na presença do Senhor teu Deus: ‘Meu pai era um arameu errante, que desceu ao Egito com um punhado de gente e ali viveu como estrangeiro. Ali se tornou um povo grande, forte e numeroso. 6Os egípcios nos maltrataram e oprimiram, impondo-nos uma dura escravidão.
7Clamamos, então, ao Senhor, o Deus de nossos pais, e o Senhor ouviu a nossa voz e viu a nossa opressão, a nossa miséria e a nossa angústia. 8E o Senhor nos tirou do Egito com mão poderosa e braço estendido, no meio de grande pavor, com sinais e prodígios. 9E conduziu-nos a este lugar e nos deu esta terra, onde corre leite e mel.10Por isso, agora trago os primeiros frutos da terra que tu me deste, Senhor’. Depois de colocados os frutos diante do Senhor teu Deus, tu te inclinarás em adoração diante dele”.
Responsório (Sl 90)
— Em minhas dores, ó Senhor, permanecei junto de mim!
— Em minhas dores, ó Senhor, permanecei junto de mim!
— Quem habita ao abrigo do Altíssimo/ e vive à sombra do Senhor onipotente,/ diz ao Senhor: “Sois meu refúgio e proteção,/ sois o meu Deus, no qual confio inteiramente”.
— Nenhum mal há de chegar perto de ti,/ nem a desgraça baterá à tua porta;/ pois o Senhor deu uma ordem a seus anjos/ para em todos os caminhos te guardarem.
— Haverão de te levar em suas mãos,/ para o teu pé não se ferir nalguma pedra./ Passarás por sobre cobras e serpentes,/ pisarás sobre leões e outras feras.
— “Porque a mim se confiou, hei de livrá-lo/ e protegê-lo, pois meu nome ele conhece./ Ao invocar-me, hei de ouvi-lo e atendê-lo, e a seu lado eu estarei em suas dores”.
Segunda Leitura: Rm 10,8-13
Irmãos: que diz a Escritura? “A palavra está perto de ti, em tua boca e em teu coração”. Essa palavra é a palavra da fé, que nós pregamos.
9 Se, pois, com tua boca confessares Jesus como Senhor e, no teu coração, creres que Deus o ressuscitou dos mortos, serás salvo. 10É crendo no coração que se alcança a justiça e é confessando a fé com a boca que se consegue a salvação. 11Pois a Escritura diz: “Todo aquele que nele crer não ficará confundido”.
12Portanto, não importa a diferença entre judeu e grego; todos têm o mesmo Senhor, que é generoso para com todos os que o invocam. 13De fato, todo aquele que invocar o Nome do Senhor será salvo.
Evangelho: Lc 4,1-13
* 1 Repleto do Espírito Santo, Jesus voltou do rio Jordão, e era conduzido pelo Espírito através do deserto. 2 Aí ele foi tentado pelo diabo durante quarenta dias. Não comeu nada nesses dias e, depois disso, sentiu fome. 3 Então o diabo disse a Jesus: «Se tu és Filho de Deus, manda que essa pedra se torne pão.» 4 Jesus respondeu: «A Escritura diz: ‘Não só de pão vive o homem’.» 5 O diabo levou Jesus para o alto. Mostrou-lhe por um instante todos os reinos do mundo. 6 E lhe disse: «Eu te darei todo o poder e riqueza desses reinos, porque tudo isso foi entregue a mim, e posso dá-lo a quem eu quiser. 7 Portanto, se te ajoelhares diante de mim, tudo isso será teu.» 8 Jesus respondeu: «A Escritura diz: ‘Você adorará o Senhor seu Deus, e somente a ele servirá’.» 9 Depois o diabo levou Jesus a Jerusalém, colocou-o na parte mais alta do Templo. E lhe disse: «Se tu és Filho de Deus, joga-te daqui para baixo. 10 Porque a Escritura diz: ‘Deus ordenará aos seus anjos a teu respeito, que te guardem com cuidado’. 11 E mais ainda: ‘Eles te levarão nas mãos, para que não tropeces em nenhuma pedra’.» 12 Mas Jesus respondeu: «A Escritura diz: ‘Não tente o Senhor seu Deus’.» 13 Tendo esgotado todas as formas de tentação, o diabo se afastou de Jesus, para voltar no tempo oportuno.
* 4,1-13: Cf. nota em Mc 1,12-13 e em Mt 4,1-11. Lucas inverte a ordem das duas últimas tentações, porque em Jerusalém (Templo) é que acontecerá a suprema tentação e a vitória final sobre ela.
Bíblia Sagrada – Edição Pastoral
Reflexão do exegeta Frei Ludovico Garmus
1º Domingo da Quaresma
Oração: “Concedei-nos, ó Deus onipotente, que, ao longo desta Quaresma, possamos progredir no conhecimento de Jesus Cristo e corresponder a seu amor por uma vida santa”.
1 Primeira leitura: Dt 26,4-10
Profissão de fé do povo eleito
No livro do Deuteronômio, Moisés apresenta pela segunda vez a Lei que Israel devia observar, após tomar posse da terra prometida. O texto que hoje ouvimos foi extraído do capítulo 26, que conclui o segundo dos cinco discursos de Moisés que compõe o livro. O texto apresenta o rito seguido quando se ofereciam os primeiros frutos da terra (primícias). Para agradecer a Deus pelo dom da terra, o israelita dirigia-se ao santuário e apresentava ao sacerdote uma cesta com os primeiros frutos do início de sua colheita. Nessa ocasião, fazia uma “profissão de fé”, recordando os grandes feitos do Senhor em favor de seu povo. Esta profissão de fé é por alguns considerada como o “pequeno credo histórico” de Israel.
Este credo está focado no êxodo do Egito, no dom da libertação e nos compromissos que o povo libertado assume. Lembra a eleição divina de Jacó/Israel, a descida do Egito, o aumento dos filhos de Israel, a opressão do povo, a libertação pela mão poderosa do Senhor, a condução pelo deserto e o dom da terra “onde corre leite e mel”. Pronunciada a profissão de fé, o israelita explicava o sentido de sua oferta: “Por isso, agora eu trago os primeiros frutos da terra que tu me deste, Senhor”, e prostrava-se em adoração. O “credo” não cita uma fórmula de verdades abstratas, mas lembra os principais atos salvíficos de Deus em favor do povo de Israel.
A Palavra de Deus ouvida e explicada na homilia é um convite para rezar o “Credo”, com o coração agradecido a Deus por tudo que faz nossa vida e na vida da Igreja.
Salmo responsorial: SL 90
Em minhas dores, ó Senhor, permanecei junto de mim!
2 Segunda leitura: Rm 10,8-13
Profissão de fé dos que creem em Cristo
Paulo não fundou a comunidade cristã de Roma, formada por cristãos provenientes da Palestina e da Síria, além de romanos. Entre eles certamente, havia cristãos de origem judaica. Paulo desejava conhecer esta comunidade florescente, não para ali permanecer, mas como uma ponte para levar a boa-nova de Cristo até a Espanha. Antes de chegar a Roma, na Carta aos Romanos, Paulo explica à comunidade cristã de Roma o “Evangelho” que ele costuma pregar nas igrejas por ele fundadas. Segundo seu Evangelho, Cristo Jesus, o Messias esperado não veio apenas para salvar os judeus. Em Cristo Jesus, a boa-nova da salvação está aberta a judeus e pagãos. Não importa a diferença entre judeu e grego, todos têm o mesmo Senhor, que é generoso para com todos que o invocam. Por isso, observar a lei de Moisés é condição para tornar-se cristão. A fé em Cristo, esta sim, é que salva. “Se com tua boca confessares Jesus como o Senhor e, no teu coração, creres que Deus o ressuscitou dos mortos, serás salvo”. No entanto, não basta confessar a fé da boca para fora. Somos discípulos de Cristo e ele nos convida a seguir seu exemplo e praticar as obras de misericórdia que ele praticou (ef. G1 5,13-26; Tg 2,14-26).
Aclamação ao Evangelho: Mt 4,4b
Louvor e glória a ti, Senhor, Cristo, Palavra de Deus.
3 Evangelho: Lc 4,1-13
Jesus, no deserto, era guiado pelo Espirito e foi tentado.
Ao ser batizado por João, Jesus é apresentado pelo Pai como seu Filho: “Tu és o meu Filho amado, de ti eu me agrado” (Lc 3,21-22). Logo em seguida, Lucas introduz a genealogia de Jesus. A genealogia de Lucas começa com José e segue em linha ascendente: “Ao iniciar seu ministério, Jesus tinha uns 30 anos; filho, segundo se pensava, de Jose” (cf. Lc 4,22), passa por Davi, por Abraão e pelos patriarcas, até chegar a Deus: “[…] (filho) de Enós, de Set, de Adão, (filho) de Deus” (3.23-38), Só então segue a narrativa das tentações sofridas por Jesus, que hoje ouvimos (4,1-11). Jesus é levado ao deserto pelo Espirito Santo, que pousou sobre ele após o batismo. É o Filho de Deus que se confronta com o tentador. De fato, nas duas primeiras tentações o diabo chama Jesus de Filho de Deus: “Se és Filho de Deus […]”.
Na primeira tentação o diabo sugere a Jesus, que estava com fome, que usasse seu poder divino e transformasse pedras em pão. Jesus responde: “A Escritura diz: “Não só de pão vive o homem”. O Filho de Deus não usa seu poder para ser servido, mas para servir. Jesus não veio para resolver sozinho o problema do pão. No milagre da multiplicação dos pães, Jesus não transformou pedras em pão, mas dividiu os cinco pães e dois peixes, trazidos por um menino pobre, e os partilhou com mais de cinco mil pessoas. Esse é o milagre, que Jesus propõe como desafio a todos nós, é possível quando nos alimentarmos com a Palavra de Deus. Na segunda tentação o diabo promete entregar a Jesus todo o poder e glória, todas as riquezas e bens deste mundo, com a condição que, prostrado, o adorasse. Novamente Jesus responde com a Escritura: “Adorarás o Senhor teu Deus, e só a ele servirás”. Há muita gente que sucumbe a esta tentação. Coloca as riquezas no lugar de Deus, adora-as e torna-se incapaz de partilhá-las com os necessitados: “Não podeis servir a Deus e às riquezas” (Lc 16,13). “Onde estiver vosso tesouro, aí também estará o coração” (Mt 6,21). Deus nos criou para amá-lo e servi-lo de todo o coração, para amar e servir ao próximo como a nós mesmos.
Na terceira tentação o diabo levou Jesus ao Templo, onde os judeus cantavam salmos, serviam e adoravam a Deus. Era o lugar sagrado que Jesus, aos 12 anos, chamou de “casa do meu Pai”. Mas o tentador coloca Jesus no ponto mais alto do Templo e diz: “Se és Filho de Deus. atira-te daqui para baixo”. E cita um salmo de confiança: “Deus ordenará aos seus anjos a teu respeito, que te guardem com cuidado”. E Jesus responde: “A Escritura diz: Não tentarás o Senhor teu Deus”. – O Templo, para Jesus, é o lugar de encontro com Deus, e não um palco para dar espetáculo. O Filho de Deus na sua condição divina não veio para suspender as leis da natureza. Ao contrário, assume a natureza humana em Jesus de Nazaré, para tornar-se solidário com os seres humanos, em tudo, menos no pecado (cf. Fl 2,5-11).
FREI LUDOVICO GARMUS, OFM, é professor de Exegese Bíblica do Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis (RJ). Fez mestrado em Sagrada Escritura, em Roma, e doutorado em Teologia Bíblica pelo Studium Biblicum Franciscanum de0 Jerusalém, do Pontifício Ateneu Antoniano. É diretor industrial da Editora Vozes e editor da Revista “Estudos Bíblicos”, editada pela Vozes. Entre seus trabalhos está a coordenação geral e tradução da Bíblia Sagrada da Vozes.
Quem pode ensinar o que Deus deve fazer?
Frei Clarêncio Neotti
A terceira tentação toca num dos sentimentos mais caros de Jesus: a confiança no Pai do Céu. O demônio o chama de “Filho de Deus” (v. 9). Essa verdade evoca no coração de Jesus um mar de sensações e relacionamentos. Mais tarde, ele diria: “Todo o poder me foi dado nos céus e na terra” (Mt 28, 18). Se tinha todo o poder, por que não se tornar um messias taumaturgo? Um Cristo pairando no ar, na praça do templo, teria certamente bem mais seguidores que um Cristo pregado numa cruz, fora da cidade, entre criminosos. Mas essa é uma velha tentação: querer impor a Deus o que ele deve fazer. Essa presunção não se coadunava com a missão de Jesus, que viera “para fazer a vontade do Pai” (Hb 10, 9).
E a vontade do Pai passava pelo sofrimento e morte. Vem à mente o Jardim das Oliveiras. Diante da proximidade da hora, embora carregado de angústias, Jesus repete ao Pai: “Não se faça a minha vontade, mas a tua” (Lc 22,42). O demônio tentador, ao deixá-lo hoje, prometeu voltar “em momento oportuno” (v. 13). Lendo a Paixão, vemos que o momento oportuno foi aquele final de semana, quando Satanás tomou conta do coração de Judas (Jo 13,27), procurou apossar-se de Pedro (Lc 22,31), dispersou os Apóstolos (Mc 14, 50). O próprio Jesus chamou sua prisão de “hora do poder das trevas” (Lc 22,53). Mas acabou se realizando sua promessa: “Quando eu for crucificado, atrairei todos a mim” (Jo 12,32).
FREI CLARÊNCIO NEOTTI, OFM, entrou na Ordem Franciscana no dia 23 de dezembro de 1954. Durante 20 anos, trabalhou na Editora Vozes, em Petrópolis. É membro fundador da União dos Editores Franciscanos e vigário paroquial no Santuário do Divino Espírito Santo (ES). Escritor e jornalista, é autor de vários livros e este comentário é do livro “Ministério da Palavra – Comentários aos Evangelhos dominicais e Festivos”, da Editora Santuário.
Tentação, deserto, Quaresma
Frei Almir Guimarães
Antes de mais nada, as tentações de Jesus nos ajudam a identificar com mais lucidez e responsabilidade as tentações pelas quais pode passar hoje sua Igreja e nós que a formamos. Como seremos uma Igreja fiel a Jesus se não estamos conscientes das tentações mais perigosas que nos podem desviar hoje de seu projeto e de seu estilo de vida? José Antonio Pagola
♦ O primeiro domingo da Quaresma sempre coloca diante de nossos olhos a figura de Jesus sendo tentado no deserto. Esse é o teor do Evangelho de Lucas hoje proclamado. Tentações de Jesus e nossas tentações. A primeira leitura, por sua vez, é uma profissão de fé na bondade de Deus que fez Israel atravessar o deserto e chegar à terra prometida. “Meu pai era um arameu errante que desceu do Egito com um punhado de gente e ali viveu como estrangeiro. Ali se tornou um povo grande, forte e numeroso. Os egípcios nos maltrataram e oprimiram impondo-nos uma dura escravidão”.
♦ Houve a libertação. Houve o tempo do deserto. Israel viveu a festa da volta. Deveria percorrer o deserto até chegar o destino. Deserto, no entanto das coisas duras. Falta de água, falta de comida, falta de certeza de que o empreendimento iria dar certo. Infidelidades. Desconfiança de Deus e de Moisés. O povo começa a fabricar um bezerro de ouro e cultuar essa imagem de metal. Não tem paciência de esperar a realização da promessa. Moisés intercede por este povo de cabeça dura. Um povo que irrita o próprio Deus.
♦ Na primeira tentação, Jesus recusa de atender à solicitação do diabo de transformar pedras em pão. A pessoa precisa, comer mas nem só pão vive o homem. Na segunda tentação, o inimigo sugere a Jesus o poder. Jesus, por sua vez, quer introduzir os homens num reino de justiça e de amor. A terceira tentação é solicitação para que Jesus provoque a Deus. Que ele se jogasse monte abaixo. Afinal de contas, o Senhor o tomaria pelas mãos. Jesus responde que não se tenta a Deus.
♦ Tentações de Jesus, nossas tentações. A satisfação das necessidades materiais não constitui o objetivo de nossa vida. A felicidade última do ser humano não consiste no desfrute e posse dos bens. Homem e mulher vão se tornando humanos quando aprendem a ouvir a Palavra do Pai. O ser humano existe para compartilhar e não possuir, dar e não reter, criar vida e não explorar o irmão.
♦ O sentido da vida não é buscar o poder, o mando, a dominação, o êxito pessoal a todo custo. Segundo Jesus, a pessoa acerta quando não busca seu próprio prestigio e poder, na competição e na rivalidade, mas quando é capaz de viver o serviço generoso e desinteressado.
♦ Deve-se resistir à tentação de querer milagres e manifestações extraordinárias de Deus a nosso favor. Não se pode tentar a Deus. O problema último da vida não se resolve sem riscos, lutas e esforços. Nada de fazer de Deus um mágico que venha resolver nossos problemas. A verdadeira fé não nos conduz à passividade, a deixar tudo a cargo de um Deus que imaginamos estar à nossa disposição. Quem compreendeu um pouco o que é ser fiel a Deus arrisca-se na luta pela justiça, paz e verdade.
♦ A Quaresma é tempo de examinar nossas tentações. Quaresma tempo de arrumar nossa vida. Quais seriam algumas de nossas tentações?
◊ Em nossa vida, por vezes, temos a tentação de deixar de lado empenhos e expedientes de vivência cristã porque “sentimos” Deus distante, não ouvindo nossos rogos e apelos. Vivemos então na repetição monótona até mesmo de gestos religiosos mas colocados sem alma. Tentação de parar no meio da estrada e sentir saudades das panelas do Egito.
◊ Estamos por demais envolvidos no mundo dinheiro, do ter, do usufruir as coisas, dos bens, do garantir o futuro, do acúmulo de bens nem sempre necessários. Não precisamos entrar em detalhes: gastança, consumismo, mercado, sofisticação. Seres epidérmicos e superficiais. Sem saudades porque anestesiados pela sociedade do ter.
◊ Grave tentação é a da indiferença. Não queremos esforçarmo-nos. Que tudo continue girando, o mundo, as pessoas… Esses outros, de perto e de longe, queremos que não nos perturbem. Imersos em nosso mundo pessoal e de pequenos interesses, movimentação incessantemente a telinha do celular, deixamos que as “pessoas se virem”. ApatiA. Inércia.
◊ Há ainda essa sutil tentação de não enfrentar nosso mistério pessoal, de fazer constantes viagens ao mais profundo de nós mesmos, na auscultação dos desejos mais profundos e com medo de que assim tenhamos que fazer opções que não queremos acolher. Tentação do medo de lançar-se na aventura da vida como Abraão.
◊ Tentação da intolerância. Tudo muda. Muda o mundo, mudam as pessoas, mudam os comportamentos. Há a tentação de intransigência em todos os níveis: no seio da família, na rejeição de comportamentos diferentes de nosso modo de ver as coisas, tentação do fanatismo religioso que em nome de Deus mata. Necessário se faz criar um clima de diálogo sereno, humilde e respeitoso.
◊ Nos diferentes níveis da vida e da sociedade há a tentação do poder, da busca do prestígio e da força em detrimento dos outros. Terrível tentação que gera excluídos e suscita ódios pessoais, grupais e nacionais. Sempre de novo os cristãos sabem que precisam andar com uma bacia a lavar os pés das pessoas e enxuga-los com seu carinho.
◊ Tentação de ter, de lucro e de poder que se manifesta na falta de apreço pela natureza. Desejo de fazer prédios, destruir por causa do agronegócio. Tentação terrível porque somos responsáveis de deixar a casa arrumada para os próximos habitantes.
Oração
Perdão, Senhor, porque somos pessimistas
e reparamos quase sempre o negativo.
Perdão, porque somos covardes e logo nos assustamos.
Perdão porque somos autossuficientes
e confiamos só em nossas forças.
Perdão porque somos céticos
e nos custa crer e confiar em ti.
Perdão, porque não olhamos para o futuro,
ocupados e preocupados apenas com o presente.
Perdão, porque nos queixamos de tudo.
Perdão, porque fugimos do esforço
e logo nos cansamos.
Perdão porque queremos tudo já e
não sabemos esperar.
FREI ALMIR GUIMARÃES, OFM, ingressou na Ordem Franciscana em 1958. Estudou catequese e pastoral no Institut Catholique de Paris, a partir de 1966, período em que fez licenciatura em Teologia. Em 1974, voltou a Paris para se doutorar em Teologia. Tem diversas obras sobre espiritualidade, sobretudo na área da Pastoral familiar. É o editor da Revista “Grande Sinal”.
Treinamento de fé
Pe. Johan Konings
Devidamente desacelerados do Carnaval, celebramos o 1º domingo da Quaresma. Aos mais velhos, “Quaresma” lembra jejum e penitência. Mas Isaías diz que Deus não se alegra com uma cara abatida. Talvez devamos encarar a Quaresma sob outro ângulo: como treinamento da fé. Em que acreditamos, afinal? Por qual convicção colocamos a mão no fogo, resistimos a provações, empenhamos a nossa vida?
Na sua origem, a Quaresma era o tempo de preparação dos catecúmenos para receber o batismo na noite pascal. Neste sentido, a 1ª leitura nos lembra o “credo” que o antigo israelita pronunciava na hora de oferecer os primeiros frutos de sua terra: o povo foi salvo por Deus. A 2ª leitura lembra o credo do cristão (que o batizando com toda a comunidade pronunciava na noite pascal): nossa salvação pela fé em Jesus Cristo. O evangelho mostra este credo em ação: Jesus dá o exemplo de adoração exclusiva a Deus. Jesus foi posto à prova. O diabo lhe sugeriu que transformasse pedras em pão, dominasse o mundo, deslumbrasse o povo … Mas Jesus preferiu fazer de sua vida um grande ato de adoração a Deus. E o diabo o deixou até a hora da grande provação – a hora da paixão e morte.
A Quaresma é uma subida à Páscoa, como os israelitas subiam a Jerusalém para oferecer suas ofertas e como Jesus subiu para oferecer sua vida. Nossa subida à Páscoa está sob o signo da provação e comprovação de nossa fé. Encaminhamo-nos para a grande renovação de nossa opção de fé. Se, nos primeiros tempos da Igreja, a Quaresma era preparação para o batismo e a profissão de fé, para nós é caminhada de aprofundamento e renovação de nossa fé. Pois uma fé que não passa por nenhuma prova e não vence nenhuma tentação pode se tomar acomodada, morta. Ora, a renovação de nossa opção de fé não acontece na base de algum exercício piedoso ou cursinho teórico. É uma luta, como foi a tentação de Jesus no deserto, ao longo de quarenta dias. A fé se confirma e se aprofunda em sucessivas decisões, como as de Jesus, quando resistia com firmeza e perspicácia às tentações mais sutis: riqueza, poder, sucesso.
Precisamos de treinamento em nossa opção por Deus. Antigamente, esse treinamento consistia no jejum, na mortificação corporal. Mas em nossa situação da América Latina, empobrecida e desigual, o treinamento da opção da fé se realiza sobretudo na sempre renovada opção pelos pobres e excluídos, no adestramento para a solidariedade cristã. A Campanha da Fraternidade nos treina para colocar nossa fé em prática. Adestra-nos para enfrentar os demônios de hoje, a tentação da idolatria da riqueza, da dominação, da discriminação, da competição. Exercitamos a nossa opção de fé, praticando-a na solidariedade fraterna, para, com Jesus, chegar à doação da própria vida, na hora da grande prova. Quem não se exercitar, talvez não saberá resistir.
PE. JOHAN KONINGS nasceu na Bélgica em 1941, onde se tornou Doutor em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina, ligado ao Colégio para a América Latina (Fidei Donum). Veio ao Brasil, como sacerdote diocesano, em 1972. Em 1985 entrou na Companhia de Jesus (Jesuítas) e, desde 1986, atuou como professor de exegese bíblica na FAJE, Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte. Faleceu no dia 21 de maio de 2022. Este comentário é do livro “Liturgia Dominical, Editora Vozes.
Reflexão em vídeo de Frei Gustavo Medella