28º Domingo do Tempo Comum
O texto sobre o qual vamos refletir é de Mc 10,17-30.
Trata-se da passagem de um homem rico, conservada, pela tradição da comunidade de Mateus, como jovem rico (Mt 19,16-22), que se ajoelha diante de Jesus e lhe pergunta: “Que devo fazer para herdar a vida eterna?” Jesus, o bom e sábio mestre, assim como Deus, propõe ao homem rico deixar sua riqueza para ganhar a vida eterna, isto é, deixar de ter para ser! Por que é difícil para o rico salvar-se? E o pobre? Ele deve sofrer na pobreza, por que não tem salvação par ele? Que relação existe entre o ter, o ser e a sabedoria? O que tem a ver o meio ambiente com o ter?
Contrapondo ao jovem rico, o livro da Sabedoria conserva a memória de Salomão (97-a 932 a.E.C.), rei poderoso e “sábio” do tempo do Primeiro Testamento. O jovem do evangelho seguia com sabedoria a sua religião, mas era incapaz de se entregar ao Reino, porque era muito rico. Salomão e o jovem, ambos sábios e ricos, mas apegados ao ter. Salomão construiu para Deus um grande e luxuoso Templo em Jerusalém, o qual se tornou por muitos séculos o centro religioso, político e econômico de Israel (1Rs 5—11).
O autor do livro da Sabedoria 7,1-11, muito tempo depois, fazendo memória de Salomão, afirma que ele era igual a todos os mortais, desde o nascimento, mas um homem diferente porque ele pediu e recebeu de Deus, como dom, a sabedoria. Salomão a preferiu aos cetros e tronos, considerados bens terrenos preciosos. “Amei-a mais que a saúde e a beleza e me propus tê-la como luz”, afirma Salomão, segundo a narração bíblica. E ele termina, afirmando que todos os seus bens materiais – uma riqueza incalculável -, provêm da sabedoria.
Na verdade, Salomão explorou os pobres para construir o templo e sua riqueza pessoal. No entanto, a tradição bíblica o celebrizou como o grande sábio de Israel. Diferentemente do jovem rico, ele não precisava perguntar a Deus o que deveria fazer para se salvar, pois sabia o caminho e o ensinava a todos, isto é, a busca da sabedoria e o seguimento da religião judaica.
Ao chamar Jesus de Mestre, o homem rico reconhece que Jesus é um rabino judeu que tem autoridade para lhe ensinar. Tendo frequentado grandes sábios, ele quer ouvir mais. Isto era importante no seu caminho de santificação. Jesus lhe diz que somente Deus é bom e lhe recorda que o caminho para herdar a vida eterna é o seguimento dos mandamentos da Lei. O jovem diz que os conhece com clareza e que os guarda desde o seu tempo de juventude.
Jesus, então, lhe oferece outro critério importante para herdar a vida eterna: vender os seus bens e dar o montante arrecadado aos pobres. O pedido pareceu severo demais. No mundo antigo, o dinheiro não tinha o mesmo valor que para nós hoje. O trabalhador recebia o salário de um dia trabalho em mercadoria. O dinheiro era um bem de poucos. O problema do jovem rico é que ele queria a vida eterna, mas também ter.
O segredo da catequese de Jesus é que o ser tem relação com a vida eterna, e o ter com o poder. O ser tem relação com a nossa essência, o ser bom, justo nas relações, assim como Deus. Na verdade, a nossa condição humana, a nossa história é marcada pelo poder do ter. Por causa dele, estamos agredindo o meio ambiente e nos matando lentamente. Por isso, diz Jesus, é muito difícil para aquele que tem muito herdar a vida eterna. Em nossos dias, esse desejo de ter tem relação direta com a destruição do meio ambiente. Nesse sentido, é esclarecedora a explicação da relação do poder humano com o ter e o ser, ao longo de nossa história.[2]
Os egípcios, preocupados com a imortalidade, gastaram mais tempo com a construção da tumba, por isso, contribuíram com a medicina, ao tentar chegar ao poder da imortalidade, o querer ter a vida eterna, como o jovem rico. Já os gregos, querendo ser livres, inventaram a democracia, o poder do povo ter e ser. Os romanos, querendo ser fortes e dominadores, contribuíram com o poder das leis, o direito. A Igreja e os cristãos da Baixa Idade Média (séc. XI-XV) queriam ser santos, mas pecavam muito, bem como abominavam o fato de ter que ir para o inferno. Eles contribuíram com o poder do ser santo. O ideal de vida era ser.
Já a sociedade mercantilista, a partir do século XVI, nos anos pós-cristandade, mudou o foco para o poder do ter. Surgiu o poder da Ciência, do saber para ter. Só seria feliz quem fosse capaz de ter. Nesse sentido, a partir do século XIX, muitos cristãos também mudaram o foco: ser santo mudou o foco para ter igreja, dízimo e fazer fiéis. O ter um bem material, um carro, por exemplo, é retribuição de Deus pelo dízimo ofertado. Já na revolução cultural da década de 1960, o poder passa a ser o do fazer amor.
Em nossos dias, predomina o ter em exagero, o consumismo. Fazer para consumir. Para o ter riquezas não há limites. Quem tem quer ter mais. O padrão de consumo está universal, sem limites. Somos mais de 8 bilhões de pessoas querendo ter e, para isso, exploramos o meio ambiente, na desmedida ambição que almeja simplesmente o lucro e o consumo sem limites. A natureza tem dado o seu grito de socorro.
Na outra ponta da linha, o ser não tem limites, mas como é difícil ser. O homem rico do evangelho sabia muito bem disso, por isso, saiu entristecido. Prefigurando a nossa era, ele sabia que não ia conseguir tal proeza. Um rico dificilmente entrará no Reino de Deus.
Preocupados com as exigências de Jesus, os discípulos tomam consciência de que a salvação é para poucos. O líder deles, Pedro, declara: “Nós deixamos tudo e te seguimos!” E Jesus lhe assegura que quem tudo deixar: casa, família e terras por sua causa, com certeza, receberá a vida eterna, o que motivou o surgimento da vida religiosa na Igreja. Por outro lado, conhecendo a tradição familiar no Judaísmo, Jesus não estaria solicitando abandonar pai, mãe e filhos para ser seu discípulo. Assim como Pedro, muitos dos seus seguidores próximos mantiveram a vida familiar. O pedido aqui é simbólico para dizer que, para herdar a vida eterna, não podemos ser apegados ao ter.
Com é difícil no mundo moderno herdar a vida eterna. Já não mais seguimos a proposta de Jesus. Somos apegados ao ter. Acreditamos que os pobres devam sofrer, pois a sua condição de vida é fruto da opção deles. Somos fruto de uma sociedade moderna, da era do mercado, que entende o sofrimento dos empobrecidos como antecipação do que viverão no imaginário Inferno, que insiste em não acabar. Nessa lógica, os pobres também jamais herdariam a salvação. Estamos destruindo a natureza, que sofre com a desertificação, o degelo exagerado, a diminuição das áreas úmidas e férteis etc. A terra está dando sinais de esgotamento. Que sabedoria é essa do ter para consumir? Quem ainda tem ouvidos, ouça!
Frei Jacir de Freitas Faria [1]
[1]Doutor em Teologia Bíblica pela FAJE (BH). Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de Exegese Bíblica. Presidente da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de doze livros e coautor de dezesseis. Canal no Youtube: Frei Jacir Bíblia e Apócrifos. https://www.youtube.com/channel/UCwbSE97jnR6jQwHRigX1KlQ Última publicação: Os murais do Santuário Santo Antônio, de Divinópolis (MG), no simbolismo do Três na Trindade e na Crucifixão de Jesus: interpretação bíblica, teológica, catequética e franciscana das pinturas de Frei Humberto Randang. Belo Horizonte: Provincia Santa Cruz, 2024.
[2]Entrevista da ministra Marina Silva sobre a sustentabilidade. Disponível no YouTube e em: https://www.amazonialatitude.com/2021/03/18/do-ter-ao-ser-a-defesa-de-marina-silva-pela-sustentabilidade/ Acesso em 10 out. 2024.