Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Fidelidade, simplesmente a fidelidade

06/05/2015

 

Somos seres a caminho. Fazemos história com outros, companheiros de perto e viandantes de longe de todos os cantos cujos nomes  não conhecemos.  Organizamos nossa vida pessoal em torno da observação de promessas e na perseguição de tudo aquilo que pode nos organizar interiormente. Fiéis à nossa verdade, fiéis aos outros. Trazemos aqui uma reflexão de cunho antropológico a respeito do belo e desafiador tema da fidelidade sob o ponto de vista filosófico. O texto que segue se inspira fortemente em Gérard  Bailhache  (L’humaine fidélité, in Christus  169, jan. 1996, p. 30-39). Remetemos também para outro artigo, este de Xavier Quinzá Lléo, SJ,  Los otros nombres de la fidélité, publicado na revista espanhola de cultura e espiritualidade Sal Terrae  (n. 90, 2002, p. 723-731).

Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM

              A experiência nos diz que certas  escolhas e decisões que tomamos na vida organizam nosso interior, colocam ordem em nossa desordem, arrumam  as “coisas” de nossa trajetória no fluir do tempo. Belíssima uma vida marcada pela fidelidade:  fidelidade à própria verdade sempre em estado de descoberta,  fidelidade cristã, fidelidade conjugal, fidelidade aos amigos, fidelidade profissional, sempre, porém, fidelidade  dinâmica e criativa, também fidelidade ao amor fiel do Deus fiel. Felizes os que são fiéis aos seus propósitos e compromissos!  Xavier Lacroix assim se exprime:  “A promessa de fidelidade é um compromisso de assumir juntos um futuro comum, ter um horizonte comum.  Ela conjuga as virtudes da permanência e da contínua invenção, na abertura ao duplo desconhecido, ou seja, o outro e o futuro”.

Há, é verdade, os que dizem que ela é impossível ou, então, impensável. Outros ainda dizem que é uma loucura. E há, é certo,  aqueles que fazem dela o fulcro de suas vidas.  Uns a qualificam de dura e difícil. Todos, no entanto, a ele se referem. Sentem saudades de seu perfume quando constatam suas infidelidades. Ela é das mais nobres virtudes ao lado da honradez, da lisura, da humildade, da generosidade e da coragem.

A fidelidade é uma experiência que se vive na carne, quer dizer,   encarnada. Porque somos carne vivemos de fidelidade em fidelidade. Fidelidade vivida com outros que vivem na carne como nós vivemos. Vivemos a fidelidade no fundo de nossa consciência, ou com uma outra pessoa, e também com muitas outras pessoas. Trata-se de realidade multifacetada.

Antes de ser noção, a fidelidade é um comportamento, uma escolha, uma decisão. Não vem de fora. Nasce dessa preocupação que temos a respeito da qualidade do humano que vive em nós ou que pode nos deixar.  Assim, a fidelidade nos habita ou de nós se afasta. Não existe: ela se cria, se inventa, é retomada ao longo de toda a nossa vida. Não existe uma única  Fidelidade com f maiúsculo. Há  fidelidades múltiplas que fazem de nós  seres de fidelidade, pessoas que escrevemos nossa história com referência ao passado, atenção ao presente e vigilância quanto ao futuro.

Os lugares da fidelidade em nossas vidas são múltiplos: o esposo, a esposa, a família, os filhos, os amigos, os compromissos políticos, sociais, religiosos. Somos fiéis a um pintor, a um tipo de compositor de música clássica, a um autor que lemos regularmente e que ilumina nosso pensar, que nos questiona ou que, com seu jeito, questiona o rumo de nossa viagem.

Fidelidade… a comportamentos regulares, a decisões.  Em que sentido a fidelidade é dimensão essencial de nossa vida? O que está, de fato, por detrás dessa palavra e dessa realidade? A fidelidade aparece, não poucas vezes,  como fora de moda, antiquada e completamente ultrapassada:  a vida social é feita de traições e de reviravoltas que nos surpreendem. Em muitos contextos existenciais a fidelidade não é mais levada em consideração. Com esse alongamento do tempo de viver até 90 ou 100 anos, mais do que nunca, se diz a fidelidade é impossível, ou ao menos improvável. Como ser fiel ao longo de uma estrada tão longa?

Como falar de fidelidade de sorte que não seja apenas um ideal inatingível, mas uma prática que seja dimensão fundamental de nossa  humanidade, aquilo que nos constitui como seres da história e não somente sujeitos do instante? Quando pensamos em fidelidade temos em mente nosso relacionamento com a história. É um modo de comportamento que não é traçado de antemão. A fidelidade nos faz sair da fatalidade, do destino cego. A história não é um teatro de sombras, mas uma invenção em que o homem vai decidindo  como será sua vida e sua vida  com outros.  Fidelidade é trabalho, tarefa: não está disponível na gôndola de um supermercado, num lugar imaginário onde pudéssemos ir buscá-la.

A fidelidade é a modalidade de nosso existir como seres que se situam entre um começo e um fim que nos escapam. Ser fiel, querer ser fiel é atravessar a densidade do tempo, a opacidade dos trabalhos e dos dias, na certeza de que uma história está sendo escrita e que não há  simplesmente a acumulação de instantes separados uns dos outros. Uma história vai se tecendo na medida em que nós mesmos unimos os fios a certo momento e determinadas  pessoas. Ser fiel é estar orientado, também propor o “oriente”  a outros. Ser fiel é transmitir o que recebemos aos que nos seguem, dando-lhes gosto por este laço entre as gerações. Nisto situa-se a dinâmica própria da fidelidade que pode ser designada de produção de um sentido com outros, quer dizer acolhimento desse sentido na confrontação e na troca.

A fidelidade é um laço. Rompê-la é cortar esse liame. Ela aponta tanto para nossa identidade pessoal quanto  social.  Inscreve-nos na duração,  nessa  “espessura” do tempo que acontece nessa sucessão de momentos e acontecimentos abertos ao que vem.

Costuma-se dizer que a fidelidade está em crise. Talvez melhor fosse afirmar que a fidelidade é crise. Ela é julgamento e não condenação. Não combina com o repouso inerte: está sempre questionando, buscando  a construção com outro ou outros. Nunca é somente obra pessoal. Esse laço tão fundamental para nossa humanidade vive-se com outros. Insistimos nesse aspecto.

A fidelidade é, antes de tudo, uma qualidade humana. Não existe fidelidade, mas homens e mulheres fiéis ou infiéis. Nossa experiência de fidelidade se faz ao lado da experiência da infidelidade.

Ser fiel é escolha de vida. O fato de existirmos no mundo, com outros, com milhões de outros seres, próximos ou distantes, pode fazer com que pensemos estar em estado de perda, da quase insignificância de nossa vida.  Em nossos dias, decidir a ser fiel  é optar pelo humano que existe em nós e um tal cuidado  supõe o cuidado pelo outro e para o outro. A relação para com o outro me constitui e o constitui como ser humano e ser fiel a esta relação nos torna cada  mais  “humanizados”.  Há comportamentos humanizantes e outros que não o são. O borboletear de flor e flor sem palavra dada nos desumaniza.

Quando decidimos ser fiéis tomamos consciência que tal decisão consiste na inscrição de nossa existência numa história: história de uma amizade, de um relacionamento amoroso, de uma vida numa comunidade de consagração religiosa. A fidelidade é modo de comportamento que nos situa no tempo vivido como orientado: o passado, o presente e o futuro estão interligados.  A fidelidade não pode fazer economia da promessa. Promessa de unidade, de edificação paciente por meio de gestos cotidianos, retomadas, assentimentos, desvios imprevistos. Se a fidelidade nos fala tanto quaisquer que sejam nossas convicções e atitudes é que nela pressentimos a construção paciente, laboriosa de nossa existência, como existência voltada para o sentido,  a plenitude , a completude que não outorgamos a nós mesmos mas que partilhamos com outros.

A fidelidade é necessária para a criação. Talvez não haja  criação sem que antes haja fidelidade a si e às suas opções fundamentais. Ela nos coloca no horizonte de um nascimento, de uma chegada a si mesmo, de uma vida verdadeira.

Ela é comportamento que nos situa no tempo vivido e experimentado como tempo da continuidade. Ser fiel é ter uma memória que podemos qualificar de amorosa e respeitosa. Sou fiel à pessoa do outro, amada pelo que ela é, pelo que foi e pelo que será sendo que esse futuro do outro está fora de meu alcance.  Uma história vivida juntos se desdobra na renúncia a possíveis infidelidades do instante, sempre presentes e insistentes. Uma vez a  escolha feita, deverá sempre  de novo ser retomada. Se é definitiva está sempre sofrendo ameaças. Há empenho na fidelidade, esforço de alimentar uma decisão, uma palavra dada, na obscuridade cotidiana, na passagem de um instante para o outro.  Tal empenho não significa apego a si, vontade de vencer sozinho, mas à promessa  mergulhada  no elã dos começos, promessa que vai tomando incessantemente novas formas  porque a fidelidade é criativa e inventiva.

Fidelidade se conjuga com confiança, com fé.  Trata-se de dar crédito ao outro. Curiosamente, em nossas sociedades que vivem do crédito em diferentes domínios, a fidelidade se apresenta como uma virtude inútil, imprópria para enfrentar nossa época. Porque o crédito, em nossos dias, se apoia mais no engano e na trapaça do que sobre a verdade. Dar crédito a alguém é tecer um relacionamento de confiança que é certamente um dos mais preciosos bens de  nossa humanidade. Este relacionamento de confiança é uma maneira simples de dar ao outro seu lugar oferecendo-lhe o que não podemos dar: reconhecer que ele é um ser humano  digno de respeito e não um objeto manipulável de acordo com nossos loucuras e nossos instintos, de acordo com nossas  emoções e desejos.

Ser fiel se escolhe, se decide. A infidelidade nem a fidelidade são fatalidades. Não se pode pensar  fidelidade sem amor. A fidelidade amorosa  vive a longa duração e atravessa as intempéries que a ameaçam. Trata-se precisamente de escolher  a longa duração mesmo sem saber para onde ele nos leva. Ao culto do agora, que configura tantos comportamentos atuais, o ser fiel opta pela duração, situando  toda decisão  no tempo e na história.

Vive-se o amor na fidelidade e esta se alimenta daquele, sem que os que se amam sempre o saibam. Existe um saber próprio do amor que sabe bem o que significa  ser fiel ao outro, um saber tal que se exprime tanto por gestos, e olhares como por palavras. Amar se conjuga com o ser fiel sem que as formas desta fidelidade sejam desenhadas de antemão. Recebemos do outro nosso modo de ser fiel porque o outro é aquele que  despertou em nós a capacidade inacessível de amor. Tocamos aqui uma dimensão própria ao amor e à fidelidade: a gratuidade. Ser fiel, amar, é dom que nos é confiado, que é entregue à fraqueza de nossa liberdade, à fragilidade desse relacionamento com o outro do qual não somos expectadores, mas atores.  Esta surpreendente  e emocionante gratuidade nos revela  que somos responsáveis por este laço com o outro e que será só será vivo que for incessantemente  entretido, tecido dia após dias. Ser fiel é descobrir que nossa liberdade se funda e se desenvolve  nesta relação tão profunda, sem nada ter a ver com  o moralismo.  Paradoxo desta fidelidade: cada dia ela é mais exigente e cada dia nos torna mais livres. Esta fecunda tensão acompanha o tempo da fidelidade.

A fidelidade é criativa e construtora. Edifica o indivíduo e a comunidade. Cria prolongados relacionamentos que são retomados, sempre de novo tecidos, aprofundar a partir da escolha do começo.  A existência humana ganha peso e consistência por meio da fidelidade.  O que inquieta profundamente com respeito à fidelidade é o definitivo que ela funda. A fidelidade se nutre da esperança.

Não se trata de ser fiel à fidelidade, mas ao outro e a si mesmo, a uma palavra dada que nos ligou e continua nos ligando um ao outro. A fidelidade é um laço invisível que se funda sobre o invisível de cada palavra, mas não cessa de se inscrever no visível pelas escolhas que vão sendo feitas que significam rupturas,  novas partidas,  adeuses  em vista de uma criação ou uma recriação.

“Que dois esposos se vejam compromissados por toda a vida, que  constrangimento intolerável!  E no entanto duas pessoas que se amam o que querem é precisamente se comprometerem por toda a vida” (Jean Paulhan).  Constrangimento ou verdadeira liberdade? Pode ser que, à primeira vista o compromissar-se por toda a vida dê a ideia de uma camisa de força intolerável e fria. Cabe a cada um de nós, a cada instante, reencontrar o frescor do primeiro engajamento e ter a certeza de que desse instante lhe advém  toda nobreza. O espírito aceita ter um corpo.  Sabe que desse corpo lhe vem o risco.

A fidelidade humana não é um comportamento angélico: é inscrição na carne da continuidade de uma escolha na qual toda a pessoa se comprometeu,  se deu e se ofereceu.  É risco que não é solitário… A fidelidade se vive com o outro e se funda na confiança um dia feita, ao estrangeiro, à estrangeira  que se tornou a pessoa mais próxima. É bem no seio deste relacionamento estranho e admirável que somos convidados a viver esta dimensão da existência que é a fidelidade, o dom ao outro daquilo que é nos é mais caro e que não nos pertence:  nós mesmos, entrega que se abre ao risco e à alegria.

Ser fiel é engajar-se numa aventura desconhecida, porque não está escrita  de antemão, que encontrará surpresas, riscos, escuridões, traições.  A questão é sempre esta: como todos esses momentos serão vividos relacionados com esta promessa primeira, aquelas primeiras palavras que falavam do desejo de construir uma história? Por isso, a fidelidade não se repete, mas se renova tendo em mente o elã originário que deu origem a esse  movimento de vida.

Ser fiel se escolhe e se escolhe sempre de novo.  Não se trata de algo realizado num instante, mas em cada instante, porque a fidelidade tem a ver com nossa fragilidade, atinge ao mesmo tempo nosso desejo profundo de ser fiel e, ao mesmo tempo, nossas tendências invencíveis a não sê-lo.

Não se pode falar de fidelidade sem aludir ao tema da traição. O termo é menos recorrente em nossos tempos. A traição não é apenas realidade que concerne a espiões. Há muitos modos de trair uma promessa. O Evangelho o afirma quando diz que o olho é a lâmpada do coração. Nossos olhos não cessam de dizer quanto somos infiéis ao que nossos lábios confessam.  Prometemos isto e nossos olhos  procuram aquilo.  Assim somos chamados a nos educar em matéria de fidelidade.  Não o somos naturalmente. A fidelidade não está inscrita em nosso código genético. Seremos fiéis passo a passo.

A fidelidade é conduta cotidiana que nos orienta rumo ao infinito abrindo-nos a uma história imprevista e imprevisível. Decidimo-nos a ser fieis e estamos  sujeitos à nossa própria fragilidade.  A fidelidade é humana, somos humanos, frágeis, o que não deve ser fonte de desespero, mas de aquiescência a que somos seres  da história,  homens e mulheres finitos, vivendo no tempo e acolhendo as surpresas desse mesmo tempo.

A fidelidade  demanda esforço, aceitação de atravessar noites escuras, muitas e dolorosas incompreensões.  Atinge em nós a vida, esta vida que não nos pertence, embora desejemos manipulá-la.  A fidelidade nos envia ao não disponível. Podemos nos decidir a ser fiéis, mas não o fazemos sozinhos. É um  perene procedimento de aliança, numa relação de troca;  entramos nesse agir que está em movimento.. Embora definitiva, a fidelidade nunca está engessada em suas expressões.

A fidelidade não é uma palavra e, no entanto, ela precisa sem fim de palavras para se dizer, partilhar, se construir, tecer e novamente tecer, tudo como a ternura.

Por que se fiel? Não há uma razão lógica porque aqui nos encontramos   no plano da fé em nós mesmos e nos outros. Tocamos uma região de profunda pobreza descobrindo que não somos nós mesmos a não ser no e pelo relacionamento de liberdade com o outro.

É feito um convite de dar e receber. Chegamos a vislumbrar questões vitais, mas que sufocamos ou deixamos para amanhã, depois de amanhã, quer dizer, para momentos que nunca chegarão. Não colocamos os verdadeiros questionamentos. O que faço de minha vida? O que desejo viver para crescer na aventura humana tão apaixonante quanto dilacerante, vida feita de “desgraças” e alegrias, para além do razoável?  A fidelidade se revela como um a postura, um comportamento  em que seremos livres mas ligados a outros.  Esta experiência é paradoxal e deverá ser retomada, como toda descoberta que se abre ao desconhecido.

Fidelidade humana, não fidelidade mecânica. É desejo de construir nossa personalidade desse relacionamento com relação aos outros, ato que será sempre retomado.  Quando se escolhe ser fiel rejeita-se a inércia, porque a fidelidade é precária. Supõe vigilância, trabalho de sentinelas  porque ela está dirigida ao desconhecido.

A fidelidade é, pois, história, memória, atitude de quem sabe deixar o passado agir no presente. Não é laço mecânico, mas um bem histórico.  Vivemos a fidelidade no meio das mudanças imprevisíveis de nossa história, de nosso mundo e do outro. No âmago da fidelidade está a decisão fundante que nos faz mergulhar na paz, sem nunca nos deixar em paz porque é constante convite  à criação, à invenção.

A fidelidade caminha junto com a coragem, outra virtude que parece tão pouco apreciada em nossos tempos, virtude que também é sinal de nossa finitude. Sim, a fidelidade permite que se estabeleçam relacionamentos de confiança entre os homens.  Talvez tenhamos esquecido que é necessário ter desejo de ser fiel.  Assim podemos nos relacionar com o tempo sem “matá-lo”  mas atravessá-lo na paciência das obscuridades.  Ela é escolha pela duração, protestação contra as decisões efêmeras, desejo de construir uma história que aponta para o sentido.

A fidelidade se conserva sendo recriada. Tem sua origem num começo com o qual não se confunde, sem deixar de construir-se na lembrança desse primeiro compromisso.  Ela é invenção de uma vida humana que vai ganhando consistência, peso, força e serenidade.

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