Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

São José de Anchieta

São José de Anchieta, o Apóstolo do Brasil

Neste dia 9 de junho, a Igreja celebra São José de Anchieta. A canonização é recente, de abril de 2014. Porém, para nós, brasileiros, José de Anchieta é nosso santo intercessor desde sempre.

Chamado de Apóstolo do Brasil, José de Anchieta chegou muito jovem à Terra de Santa Cruz. Saiu de Portugal em 1553, aos 19 anos. Tudo na vida de José de Anchieta foi precoce. Deixou a família para estudar Letras e Filosofia em Coimbra aos 14 anos, ingressou na Companhia de Jesus aos 17. É deste jovem a quem nos referimos.

Pensemos nos nossos jovens de hoje. Imagine alguém aos 19 anos atravessando o oceano para evangelizar em um continente ainda em descoberta. Os desafios, os medos, as incertezas que deviam habitar o coração deste missionário.

Foi neste coração que nasceu a missão de Anchieta. Como afirma o 29º Prepósito-Geral da Companhia de Jesus, Padre Adolfo Nicolás, José de Anchieta não foi movido por um espírito de aventura, mas sim por um espírito disponível para a missão, um espírito que buscou e encontrou a vontade de Deus para sua vida.

José de Anchieta empregou toda sua criatividade para evangelizar. Não tinha formação em Teologia, mas por meio da arte e da literatura levou a Boa Nova aos seus destinatários. Aprendeu o tupi para se comunicar com os índios. Escreveu belíssimos poemas e autos da vida de Cristo. As cartas do jovem descrevem com brilhantismo o Brasil da época. Suas produções constituem uma parte importante de nossa história enquanto nação.

O jesuíta Francisco Ivern, em 1997, escreveu um texto brilhante a respeito dos Direitos Humanos e José de Anchieta. Mais atual impossível! Neste texto, percebemos a importância da missão de José de Anchieta para os indígenas que habitavam o Brasil. Ele não foi apenas instrumento de evangelização, mas deixou-se conformar com estas pessoas. Não agiu para elas, mas com elas. É assim que deve ser um missionário.

Ele foi ao encontro das pessoas, fundou colégios, cidades, era um peregrino, assim como o fundador dos jesuítas, Santo Inácio de Loyola. A vocação de José de Anchieta foi amadurecendo à medida em que ele vivia experiências profundas, humanas e espirituais. Teve como Projeto de Vida o serviço, a vida missionária.

São José de Anchieta morreu aos 63 anos, mas sua vida, apesar de tão breve, foi um testemunho de doação. Acompanhe neste Especial um pouco destas experiências vividas pelo Apóstolo do Brasil.

Histórico

José de Anchieta era o 3º filho de João Lópes de Anchieta e Mência Dias de Lharena. Nasceu no dia 19 de março de 1534. Seu nome tem origem no santo do dia, São José. A família morava na ilha de Tenerife, a maior no arquipélago das Ilhas Canárias, ao lado do África.

José se adiantou tanto nos estudos, que seus pais resolve­ram mandá-lo para a Europa, para cursar Letras e Filosofia, em Coimbra, Portugal. Nessa cidade, a devoção à Imaculada Conceição de Maria era muito tradicional. Foi no dia dedi­cado a ela que José de Anchieta fez seus votos de castidade perpétua. Na Universidade, tinha companheiros de aula que eram jesuítas e lhe passavam as cartas de seus missionários, como São Francisco Xavier e Nóbrega. Foi então que Anchie­ta pediu para entrar na Companhia de Jesus. Santo Inácio, Prepósito-Geral há onze anos, era parente dos Anchietas. Foi recebido na Companhia com facilidade, por seus dotes de inteligência e virtude.

Feitos os Exercícios Espirituais de 30 dias, o Ir. José deu-se com toda a alma aos experimentos do noviciado. Um deles era ajudar a missa individual dos numerosos sacerdotes de Coim­bra. Servindo a muitas delas em seguida, em jejum e de joelhos, foi vítima de um deslocamento da coluna dorsal, que se tornou uma doença incurável. Pe. Simão Rodrigues o animou, dizendo que as notícias que chegavam do Brasil eram de que a terra parecia muito boa para os doentes. Foi mandado então para o Brasil, com outros 5 companheiros. Antes de partir, fez seus primeiros votos.

Já no Brasil, foi para o sertão de Piratininga com ou­tros 13 jesuítas, quase todos em formação, para o colégio, que até então estava em São Vicente. Anchieta foi nomea­do mestre de latim para seus companheiros, e ao mesmo tempo aprendia a língua dos índios. Dessa escola nasceu a metrópole de São Paulo.

Anchieta fez os últimos estudos na Bahia, em um ano e meio. Foi ordenado sacerdote no final de 1566. Em segui­da, partiu para o Sul com o bispo Dom Pedro Leitão, o Pro­vincial e o Visitador Inácio de Azevedo. Foi nomeado Supe­rior de São Vicente e São Paulo, onde permaneceu por 10 anos, animando todo o apostolado do Sul, entre índios e colonos. Fundou as aldeias de Pinheiros, São Miguel e Gua­rulhos. Foi o verdadeiro pai espiritual de São Paulo. Em suas visitas provinciais, fazia uso do pequeno navio San­ta Úrsula, e com ele percorreu todas as casas da província mais de 10 vezes.

Em 1588, já não sendo mais provincial, foi destinado para Vitória, no Espírito Santo, como superior da Residência e das aldeias dos índios. Lá, durante quase 10 anos, foi o pai dos pobres, o taumaturgo dos doentes, o consolador dos aflitos, conselheiros dos governantes, amigo e defensor dos índios, para quem escrevia autos e canções.

José de Anchieta tinha uma saúde frágil, e todo ano pas­sava algumas semanas de cama. Nesses momentos, rezava e compunha autos teatrais e poesias, não somente por gosto pessoal, mas para que outros pudessem tirar proveito de seus escritos.

Os últimos anos da vida do apóstolo do Brasil foram como toda a sua vida, repletos de trabalhos e dedicação ao próxi­mo. Foi para a Aldeia de Reritiba em 1596. Em junho desse mesmo ano, foi chamado para substituir o superior da co­munidade em Vitória. Andou por engenhos e fazendas dos brancos e por aldeias dos índios, ajudando no que era neces­sário. No ano seguinte, volta para Reritiba, onde vive ali seus últimos meses de vida.

Após ficar 3 semanas de cama, José de Anchieta falece em 9 de junho de 1597, aos 63 anos.

Texto adaptado da Novena ao Beato José de Anchieta, do Pe. Armando Cardoso, de 1986.

Cronologia

19/03/1534
Nascimento em Tenerife – Ilhas Canárias.

1548
Inicia os estudos em Portugal (Universidade de Coimbra).

1551
Ingresso na Companhia de Jesus (em Coimbra).

1553
Embarca para o Brasil.

1553, julho
Chegada em Salvador (BA).

1553, 24/12
Chegada em São Vicente (SP).

25/01/1554
Com outros companheiros, funda o Colégio São Paulo de Piratininga, 1º colégio jesuíta das Américas.

1563
Vira refém dos Tamoios em Iperoig (Ubatuba), quando escreve o poema a Virgem.

1564
Publica-se em Coimbra a obra de “De Gestis Mendi de Saa”, 1ª obra épica das Américas.

1566
É ordenado presbítero em Salvador por Dom Manoel Leitão, 2º bispo do Brasil.

1567
Assiste a fundação da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

1567-1577
Instala-se em São Vicente com trabalhos apostólicos, viajando frequentemente ao Rio de Janeiro.

1577-1588
Provincial da Companhia de Jesus no Brasil, visita toda a costa leste do país.
Publica a maior parte de sua obra literária, em português e tupi, inclusive suas peças teatrais.

1578 – 1592
Vive, principalmente, na Capitania do Espírito Santo, onde também escreveu importantes autos teatrais.

1595
É publicada em Coimbra a “Arte da Gramática mais usada da Costa do Brasil”, uma das obras gramaticais mais originais do século XVI.

09/06/1597
Morre em Reritiba, hoje Anchieta (ES).

1980
Beatificado em Roma pelo Papa João Paulo II.

1997
Brasil, Portugal e Espanha celebram seu IV Centenário de Morte.

03/04/2014
É canonizado pelo Papa Francisco.

José de Anchieta e os direitos humanos

Francisco Ivern, SJ

Tivemos que esperar até dezembro de 1948 para que o grito revolucionário (“liberdade, fraternidade e igualdade”) e os esforços de tantas gerações de homens e mulheres ilustres, que nos precederam e lutaram para defender e libertar o ser humano de toda opressão, injustiça e discriminação, encontrassem na Declaração Universal dos Direitos Humanos, pela primeira vez, expressão política mais concreta e sistemática em nível mundial.

Não podemos esquecer este fato, ao tratar, hoje, da contribuição do jesuíta canário, no campo dos direitos humanos, no século XVI, quatrocentos anos antes daquela Declaração. Também não podemos esquecer o complexo contexto histórico, civil e eclesiástico, a condicionar a ação evangelizadora e o trabalho cultural deste homem extraordinário, que reunia na sua pessoa rica gama de talentos os mais variados. Anchieta não foi apenas evangelizador e catequista, como também homem de governo, educador exímio, linguista, poeta, dramaturgo, médico improvisado, mediador e pacificador de conflitos.

Seria grave anacronismo esperar encontrar em Anchieta o grau de consciência explícita, que se reflexa na Declaração das Nações Unidas. Encontramos nele, sim, de modo eminente, a atitude humana fundamental, diante do ser humano e, em particular, do mais pobre, fraco, ignorante e desprezado, sem a qual a dignidade humana e os direitos nela implicados estão continuamente ameaçados, mesmo nos nossos dias. Anchieta não poderia deixar de ser, em muitos aspectos, homem do seu tempo. Em outros, porém, notadamente na sua luta para defender a liberdade dos povos indígenas, sua personalidade se destaca. Seu exemplo e testemunho, não apenas conservam todo o seu valor, como também são particularmente relevantes, em nossos dias, quando um sistema econômico, global e globalizante, coloca sua esperança de prosperidade e até de justiça, quase exclusivamente, nas leis do mercado, sem controle social, deixando sem proteção os mais pobres e fracos, os menos educados e os piores informados.

Quando analisamos o tempo em que Anchieta viveu, é difícil compreender, senão à luz da fé, como foi possível pessoas como ele assumirem a causa dos índios, acreditando que valia a pena lutar pela sua liberdade, viver no meio deles, aprender sua língua, consagrar-se à sua educação e tentar convertê-los ao cristianismo, mesmo com risco da própria vida. Anchieta não foi, certamente, o primeiro a defender a causa indígena. Antes dele chegar ao Brasil, o antigo encomendero (1) e conquistador, o teólogo e missionário, Frei Bartolomé de Las Casas, inspirado pela pregação ele Frei Antônio de Montesinos, tornou-se, pelos seus escritos e discursos, o grande defensor da causa indígena, na América Latina hispânica. De algum modo, porém, José de Anchieta e seu contemporâneo e primeiro Superior em terras brasileiras, Manuel da Nóbrega, representam para o Brasil o que Las Casas representou para a América colonial espanhola. Não tanto por sua eloquência e escritos em favor dos índios, embora estes não faltem, quanto, sobretudo, pelo exemplo de sua vida, vivida em contínuo contato com aquela classe tão desprezada e oprimida, no seu tempo.

Lembremos que, pouco antes de Anchieta chegar ao Brasil (1553), Bartolomé de Las Casas, já de idade avançada, no Concílio de Valladolid (1550), enfrentou Juan Ginés de Sepúlveda. Este considerava os índios inferiores aos espanhóis, “do mesmo modo que os macacos são inferiores aos homens”. Sabemos que, naquele enfrentamento, quem saiu vitorioso não foi o grande Bartolomé de Las Casas, senão Ginés de Sepúlveda. Os ensinamentos deste último governaram e orientaram, durante bastante tempo, – senão “de iure”, certamente “de facto” -, apesar de todos os decretos régios, a prática dos colonizadores espanhóis. O mesmo acontecia, e ainda pior, no Brasil do século XVI.

Nas capitanias hereditárias brasileiras (o equivalente às “encomendas”), a escravidão era direito adquirido, reconhecido de fato pelo rei. O chamado “saltelo”, rápido golpe de mão por um pequeno “comando” armado, as incursões dos “bandeirantes”, as chamadas guerras preventivas e defensivas dos “sertanistas”, eram os métodos mais frequentemente usados para capturar e escravizar os povos indígenas, primeiro os mais próximos da costa, depois, os do interior. A supressão dos índios, ou quando menos sua redução à escravidão, eram condição necessária para a ocupação e exploração das terras conquistadas.

Após a implantação do “Governo Geral” (1549), pouco antes da chegada de Anchieta ao Brasil, as Capitanias perdem bastante de sua autonomia; os reis e governadores esforçam-se por controlar os excessos e proteger a integridade física dos povos indígenas. Suas declarações estão cheias de nobres sentimentos. Todavia, a injustiça e opressão continuaram durante séculos, pela dificuldade de controlar a distância, num imenso território, os colonos e as autoridades locais, que prosseguiam, impunemente, sua política de opressão e destruição dos índios. A matança de índios não era considerada homicídio, antes um ato de virtude, como constata, não já no séc. XVI, mas dois séculos mais tarde, o Conde de Arcos, que foi Governador de Pernambuco e Goiás e, mais tarde, Vice-Rei na Bahia. Poderíamos multiplicar as citações e os exemplos, mas basta o dito para ilustrar o contexto histórico e social em que Anchieta viveu e atuou.

A Igreja não só estava inserida neste contexto, senão que era parte integrante dele. Na época colonial, a colonização de novas terras e a evangelização dos povos nativos que nelas moravam, estavam inseparavelmente unidas. Uma justificava e legitimava a outra. Os objetivos religiosos e as razões de Estado confundiam-se. Pelo regime do “Padroado”, o “Padroeiro”, o rei, senão de direito, pelos menos de fato, nomeava e destituía Bispos e agia praticamente como se fosse o Papa, nos territórios recentemente colonizados.

No Brasil, de modo especial, mas não apenas neste país, os reis colocaram sua esperança nos jesuítas, para controlar os excessos das autoridades locais e dos colonizadores, contra os povos indígenas. Foi, em grande parte, graças aos jesuítas que a opressão dos índios tornou-se uma questão moral e também jurídica. Por sua vez, Roma apoiava-se neles, com frequência, para limitar a excessiva autoridade dos próprios reis dentro da Igreja. No final, uns e outros, colonizadores e reis, juntando suas forças, voltaram-se contra os filhos de lnácio e acabaram com sua presença, tanto na Europa como nas colônias, suprimindo a Companhia de Jesus, no século XVIII.

Foi nesse difícil contexto sócio-político e eclesial que a tarefa evangelizadora de Anchieta se desenvolveu. Em 1553, aos 19 anos, chega ao Brasil, cheio de zelo e ideais apostólicos. Entrega-se, em corpo e alma, à evangelização e conversão dos índios, vivendo no meio deles, morando e comendo como eles, aprendendo a língua tupi e escrevendo a primeira gramática desta língua. A este apostolado consagrou toda sua energia e seus muitos talentos. Todavia, não deixava de ser um homem do seu tempo e de compartilhar os juízos pouco lisonjeiros de sua época a respeito dos povos indígenas. Não podemos esquecer que o próprio Anchieta pertencia a uma estirpe de colonizadores. Viveu no clima de conquista, primeiro nas Ilhas Canárias, quando criança e adolescente, e mais tarde, jovem estudante universitário, em Coimbra, onde se sonhava com a criação do grande império colonial e marítimo português.

Como tantos homens e mulheres do seu tempo, Anchieta considerava também os índios culturalmente inferiores, e se perguntava, diante do aparente fracasso da evangelização, se o único modo de convertê-los e civilizá-los não seria subjugando-os de algum modo, certamente não pela força ou violência física, mas pelo menos mediante uma certa coação moral. Os aldeamentos indígenas, equivalente brasileiro das famosas “reduções”, que chegaram a reunir, no seu apogeu, mais de 40.000 índios, não eram somente um meio, talvez o único, de preservar a integridade física dos índios, isolando-os e protegendo-os contra os ataques dos colonizadores, como também um modo de “controlá-los” e induzi-los pacificamente a aceitar o cristianismo e, com ele, a “civilização”. No seu conhecido poema épico De Gestis Mendi de Saa, Anchieta não deixa de refletir a cultura do seu tempo e o etnocentrismo reinante, ao exaltar a força dos colonizadores e a glória e esplendor que representavam, neste contexto, os aldeamentos indígenas.

No entanto, diante da opressão e perseguição sistemática que sofriam os índios, das inúmeras injustiças que se cometiam contra eles, apesar de todas as proibições de reis e governadores, Anchieta e seus companheiros tendem a identificar-se cada vez mais com a causa dos povos indígenas e com a defesa dos seus direitos, em particular do seu direito a ser livres. A obrigação de libertar os escravos conquistados pela força era para eles uma questão de justiça. Para defender esse direito, usavam os poucos meios que como sacerdotes tinham ao seu alcance: queixas e protestos nas suas cartas aos reis e às autoridades locais, condenação pública da escravidão em seus sermões, chegando a negar-se a administrar os sacramentos aos colonizadores que violavam aquele direito.

Anchieta e companheiros se identificaram, não simplesmente com uma “causa”, mas com as pessoas concretas cuja liberdade defendiam. Sua proximidade e estreita convivência com os índios que, na opinião comum da época, incluindo a de muitos missionários, “viviam como bestas, sem rei, nem lei, nem razão”, suscitaram a oposição e as críticas das autoridades, também eclesiásticas, para quem a conversão ao cristianismo passava necessariamente pelo “aportuguesamento”. Essa gradual identificação humana e afetiva com os povos indígenas, com sua língua e sua cultura, fez com que Anchieta chegasse a afirmar, dois anos antes da sua morte, que se entendia e dava melhor com os índios do que com os portugueses. Este sentimento era compartilhado por outros jesuítas contemporâneos, como Gaspar Lourenço, a quem os índios tinham por pai e que, ao morrer, quis ser enterrado numa aldeia indígena, ao lado de seus filhos adotivos.

Esse amor e preocupação com a dignidade da pessoa humana, por pobre e ignorante que fosse, e quanto mais pobre e ignorante, maior amor e preocupação, constituem um leit-motiv, uma nota que se repete constantemente no ensino social da Igreja. Hoje, traduz-se pela expressão “opção preferencial pelos pobres”. “Preferencial” não porque o pobre seja mais virtuoso, nem mais justo ou honrado do que os outros, senão porque, com frequência, como nos tempos de Anchieta, sua pobreza ou sua permanência nela é resultado do egoísmo humano, da cobiça e ambição, alimentada por uma sociedade que nos ensina a possuir e consumir sempre mais e tende a medir o sucesso, tanto individual como coletivo, em termos de progresso meramente econômico ou de uma renda monetária cada dia mais elevada.

Para o cristianismo, a dignidade do ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus, constitui a base comum de sua liberdade e fundamental igualdade e fonte de seus direitos. A história ensina que os sistemas políticos e econômicos que buscam unilateralmente sua base de apoio, seja na liberdade, seja na igualdade, acabam sacrificando uma ou outra e, com frequência, ambas. O mesmo acontece com os direitos, que têm como principal fundamento a exigência de liberdade ou da igualdade.

Quando o conceito de liberdade é acentuado unilateralmente, termina-se sacrificando os chamados direitos sociais e econômicos, especialmente dos mais pobres e fracos. Na doutrina liberal a necessidade não é fonte de direitos. Na doutrina social da Igreja, sim. Na necessidade como fonte de direitos fundamenta-se, na tradição cristã, o conceito de justiça social.

Quando se defende de maneira radicalizante a necessidade da igualdade, termina-se sacrificando os chamados direitos civis e políticos, e a própria igualdade sofre prejuízo. Sabemos que nos regimes totalitários (como os comunistas), em nome de um futuro mais solidário e justo, sacrificavam-se os direitos e liberdades democráticas.

Apoiando-nos no amor e profundo respeito pela pessoa humana que motivaram e orientaram toda a vida do Beato Anchieta, poderíamos dar um salto no tempo e passar aos nossos dias. Caiu o muro de Berlim. O socialismo real e os sistemas políticos e econômicos de inspiração marxista sofreram dura e espetacular derrota. Sem críticos externos, nem poderosos rivais que o ameacem, o sistema político e econômico liberal, na sua versão moderna e atualizada, no chamado neoliberalismo, reina absoluto e se apresenta como o único sistema possível e viável. Seu reinado coincidirá com o fim das ideologias e das utopias ou, em palavras de Fukuyama, marcaria o fim da história.

Sem querer negar nem minimizar as inegáveis conquistas e as múltiplas vantagens, e mesmo os verdadeiros valores do sistema neoliberal, como cristãos e do ponto de vista da fundamental dignidade da pessoa humana e dos direitos que ela exige, não podemos aceitá-lo. Nossa crítica não é puramente negativa, mas é severa e profunda, porque toca o próprio coração do sistema. O que está em jogo é a própria concepção da pessoa humana e da sociedade, que se encontram na base do sistema neoliberal. Tal concepção se reflete nos seus objetivos de natureza sócio-econômica e sócio-política, nas políticas, estratégias e meios empregados para alcançá-los e que caracterizam, em diversos modos e graus, todos aqueles países que se inspiram nesse sistema e que, hoje, constituem a grande maioria.

Num mundo dominado pelo materialismo e consumismo, no qual o sucesso e a felicidade das pessoas e das sociedades se medem, sobretudo, pelo grau de bem-estar material ou pela capacidade de gerar desenvolvimento econômico ou renda monetária sempre crescentes; num mundo em que tudo e todos têm seu preço, a dignidade e os direitos dos mais pobres terão sempre a perder. Como no tempo de Anchieta, o único que poderia defendê-los e protegê-los contra uma sociedade dominada pela cobiça e ambição de ganhar e possuir sempre mais, seria o Estado.

No entanto, em países como o Brasil, constatamos que, ao mesmo tempo que cresce a economia, diminui a inflação, estabiliza-se a moeda e se fala de privatizar a economia para libertar o Estado de tarefas e funções que não são da sua  competência, o próprio Estado revela-se incapaz de cumprir suas responsabilidades  básicas, em áreas da sua competência e de fundamental importância para o bem-estar dos mais pobres, como saúde, educação, emprego, segurança, moradia etc.

Tal situação só mudará quando mudar também nossa escala de valores e a pessoa humana, em particular a mais necessitada, tenha a prioridade que lhe cabe. Enquanto o econômico não se subordinar ao social e o social ao político, para garantir uma sociedade que se caracterize, cada vez mais, pela qualidade de suas relações humanas e pela convivência solidária, participativa e fraterna, e não apenas por sua renda per capita ou seu PIB, os pobres do terceiro mundo continuarão sofrendo opressão e injustiça, como no tempo de Anchieta.

Voltando a Anchieta, é interessante constatar que seu amor pelos índios – que foi crescendo na medida em que os conhecia melhor e via como eram maltratados, perseguidos e escravizados – manifestou-se nas mesmas áreas que hoje afetam mais os pobres. Médico improvisado e de pés descalços, fundador de escolas e educador insigne, construtor de aldeias, que foram, às vezes, sementes de futuras metrópoles, artesão, carpinteiro e formador de artesãos, Anchieta procurou, ao seu modo – com a consciência social que lhe dava, não certamente sua paz, mas sua fé – satisfazer as necessidades básicas dos pobres índios. Curou-os, deu-lhes atenção, emprego, moradia e segurança. Fez ainda mais, dando sentido à vida de seus índios e dando-lhes esperança. Anchieta, antes do que médico, educador, construtor ou artesão, foi um grande apóstolo e evangelizador.

Qual seria, em resumo, a principal lição de Anchieta para os nossos dias? Neste terceiro milênio, pensando nas gerações que nascerão, viverão e trabalharão, temos uma grande tarefa educativa na nossa frente. Trata-se de inculcar nas jovens gerações uma nova escala de valores, ensinando-lhes a colocar sua felicidade e a buscar sua autorrealização não apenas no bem-estar material; de estimulá-los a buscar novos modelos de convivência social, nos quais o desenvolvimento integral das pessoas, em harmonia com o mundo e a natureza que os rodeia, a participação responsável, a solidariedade e a gratuidade, constituam para eles verdadeiros valores.

Não podemos conformar-nos com o presente. Para o cristão há sempre um além. O caminho que conduz a esse além, não é única nem prioritariamente o progresso material, científico ou tecnológico, senão um progresso a serviço da pessoa humana e, principalmente, a serviço não de uma minoria de privilegiados, mas de uma maioria de pobres e marginalizados: os sucessores modernos daqueles índios que Anchieta amou e aos quais dedicou toda sua vida.

1. Na América espanhola, “encomendero” era aquele que, por concessão régia, tinha índios ao seu encargo ou encomenda (N.d.r)

Artigo publicado na Revista Itaici – Revista de Espiritualidade Inaciana. Edição 29, setembro de 1997.

Mensagem do 29º Prepósito Geral da Companhia de Jesus, Padre Adolfo Nicolás*, por ocasião da canonização de José de Anchieta.

Queridos irmãos e amigos no Senhor:

A canonização nesta data, 3 de abril, do Beato José de Anchieta é um acontecimento que a Igreja do Brasil desejou muito e há muito tempo. Anchieta foi proclamado Apóstolo do Brasil, título pelo qual é conhecido até hoje, pelo arcebispo do Rio de Janeiro, na cidade de Reritiba, na mesma Igreja do Colégio onde se celebraram seus funerais em 1597.

A Companhia não deve deixar de responder a este convite que lhe é feito de resgatar esta figura polivalente, motivadora e extremamente atual. O que nos quer dizer o Senhor ao nos presentear, em menos de um ano, com o reconhecimento eclesial do valor evangélico das vidas de dois companheiros nossos, Pedro Fabro e José de Anchieta? Dois homens que levaram adiante missões tão diferentes e, no entanto, tão semelhantes no espírito jesuítico que deve animar nossa missão. Os dois, com a intensidade de suas vidas, convidam-nos a descobrir que “restauração”, mais que ser para nós um mero acontecimento histórico, deve representar o ‘modo de ser’ sempre presente, em um corpo apostólico em contínua recriação.

José de Anchieta, “de estatura mediana, magro, pelo vigor de seu espírito forte e decidido, moreno, de olhos azuis, fronte larga, nariz grande, barba rala, de semblante alegre e amável”, gastou 44 anos de sua vida percorrendo boa parte da geografia do Brasil e levando a boa nova do Evangelho aos indígenas.

Terceiro dos dez filhos que teve a família López de Anchieta y Díaz de Clavijo, José de Anchieta nasceu em Tenerife (Espanha), em 1534. Parente pela linhagem paterna da família dos Loyola, por suas veias corria, como herança dos avós paternos, sangue de judeus convertidos. Logo foi enviado para estudar na Universidade de Coimbra (Portugal), durante o chamado triênio de ouro do recém-fundado Colégio das Artes. Sua vocação à vida religiosa nasceu em um clima de ideias e liberdades morais que não a favoreciam, talvez estimulado pelo exemplo de alguns companheiros jesuítas influentes na universidade. De fato, as cartas de Francisco Xavier comoviam a juventude universitária de toda Europa.

Admitido ao Noviciado da Companhia na Província de Portugal, em 1º de maio de 1551, logo contraiu uma grave tuberculose ósseo-articular, que aos 17 anos de idade lhe provocou uma visível curvatura na coluna. Sua angústia de ser considerado inútil para o apostolado se viu muito aliviada ao escutar as consoladoras palavras do Pe. Simão Rodrigues, fundador da Província portuguesa: “Não se preocupe por essa deformação, Deus lhe quer assim”. Havia uma esperança no ar: começavam a chegar do Brasil as cartas do Pe. Manuel da Nóbrega, que ponderavam o quão saudável era para qualquer tipo de enfermidade o clima daquelas terras. E para lá partiu Anchieta, em 8 de março de 1553, tendo feito recentemente os primeiros votos, aos 19 anos de idade, na terceira expedição de jesuítas que embarcava para o Brasil.

Deparamo-nos já com o primeiro dos paradoxos desse jovem jesuíta: o forte contraste entre sua fragilidade física e a intensa vitalidade apostólica que desenvolveu ininterruptamente durante 44 anos, atravessando numerosas regiões do Brasil, até sua morte aos 63 anos. A vida de José de Anchieta é apostólica e radicalmente evangélica. “Não basta sair de Coimbra – dizia a seus irmãos doentes que ficavam ali – com uns fervores que logo se desfazem antes de cruzar a linha (do Equador), ou que logo se esfriam, com desejos de voltar a Portugal. É necessário levar o alforje cheio, para que as provisões durem até o final da jornada”.

Os desafios da missão atual exigem cada vez mais ‘a revitalização do corpo apostólico’ da Companhia. A fonte na qual bebia a vitalidade apostólica de Anchieta era sua profunda experiência espiritual. A solidez de sua fama de santo e taumaturgo fundamentava-se no amor, na oração, na humildade e no serviço.

Uma das críticas que se fizeram a ele diante do Visitador foi de que “fazia muita caridade”. Aos olhos de seus críticos, seu excesso de bondade estaria na origem de um governo que tendia a ser brando. O Pe. Gouveia, entretanto, não tinha a mesma opinião. Descreve-o como: “homem fiel, prudente e humilde em Cristo, muito querido por todos, ninguém tinha queixa contra ele, nem me é possível encontrar palavra ou ação em que tenha agido mal”. Sincero amigo de todos, sabia unir a bondade ao rigor e à firmeza, como desejava Santo Inácio em todo bom superior. Apesar de suas enfermidades, bem visíveis, o provincialado de Anchieta pôde ser considerado um dos mais dinâmicos e frutuosos de seu tempo.

Dos 44 anos que viveu no Brasil, 40 pelo menos se caracterizaram por uma incessante peregrinação, começando pela região de São Vicente e Piratininga, entre 1554 e 1564, quando da fundação da cidade de São Paulo e seus primeiros anos. Foi uma mobilidade que não lhe impediu de se entregar às aulas de latim e ao estudo mais aprofundado da língua tupi, uma vez que lhe permitia uma grande atividade missionária e catequética. Nomeado provincial, em 1577, e posteriormente superior, percorre casas e comunidades: pai dos pobres, taumaturgo para os enfermos e os que sofriam, conselheiro para os governantes, mas, sobretudo, amigo e defensor dos índios em suas aldeias.

Somente em 1595 a obediência o liberou das responsabilidades de governo. Restavam-lhe dois escassos anos de vida. Neles encontrou ainda tempo para participar na defesa da capitania do Espírito Santo contra as incursões dos índios goitacazes. Seu último destino foi a aldeia de Reritiba. Ali começou a escrever uma “História da Companhia de Jesus no Brasil”, preciosa obra perdida da qual só restam fragmentos.

Não lhe movia, certamente, para levar essa vida itinerante, nenhum espírito de aventura, senão um espírito de disponibilidade para a missão, de liberdade espiritual e de prontidão para buscar e encontrar a todo momento a vontade do Senhor. Acompanhou-o, até o fim, um ardor verdadeiramente apostólico. “Dado que não mereço ser mártir por outra via – escreve ele mesmo – que pelo menos a morte me encontre desamparado em alguma dessas montanhas e ali dê a vida por meus irmãos. A disposição de meu corpo é fraca, mas me basta a força da graça que, por parte do Senhor, não me há de faltar”.

Não deveria ser a itinerância – com tudo o que implica de liberdade espiritual, de disponibilidade e capacidade de discernir e de tomar decisões – uma das características indispensáveis de nosso corpo apostólico? O contínuo peregrinar de Anchieta, quase uma forma de vida, poderia inspirar hoje em dia e estimular nossa busca de mobilidade apostólica, para responder aos desafios que nos propõem as novas fronteiras.

Uma característica de grande relevância na figura humana, espiritual e apostólica de José de Anchieta se manifesta em sua capacidade para organizar estruturalmente a missão, integrando as distintas presenças apostólicas e as diferentes dimensões em um só projeto diversificado e complexo, mas único. E, no centro, dando sentido a tudo, o amor pelos índios: “sinto os índios, escreve ele mesmo, do seu último refúgio na aldeia de Reritiba, mais próximos que os portugueses, porque é por eles que vim ao Brasil”.

Com o Pe. Nóbrega, participou na primeira fundação do Rio de Janeiro. A segunda e definitiva fundação não se levaria adiante senão dois anos depois, com ajuda de uma esquadra vinda de Portugal, capitaneada pelo próprio governador Mem de Sá. Na ocasião, Anchieta escreveu sua primeira obra em latim: De Gestis Mendi de Saa. Pertence a essa época também o auto sacramental intitulado “Pregação universal”, inspirado na cerimônia indígena de acolhia aos personagens ilustres, com o qual introduzia na língua tupi a técnica do verso e das estrofes, típica do teatro português. Sempre soube colocar a serviço da missão seus extraordinários dons de perfeito humanista: seu domínio da gramática, seu gosto pelos clássicos latinos e sua habilidade na arte da oratória. Com enorme fecundidade, compôs em tupi os “Diálogos da fé” (catecismo maior para a instrução dos índios na doutrina cristã), adaptou opúsculos para a preparação ao batismo e para a confissão e concluiu a gramática da língua mais usada na costa do Brasil, o tupi.

Sempre agente de reconciliação, empenhou-se profundamente no diálogo com os índios tamoios, até o ponto de ser tomado como refém e de viver entre eles sequestrado por cinco meses. Feitas as pazes com os tamoios e posto em liberdade, ainda teve forças para retornar a São Vicente e escrever o poema à Virgem De Beata Virgine Dei Matre Maria. Não lhe intimidou a carência de papel. Dístico por dístico foi escrevendo sobre a areia e memorizando aqueles mais de 5.800 belíssimos versos.

O folclore popular, adaptado como música religiosa, servia-lhe para a representação de “autos” em português e tupi. Era incessante sua atividade para enriquecer o ministério pastoral e catequético entre os índios com representações teatrais festivas. Considerava imprescindível aproximar-se da psicologia indígena.

São muitas as razões que temos para estar agradecidos ao Papa Francisco por propor ao mundo, com o novo destaque da santidade, o exemplo de José de Anchieta. Para a Companhia de Jesus é uma ocasião de restaurar com intensidade a busca daqueles horizontes que ele perseguiu e que são sempre novos: a sensibilidade diante da diversidade étnica e a pluralidade religiosa, cultural e social; o desenvolvimento incansável de uma nova liberdade criativa e de uma responsável capacidade de improvisação; a busca constante de expressões inculturadas para a experiência cristã e evangelizadora.

Que este novo intercessor nos ajude a buscar cada vez com maior empenho a vontade de Deus e a cumpri-la sem descanso.

Fraternalmente no Senhor,

Adolfo Nicolás, S.I.
Superior Geral – Roma, 3 de abril de 2014.

*Padre Adolfo Nicolás é o 29º Prepósito Geral da Companhia de Jesus. Em 2014, ele convocou a 36ª Congregação Geral, que elegeu seu substituto, o venezuelano Arturo Sosa Abascal, em 3 de outubro de 2016.

Homilia do Papa Francisco na Santa Missa em ação de graças pela canonização de São José de Anchieta

Igreja de Santo Inácio de Loyola – Roma

Quinta-feira, 24 de abril de 2014

No trecho do Evangelho que há pouco ouvimos os discípulos não conseguem acreditar na alegria que sentem, pois não podem crer por causa desta alegria. Assim diz o Evangelho. Analisemos a cena: Jesus ressuscitou, os discípulos de Emaús narraram a sua experiência: também Pedro afirma que O viu. Sucessivamente, o próprio Senhor aparece na sala e diz-lhes: «A paz esteja convosco!». Vários sentimentos irrompem nos corações dos discípulos: medo, surpresa, dúvida e, finalmente, alegria. Um júbilo tão grande que, devido a esta alegria, «não conseguiam acreditar». Estavam assustados, transtornados, e Jesus, praticamente esboçando um sorriso, pede-lhes algo para comer e começa a explicar as Escrituras, abrindo-lhes a mente para que pudessem compreendê-las. É o momento da admiração, do encontro com Jesus Cristo, onde tanta alegria não nos parece verdadeira; ainda mais, assumir a alegria, o júbilo daquele instante, parece-nos arriscado e sentimos a tentação de nos refugiarmos no ceticismo, no «não exageres!». É mais fácil acreditar num fantasma do que em Cristo vivo! É mais fácil ir ter com um necromante que nos prediz o futuro, que nos lê as cartas, do que ter confiança na esperança de um Cristo vencedor, de um Cristo que venceu a morte! É mais fácil uma ideia, uma imaginação, do que a docilidade a este Senhor que ressuscita da morte e só Deus sabe para que nos convida! Este processo de relativizar tanto a fé acaba por nos afastar do encontro, distanciando-nos da carícia de Deus. É como se «destilássemos» a realidade do encontro com Jesus Cristo no alambique do medo, no alambique da segurança excessiva, do desejo de controlarmos nós mesmos o encontro. Os discípulos tinham medo da alegria… e também nós!

A leitura dos Atos dos Apóstolos fala-nos de um paralítico. Ouvimos somente a segunda parte da história, mas todos nós conhecemos a transformação deste homem, aleijado de nascença, prostrado à porta do Templo a pedir esmolas, sem nunca atravessar o seu limiar, e como os seus olhos fitaram o olhar dos Apóstolos, esperando que lhe dessem algo. Pedro e João não podiam oferecer-lhe nada daquilo que ele procurava: nem ouro nem prata. E ele, que tinha permanecido sempre à porta, entra agora com os próprios pés, saltando e louvando a Deus, celebrando as suas maravilhas. E a sua alegria é contagiosa. É isto que nos diz a Escritura de hoje: as pessoas estavam cheias de enlevo e, admiradas, acorriam para ver esta maravilha! E no meio daquela confusão, daquela estupefação, Pedro anunciava a mensagem. A alegria do encontro com Jesus Cristo, aquela que temos tanto medo de aceitar, é contagiosa e clama o anúncio: é ali que a Igreja cresce! O paralítico acredita, porque «a Igreja não se desenvolve por proselitismo, mas por atração»; a atração do testemunho daquela alegria que anuncia Jesus Cristo. Este testemunho que nasce da alegria acolhida e em seguida transformada em anúncio. Trata-se da alegria fundante! Sem esta alegria, sem este júbilo não se pode fundar uma Igreja! Não se consegue instituir uma comunidade cristã! É uma alegria apostólica, que se irradia, que se propaga. Como Pedro, também eu me interrogo: «Sou capaz, como Pedro, se me sentar ao lado do meu irmão e de lhe explicar lentamente a dádiva da Palavra que recebi e de o contagiar com a minha alegria? Sou capaz de convocar ao meu redor o entusiasmo daqueles que descobrem em nós o milagre de uma vida nova, que não se consegue controlar, e à qual devemos docilidade porque nos atrai e nos conduz? E esta vida nova nasce do encontro com Cristo?

Também São José de Anchieta soube comunicar o que ele mesmo experimentara com o Senhor, aquilo que tinha visto e ouvido dele; o que o Senhor lhe comunicava nos seus exercícios. Ele, juntamente a Nóbrega, é o primeiro jesuíta que Inácio envia para a América. Um jovem de 19 anos… Era tão grande a alegria que ele sentia, era tão grande o seu júbilo, que fundou uma Nação: lançou os fundamentos culturais de uma Nação em Jesus Cristo. Não estudou teologia, também não estudou filosofia, era um jovem! No entanto, sentiu sobre si mesmo o olhar de Jesus Cristo e deixou-se encher de alegria, escolhendo a luz. Esta foi e é a sua santidade. Ele não teve medo da alegria.

São José de Anchieta escreveu um maravilhoso hino à Virgem Maria à Qual, inspirando-se no cântico de Isaías 52, compara o mensageiro que proclama a paz, que anuncia a alegria da Boa Notícia. Ela, que naquela madrugada de Domingo sem sono por causa da esperança, não teve medo da alegria, nos acompanhe no nosso peregrinar, convidando todos a levantar-se, a renunciar às paralisias para entrar juntos na paz e na alegria que nos promete Jesus, Senhor Ressuscitado.

Das cartas de José de Anchieta

Trecho de carta de José de Anchieta a Inácio de Loyola, de 1554.

“Aqui fizemos uma casinha pequena de palha e a porta estreita de cana. As camas são redes que os índios costuram; os cobertores, o fogo, para o qual, acabada a lição à tarde, vamos buscar lenha no mato e a trazemos às costas, para passarmos a noite. A roupa é pouca e pobre, sem meias ou sapato, de pano de algodão… A comida vem dos índios, que nos dão alguma esmola de farinha e algumas vezes, mas raramente, alguns peixinhos do rio e mais raramente ainda, alguma caça do mato.”


Carta ao Padre Geral Diogo Laynez, 1º de junho de 1560.

“De muitos poderia contar, sobretudo escravos, de entre os quais uns morrem pouco tempo depois de serem batizados; outros que, batizados há mais tempo, depois de fazerem a confissão, partem ao encontro do Senhor. Por isso andamos quase sem parar visitando várias povoações, tanto de índios como de portugueses, sem ter em conta calores, chuvas ou grandes enchentes de rios; e muitas vezes de noite, por bosques muito escuros, socorremos os enfermos não sem grande trabalho, quer por causa das asperezas dos caminhos, quer pela incomodidade do tempo, sobretudo sendo tantas estas povoações e tão longe umas das outras, que não somos bastantes para acudir a tão diversas necessidades urgentes e, ainda que fôssemos muitos mais, mesmo assim não seríamos suficientes.

Além disso, ao socorrermos as necessidades dos outros, muitas vezes nós mesmos sofremos indisposições e desfalecemos no caminho, fatigados de dores, de tal modo que dificilmente podemos chegar ao destino. Deste modo, não parecem ter menos necessidade de ajuda os médicos que os próprios enfermos. Mas nada é árduo para aqueles que procuram unicamente a honra de Deus e a salvação das almas, pelas quais não duvidarão dar a vida. Muitas vezes nos levantamos do sono para socorrer os doentes e os moribundos…

Detive-me contar os que morrem, porque o verdadeiro fruto é aquele que permanece até o fim; e dos vivos não ousarei contar nada, embora haja que dizer, por ser tanta a inconstância de muitos que ninguém pode nem deve garantir a sua perseverança. Mas felizes os mortos que morrem no Senhor, os quais, livres das perigosas águas deste mar instável, abraçando a fé e os mandamentos do Senhor, são transferidos para a vida, libertos das cadeias da morte; e deste modo, o bem-aventurado êxito destes dá-nos tanta consolação que pode mitigar a dor que recebemos da malícia dos vivos. E, contudo, trabalhamos com muita diligência em adminis­trar-lhes a doutrina, exortando-os com pregações públicas e práticas particulares para que perseverem naquilo que aprenderam. Confessam-se e comungam muitos cada domingo; vêm também de outros lugares onde se encontram dispersos, para ouvir as missas e confessar-se.

Ó Deus Bondoso

Teu poder rege tudo, ó munífico Deus,
mas sempre ficas tu servo dos servos teus.
Nossa vida mortal te dignaste viver
e em duro pau de cruz, Cristo, por nós morrer.

Oh! vais subir ao céu e não queres deixar-me
sem ti, mas para sempre o corpo teu doar-me.
Tu ficas e tu vais: para as ter preparadas,
partes, antes de nós, às celestiais moradas.

Deixas do reino-a-vir eternal monumento,
o próprio corpo teu, Cristo, por alimento.
A mim pois, pecador, tu Senhor, és comida?
e te hei de rejeitar, se és tu quem me convida?

Porque minh’alma seca oh! não busca esse jorro?
e porque, ó Cristo bom, a tal manjar não corro?

Oh! queira eu te meter dentro de mim, bem no meio,
tu que jorras do Pai, de seu eterno seio.

Ó Cristo, nosso pai, que dos gozos teus banhas
os Santos, e encarnaste em virginais entranhas:

És sustento da mente, és um sorvo do peito,
ó Deus, do coração fonte de manjar perfeito!

Tu nutres todo o céu, nossa terra sustentas,
e a negra fome em nós dos lábios afugentas.

Sacias com teu sangue a garganta que estua:
Oh! sorva nossa boca água da fonte tua!

Só aspire por ti, pão divino da altura,
encontre só em ti meu paladar doçura!

Minh’alma seca busque essa fonte divina:
torne-se a nosso mal segura medicina!

Que eu conheça quem és! sê meu único amante!
inteiro eu ame a ti, de coração constante!

Se não conheço a ti, já não posso viver:
pois vida eterna, ó Deus, é só te conhecer!

E se não amo a ti, já não posso durar:
pois minha vida eterna, ó Deus, é só a ti amar!

Amo-te, porque tu não excluis o mendigo,
ó Hóspede, ó prazer do coração amigo!

Autor: José de Anchieta (1534 – 1597)

Oração a São José de Anchieta

São José de Anchieta,
Apóstolo do Brasil,
Poeta da Virgem Maria,
Intercede por nós, hoje e sempre.

Dá-nos a disponibilidade de servir a Jesus
Como tu o serviste
Nos mais pobres e necessitados.

Protege-nos de todos os males
Do corpo e da alma.
E, se for vontade de Deus,
Alcança-nos a graça que agora te pedimos (pede-se a graça)
São José de Anchieta, rogai por nós!