Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM
As celebrações em torno dos oitocentos anos do Carisma franciscano constituem uma excelente ocasião para refletirmos acerca da imprescindibilidade da memória.
Durante muito tempo, a memória foi simplesmente considerada como uma das faculdades do espírito humano. Com o passar do tempo, fomos percebendo melhor que a memória é constitutiva da cultura uma vez que ela é índice da condição humana, intrinsecamente processual e histórica.
Enquanto seres peculiares, não apenas contemplamos os acontecimentos, nós os recolhemos e, com eles, tecemos uma autêntica trama: mediante nossas decisões, interferimos mudando o curso dos mesmos e conferimos significações distintas a esta imensa e complexa teia – a teia da vida.
É neste horizonte que se insere o permanente resgate do passado, através de indagações do presente que propiciam um futuro sempre em aberto e, portanto, grávido de possibilidades. Fazer memória, neste caso, significa reapropriar-se do passado de maneira sempre nova. O passado, na verdade, não constitui um amontoado de fatos ocorridos à distância dos anos. Ele encerra virtualidades que, adormecidas, aguardam um sopro vital capaz de despertá-las, acordando também em nós prospectivas e sonhos inusitados, jamais previstos, nem programados. O passado não é um bloco estático e monolítico; ele é, ao contrário, extremamente fluido, sempre disponível a ser recriado no aqui e agora de nossa existência. O presente, concebido como o aqui e agora, constitui o ponto fulcral de nossa relação para com o passado e para com o futuro. O presente é, em definitiva, nossa grande possibilidade. É o que temos de concreto e o que nos liga de forma visceral à vida em todas as suas circunstâncias e dimensões. Se não assumirmos o aqui e agora como lugar a partir do qual nos relacionamos com o passado e com o futuro, facilmente seremos vítimas do tentador “escapismo” que pode se manifestar na forma de um saudosismo inveterado ou de um futurismo romântico e vazio.
O saudosismo, muito presente no seio de nossas instituições religiosas, consiste no desejo de se refugiar no passado, elegendo-o como uma espécie de “oásis” seguro e imune a todo confronto com as questões do tempo presente. Trata-se de uma forma refinada e sutil de omissão face às indagações dos tempos atuais. Repetir fórmulas prontas do passado é um recurso menos comprometedor que assumir o pesado ônus de recriar possíveis respostas às indagações do presente.
O futurismo, por sua vez, consiste na tentação de se alojar de maneira segura em uma ilusória expectativa de futuro. Não existe talvez forma mais sutil de se subtrair à gravidade das questões do presente que se satisfazer com a repetição de princípios e de valores totalmente desvinculados da concreta experiência de vida. Ambos, saudosismo e futurismo, revelam o medo de se confrontar com as reais questões que nos interpelam no aqui e agora de nossa existência.
Recentemente, todavia, o conceito de memória que, antes, estava circunscrito ao âmbito da cultura e do espírito humanos, vem se alargando a ponto de se falar hoje de uma memória da natureza ou de uma memória cósmica. O que contemplamos em noites de céu estrelado nada mais é do que o passado do universo. Nosso conhecimento do universo se dá sempre no modo de sucessão, em anos-luz, nunca em tempo real. Por esta razão, estrelas que ainda vemos brilhar diante de nossos olhos maravilhados, podem ter deixado de existir desde há muito. Ademais, percebe-se na natureza um acúmulo significativo de memória que foi se revelando mediante o descarte de combinações hostis à vida e o incentivo daquelas que lhe são favoráveis. E isto se torna visível na própria construção da matéria, dos átomos, moléculas, células e organismos e até do cérebro humano, este órgão mais sofisticado da natureza.
Não teríamos tanto a aprender desta sabedoria acalentada com cuidado e enternecimento ao longo de bilhões de anos e entranhada nos sutis meandros da Criação? Se, por um lado, o presente se nos afigura como o ponto fulcral de nossa existência histórica, por outro, o futuro se nos descortina como perspectiva privilegiada a partir da qual assumir nossas decisões e atitudes no presente.
Sobretudo a partir dos estudos recentes da Física Quântica e da Neurociência, aprendemos que se faz necessário recuperar: a prioridade do futuro sobre o passado, na concepção do tempo; e a prioridade da potencialidade sobre o real, no conceito de realidade. Pois, na verdade, é o futuro que acorda as potencialidades adormecidas do passado e não o contrário. Da mesma forma, o que chamamos de real se revela apenas como uma entre tantas possíveis realizações, embora essa concretização seja consistente.
Por esta razão, não se abraça o presente unicamente em função de um heróico e ascético amor facti. Assume-se o presente enquanto possibilidade única de transcendê-lo na direção de um futuro alternativo. Mas esta superação se dá a partir de dentro. Isto significa potenciar ao máximo suas reais e intrínsecas virtualidades visando um futuro de possibilidades inauditas.
Não queremos minimizar o valor do presente e do passado, muito menos enfraquecer a consistência de ambos. Queremos salientar, no entanto, que não existe maneira melhor de se recuperar o passado e o presente que reconsiderá-los a partir de suas potencialidades adormecidas e, portanto, forjando as condições para que elas possam ser recriadas, com vistas a um futuro inusitado. A consistência do real revela-se na consciência da imprescindibilidade de se abraçar o aqui e agora como possibilidade única de, resgatando o passado, propiciar a emergência do futuro.
Fomos demasiadamente habituados a conceber Deus como o fundamento estático de todas as coisas, circunscrevendo-o quase que exclusivamente ao passado. Consequentemente, o passado passou a ser considerado como determinante do presente e do futuro. Nós modernos, particularmente, construímos grandes sistemas no interior dos quais, o presente se revelou condicionado pelo passado, e o futuro visto como algo programado, previsto. Deste modo, o futuro se revelou destituído de toda e qualquer ulterioridade.
Neste novo horizonte de compreensão, Deus se revela como a fonte de onde promana todas as possibilidades e, ao mesmo tempo, como a origem de todo o tempo a partir da dinamicidade própria do futuro. Ao invés, portanto, de insistirmos em interpretar o Deus bíblico como a determinação de todo o real, talvez fosse o caso de concebê-lo como a “possibilização máxima do possível”. Um Deus paciente que respeita e acompanha o ritmo natural do inteiro cosmos e de cada criatura, o tempo da humanidade e de cada pessoa humana.
Sua paciência não é sintoma de indiferença ou de passividade. Ele é o primeiro a se engajar no processo lento, porém eficaz, de transformação e, portanto, de plenificação de cada criatura e da inteira criação. E esta atitude é expressão da peculiar condescendência oriunda da solidariedade e gratuidade singulares do nosso Deus que, em Jesus Cristo, se nos revelou como Mistério de comunhão entre os divinos três: Pai e Filho e Espírito Santo.
Só assim poderemos compreender, de fato, o devir como o princípio estruturador da inteira realidade, que faz dela uma complexa teia, vale dizer, um contínuo processo incompleto porque em vias de completamento.