Frei Jacir de Freitas Faria, OFM
O texto sobre o qual vamos refletir hoje faz parte da conhecida história de José do Egito, narrada nos capítulos 37 a 50 do livro do Gênesis. Uma verdadeira novela bíblica. Não há como analisar Gn 37,3-28 sem compreender o sentido da história desse ilustre personagem de Israel no seu contexto. Vou usar o recurso da leitura sociológica e depois atualizá-la.
Comecemos. Quem era José? Filho mais novo de Raquel, a esposa amada do patriarca Jacó. Ainda criança, ele ganhou do pai uma túnica ornada, igual à dos membros da corte real. Quando adolescente, José sonhou duas vezes com feixes de trigo, sol, lua, estrelas que lhe faziam reverência, significando que, mais tarde, seu pai e irmãos o reverenciariam e obedeceriam ao seu comando. No entanto, seus irmãos lhe armam uma cilada. Eles querem matá-lo, jogá-lo numa cisterna, e enviar ao pai a túnica embebedada de sangue de animal. No entanto, o irmão mais velho, Judá, que daria o nome à tribo dos reis Davi e Salomão, salva-o, propondo a sua venda como escravo para uma caravana de madianitas que seguiam para o próspero país do Egito. E assim fizeram. Jacó lamentou a morte do filho.
No Egito, José é vendido para um eunuco do Faraó, chamado Putifar. Eunuco aqui tem o sentido de oficial, capitão da guarda do Faraó, aquele que se dedica aos trabalhos da corte, e não um castrado que se ocupa do harém do Faráo. Na corte, José faz amizades e se destaca pela sua beleza física, inteligência e integridade. A mulher de Putifar, que não tem nome e recebe a culpa de sedutora, arma uma cilada contra ele, de modo que ele pudesse dormir com ela. Como ele não aceitou, ela o caluniou e fez com que o marido o levasse para a prisão. Ela o acusa de seduzi-la.
Na prisão, José, pela força divina, interpreta os sonhos de seus dois colegas. Um deles é libertado. Dois anos depois, assim como José, o Faraó também sonha duas vezes com sete vacas magras que devoravam sete vacas gordas; sete espigas mirradas que devoravam sete espigas granadas. José é chamado à corte, para decifrar os sonhos do Faraó. José foi incisivo, quando disse ao Faraó que os sonhos diziam respeito à política de abastecimento em tempos de crise e que o Faraó deveria, nos sete anos de abundância, tomar um quinto da produção dos egípcios e recolhê-lo em celeiros para ser utilizado nos sete anos de fome que viriam. Esse era o plano de Deus para o Egito. Com a sua interpretação, José foi constituído como conselheiro do Rei.
Acossados pela fome, os seus irmãos descem ao Egito. São reconhecidos por José, mas eles não o reconhecem. Ao acolhê-los, José arma uma cilada para castigá-los, colocando ouro nos sacos de alimentos que levavam para o pai em Canaã. Eles retornam. Diante dos irmãos, José se manifesta como irmão e pede para transmitir ao pai o convite do Faraó, de vir morar no Egito. Jacó leva toda sua família, é acolhido por José e recebido pelo Faraó nas melhores terras do Egito. Desse modo, o povo de Deus estava salvo pelo opressor. O patriarca Israel abençoa o Faraó.
Como Primeiro-Ministro, José organiza a política agrária do Faraó. Vende alimentos aos habitantes do Egito e de Canaã, até acabar o dinheiro deles. Troca alimentos pelos rebanhos. Quando os rebanhos se esgotam, ele cede os alimentos em troca de terra. Finalmente, passa a fornecer sementes e a receber do povo um quinto de toda a produção (47,13-26). O Egito se torna poderoso.
Quais são os objetivos dessa novela bíblica no seu contexto? Vejamos: 1) Mostrar a rivalidade entre irmãos, os quais representam as doze tribos de Israel do período dos juízes, duzentos de vida igualitária vivida pelo povo. 2) Jacó, ao presentear o filho com uma túnica de mangas largas, quer mantê-lo a seu lado, longe do trabalho pastoril dos irmãos. 3) O “irmão”, vendido como escravo, “salva” os irmãos e egípcios, mas os reduz, pela fome, à escravidão. 4) José era um membro do povo hebreu, ligado ao Faraó. Foi perseguido, mas foi por causa dele que o Faraó se enriqueceu, o povo empobreceu e se tornou escravo do Faraó. 5) A história de José serviu para legitimar a monarquia de Salomão, que explorava o povo. 6) Os irmãos, quer dizer, as tribos, se rebelam contra o irmão-Rei, contra a Monarquia, mas sem sucesso.
Como atualizar a história de José? Vivemos numa sociedade pluralista, dividida socialmente, política e economicamente. Há os que defendem projetos que continuam explorando os pobres, monarquias faraônicas que impedem que a vida seja prioridade. Que Deus nos livre desses Faraós! O desejo igualitário das tribos de Israel continua vivo no sonho e na esperança de novos tempos. A política de José e dos “Josés” do nosso tempo não está aí para ser imitadas.
Termino com as palavras do Papa Francisco na encíclica Fratelli Tutti: “A sociedade globalizada torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos. Encontramo-nos mais sozinhos do que nunca neste mundo massificado, que privilegia interesses individuais e debilita a dimensão comunitária da existência. O avanço do globalismo favorece normalmente a identidade dos mais fortes que se protegem a si mesmos, mas procura dissolver as identidades dos mais frágeis e pobres, tornando-os mais vulneráveis e dependentes. Desta forma, a política torna-se cada vez mais frágil perante os poderes econômicos transnacionais que aplicam o lema divide e reinarás” (Fratelli Tutti, 12b). Qualquer relação das palavras de Francisco com a história de José é mera coincidência.
Frei Jacir de Freitas Faria – Doutor em Teologia Bíblica pela FAJE-BH. Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de exegese bíblica. Membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quatorze. Inscreva-se no nosso canal: https://www.youtube.com/c/FreiJacirdeFreitasFariaB%C3%ADbliaAp%C3%B3crifos