
“Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã a mãe Terra que nos sustenta e governa. E produz frutos diversos e coloridas flores e ervas”.
Virtudes e valores: autoridade e serviço, atenção às necessidades do outro, dispor-se a ser cuidado, animação e organização da vida fraterna, sentido de comunhão e partilha.
Chegamos ao louvor que Francisco dirige ao Senhor por nossa irmã a mãe terra, continuando a reflexão acerca do Cântico das Criaturas. Conforme Celano, a boca de Francisco falava da profusão do coração (1Cel 115). O Cântico é, portanto, o transbordamento da largueza e abundância interior de Francisco. O santo inicia o Cântico dirigindo-se ao Altíssimo e com humildade, e porque é humilde, reconhece a grandeza indizível do Senhor, tão grande que ninguém é digno de mencionar. Diante de tal grandeza, e com os olhos fixos nela, volta também o olhar para o cosmos, para todas as criaturas, cantando por e com todas elas os louvores do Senhor. Gradualmente Francisco volta seu olhar para baixo, em movimento descendente, reconhecendo-se irmão de todos os criados passando pelos astros, vento, ar, nuvens, água, fogo, chegando à terra, nossa irmã a mãe terra.
1- A relação de Francisco com a terra
Essa estrofe diz de uma relação maternal e fraternal que marca a vida de Francisco desde sua “conversão”. Para citar um exemplo dessa relação, o homem de Assis, em sua primeira experiência numa gruta, foi gestado no seio da mãe terra. Ele entra nesse lugar levando consigo seus projetos de glória, com uma existência vazia, superficial. Frequentemente imerso nas profundezas de uma gruta sai dali um homem renovado, em busca de novas coisas, com novos projetos depois de ter sido mostrado a ele o que precisava fazer (1Cel 6).
Francisco se refere à terra conservando-lhe a condição de criatura, por isso irmã. Entretanto, dá a ela outro atributo: mãe. Ela possui, como todas as criaturas, potencialidades recebidas da própria Fonte Criativa. A terra acolhe em seu ventre a semente e proporciona condições para que a potencialidade adormecida da semente seja despertada. A terra providencia o alimento para que a vida subsista. Ela abriga parte da criação, inclusive o homem que, apoiado nela e por ela conduzido, faz sua peregrinação rumo ao Pai. À terra o Senhor confere algo que é sinal do próprio Divino, que como Pai-Mãe providencia sem demora aquilo de que seus filhos e filhas têm necessidade.
Francisco acrescenta, ainda, que além do sustento e da condução, a terra produz frutos com coloridas flores e ervas. A largueza desta criatura, como reconhece o Santo em seu canto, é evidente. Como uma mãe providencia tudo o que é necessário para os filhos e encontra tempo e espaço para preparar um ambiente aprazível e belo. A terra, com suas as flores e o verde, faz como a mãe que arruma a casa e enfeita a mesa com um vaso de flores e verdes ramos. Desse modo, diante dos atributos da terra, como canta Francisco e o exemplo da mãe, tais belezas contempladas despertam o afeto zeloso e o respeito dos homens e mulheres.
Aqui não se pode deixar de recordar que à harmonia da criação divina se sobrepôs os interesses egoístas e predatórios de muitos de nossos irmãos, especialmente nos últimos tempos. A terra, ao invés de irmã e mãe, é tomada como escrava que deve servir incansavelmente o seu senhor, o homem. O cristão, principalmente os franciscanos, e especialmente neste ano em que se celebra os 800 anos do Cântico de Francisco de Assis, precisa tomar essa manifestação do santo como um grito profético que faça frente aos devaneios mórbidos da contemporaneidade.
2- Virtudes e valores na vida fraterna
O modo como Francisco vê a terra como irmã e mãe, e se está falando de um relacionamento, seguramente, marcado pela gratidão à mãe que provê o sustento necessário, que promove a vida de todos, pois todos dela dependem, o que inevitavelmente faz recordar a origem de tal criatura, torna-se inspiração para se refletir as relações fraternas entre os frades, recordando as exortações e exemplos do Santo de Assis, bem como o modo fraternal de se colocar diante de todas as criaturas. Dessa forma, vale salientar o que São Francisco, como que num legado, recomendou a seus frades. Com outras palavras, da relação de Francisco com a irmã a mãe terra pode-se acentuar virtudes e valores fundamentais para o relacionamento dos frades entre si, desafiando ao despojamento da própria vontade, do orgulho e, em atitude de pobreza e humildade, preservar a riqueza que é a fraternidade.
2.1 Autoridade e serviço
Uma relação prevista na vida fraterna é a relação de “autoridade”. Em vista da organização e animação da vida fraterna há a previsão de que algum frade tenha tal encargo. Entretanto, a autoridade para Francisco é entendida como serviço fraterno. O que exerce uma liderança é designado por Francisco como ministro e servo de todos os irmãos (RB 10) ou de toda a fraternidade (RB 8). Essa “autoridade” funda-se naquilo que disse Jesus, “não vim para ser servido, mas para servir”, como lembra Francisco (RnB 4). Em suas admoestações o Santo salienta a mesma ideia: “Não vim para ser servido, mas para servir, diz o Senhor. Aqueles que foram constituídos acima dos outros se gloriem tanto deste ofício de prelado como se tivessem sido destinados para o ofício de lavar os pés dos irmãos. E se se perturbam por causa do ofício de prelado que lhes for tirado do que por causa do ofício de lavar os pés, tanto mais ajuntam para si bolsas para o perigo da alma (Adm 4). A glória do que exerce a autoridade está em servir. Do contrário, ajunta em sua bolsa o egoísmo, o orgulho, o poder autoritário que afasta e divide. Francisco também recorda que os frades devem agir de modo diferente daqueles que governam as nações subjugando-as, construindo impérios recorrendo a práticas que resultam em injustiças, violências, ambições, guerras e mortes; o frade, ao contrário, que observa o Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo, se quiser ser o maior entre os irmãos deve ser para eles o ministro e servo (RnB 5).
Se se volta para a estrofe do Cântico do irmão Sol, à altura em que o Santo se refere à terra, e se se toma o aspecto da mãe atribuído a ela constata-se que a terra se dispõe servir, oferecendo de si, de suas forças e potencialidades em vista de prover e alegrar a existência de seus assistidos.
2.2 Atenção às necessidades do outro. Cuidar e ser cuidado
Na mesma linha acentua-se a atenção às necessidades. A terra, tal como uma irmã e mãe, provê às necessidades de todos os que dela dependem. Se se volta o olhar para a vida fraterna, animados por essa realidade como a canta o Santo de Assis, destaca-se o cuidado mútuo que deve marcar a vida em fraternidade.
Conforme afirma Francisco, “com confiança um manifeste ao outro a sua necessidade, para que lhe encontre e sirva as coisas necessárias. E cada qual ame e nutra a seu irmão, como a mãe ama e nutre seu filho (RnB 9). Há uma exigência fundamental que não pode deixar de ser considerada: nesse relacionamento entre os irmãos, como dos homens com a terra, é imprescindível a reciprocidade, isto é, o cuidado deve ser mútuo e não unilateral, pois se o for, será difícil sustentar a boa relação por tempo indefinido. Nessa esteira, assim como a terra cuida dos que dela dependem, todos os homens devem cuidar dela, de modo que continue a ser a criatura fraterno-maternal que nos acolhe e abriga.
Francisco recomenda, ainda, o cuidado entre os irmãos, especialmente daquele que ficar enfermo: “Se algum dos irmãos cair enfermo, onde quer que estiver, os outros irmãos não o abandonem (RnB 10). “E onde estão e onde quer que se encontrarem os irmãos, mostrem-se mutuamente familiares entre si. E com confiança um manifeste ao outro a sua necessidade, porque, se a mãe nutre e ama a seu filho carnal, quanto mais diligentemente não deve cada um amar e nutrir a seu irmão espiritual? E se algum deles cair enfermo, os outros irmãos devem servi-lo como gostariam de ser servidos (RB 6). Seja qual for a necessidade, os irmãos, como irmãos e mães, cuidem uns dos outros. Nessa relação de cuidado mútuo destaca-se um aspecto que representa, por vezes, muitas dificuldades que é “deixar-se cuidar”. Cuidar é uma atitude de serviço humilde; deixar-se cuidar é também uma atitude de grandíssima e nobilíssima humildade. Trata-se de confiar-se ao irmão como quem recorre ao próprio Senhor.
2.3 Animação e organização da vida fraterna
Contemplar as maravilhas de Deus em sua perfeita ordem é referência para que se possa, inspirados nessas realidades, organizar a vida e a convivência. A experiência de vida pessoal e comunitária não acontece de forma diferente. A harmonia das coisas criadas como Deus as fez torna-se inspiração para a organização da vida fraternidade cotidiana. A terra é dinâmica, com o passar o tempo vai surgindo nela novas condições que fazem evoluir os seres que nela habitam. Igualmente a fraternidade, e os irmãos em particular, criativamente, podem e devem promover circunstâncias de crescimento e transformação, de modo que o convívio, e cada irmão, cresça, desenvolva, amadureça e, por consequência, o ambiente fraterno colha frutos de todo esse “processo evolutivo”.
2.4 Sentido de comunhão e partilha
A terra, nossa irmã e mãe, há bilhões de anos vem sustentando os seres que dela dependem. O homem, embora há bem menos tempo, igualmente vem sendo sustentado pela terra. Essa nossa irmã e mãe generosamente estabelece comunhão com as outras criaturas, é irmã, e partilha de suas forças, oferece daquilo que produz. Não seria essa, igualmente, a atitude exigida entre os irmãos? Estabelecer comunhão e cultivar a atitude da partilha oferendo aos outros as forças, os dons, os frutos que cada um possui e produz como graça divina é a atitude esperada dos irmãos para com os irmãos. E isso inclui os irmãos e irmãs que são todas as criaturas.
Entende-se apropriado, e a modo de conclusão, retomar aqui algo mencionado anteriormente. A fraternidade pode se tornar como que a gruta, recordando que Francisco esteve num lugar assim, onde enfrentou-se a si mesmo com seus anseios mundanos e ao mesmo tempo protegido e gestado para uma vida nova; onde enfrentou as adversidades impostas pelo ambiente, por vezes frio, escuro, insalubre. O que se quer dizer aqui é que o frade faz na fraternidade diversos enfrentamentos consigo mesmo, é desafiado pelos irmãos com suas diferenças que pode se transformar em enriquecimento mútuo, colocando todos os frades num processo gestatório. Cada frade cresce como pessoa e franciscano consagrado, saindo dela, da “gruta-fraternidade”, orientado pelo Senhor que “indica o que deve fazer”, dirigindo-se ao mundo com um anúncio transformador. E sempre de novo, como Francisco, terá a necessidade de ali retornar para um novo ciclo de renovação. A fraternidade é a irmã e mãe de cada irmão.
Frei José Raimundo de Souza, OFM


