Retiro mensal: Reflexões de Frei Almir Ribeiro Guimarães
Janeiro
É com indisfarçada alegria que começamos neste mês de janeiro a oferecer a nossos “frequentadores” textos e reflexões para um eventual retiro mensal. Pensamos nos religiosos franciscanos, nas religiosas e também nos franciscanos seculares e naqueles que simplesmente são amigos de Francisco e de seu jeito de ser. O tema do mês de janeiro pode ser expresso deste modo: precisamos sempre de novo nos deixar cativar pelo Cristo. Há orações, indicações de leituras das Sagradas Escrituras, uma reflexão central apoiada desta vez em testemunhos e outros textos. Tendo a mão este roteiro poderá ser feito um retiro pessoal ou em fraternidade.
Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM
freialmir@gmail.com
ENCONTRO PESSOAL COM CRISTO
Que o Senhor Jesus volte a nos cativar
Ó Eterno, dize-me o tempo de minha vida,
qual a medida de meus dias.
Conheço bem minha fragilidade
Se existo e persisto na vida devo tudo à generosidade de teu amor.
Na verdade todo homem é como um sopro.
Ele passeia como uma sombra e todo
rumor que produz nada é senão vaidade.
Que posso esperar, Senhor?
Tu és a minha esperança.
Perdoa minha faltas.
Escuta meus pedidos, ó Eterno!
(Sl 39-38 adaptado).
João 1, 35-51 (ler na Bíblia)
Reflexão
Cristãos que somos pretendemos ser discípulos do Senhor. Cultivamos e cultivaremos cada vez mais intensamente nossa amizade pessoal pelo Senhor. Sentimos que precisamos de despojamento, simplicidade e gosto de mergulhar no silêncio. Discípulo e Mestre caminham juntos e caminham a vida inteira.
● O ideal mais decidido de Francisco: “Sua maior intenção, seu desejo principal e plano supremo era observar o Evangelho em tudo e por tudo, imitando com perfeição, atenção, esforço, dedicação e fervor os passos de Nosso Senhor Jesus Cristo no seguimento de sua doutrina. Estava sempre meditando em suas palavras e recordava seus atos com muita inteligência. Gostava tanto de lembrar a humildade de sua encarnação e o amor de sua paixão, que nem queria pensar em outras coisas” (1Celano 84).
● Quando chegam os irmãos, Francisco compreende que viverão todos do Evangelho e buscarão a amizade com Cristo: “Depois que o Senhor me deu irmãos ninguém me mostrou, o que eu deveria fazer, mas o Altíssimo mesmo me revelou que devia viver segundo a forma do Santo Evangelho. E eu o fiz escrever com poucas palavras e de modo simples e o Senhor Papa mo confirmou” (Testamento 14).
● Caminho de formação do seguidor de Jesus: “Olhamos para Jesus o Mestre que formou pessoalmente a seus apóstolos e discípulos. Cristo nos dá o método: “Venham e vejam” (Jo 1, 39). “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”(Jo 14,6). Com ele poderemos desenvolver as potencialidades que há nas pessoas e formar discípulos missionários. Com perseverante paciência e sabedoria, Jesus convidou a todos que o seguissem. Àqueles que aceitaram segui-lo, os introduziu no mistério do Reino de Deus, e depois de sua morte e ressureição os enviou a pregar a Boa Nova na força do Espírito” ( Doc. Aparecida, 276).
● O seguimento é fruto de uma fascinação pelo Mestre: “O caminho da formação do seguidor de Jesus lança suas raízes na natureza dinâmica da pessoa e no convite pessoal de Jesus Cristo que chama os seus pelo nome e estes o seguem porque lhe conhecem a voz. O Senhor despertava as aspirações profundas de seus discípulos e os atraía a si maravilhados. O seguimento é fruto de uma fascinação que responde ao desejo da realização humana, ao desejo de vida plena. O discípulo é alguém apaixonado por Cristo, a quem reconhece como mestre que o conduz e acompanha” ( Doc. Aparecida, 277).
● Quando o Senhor chama não quer que a resposta demore a ser dada. Há uma urgência. Chama: “Vem e segue-me!” O Senhor pede pressa: “O Senhor é impaciente: quer que o chamado responda logo à ocasião oferecida. Esta espécie de “pressa divina” é sublinhada em diferentes textos vocacionais dos evangelhos: imediatamente deixaram as redes e o seguiram (Mc 1, 18). Imediatamente Jesus os chamou e eles puseram-se a segui-lo (Mc 1,20); Jesus disse: “Segue-me”. “Ele se levantou e seguiu-o” (Mc 2,14). Ao imediatamente do chamado corresponde o imediatamente da resposta. Elemento para seguir o Mestre é abandono ou desapego dos bens. Exige-se um desapego radical de tudo e de todos, de modo a estar plenamente disponível para segui-lo. Para ir atrás dele expeditamente, é preciso deixar a existência de antes. No entanto, não é um simples e obre deixar, mas é uma opção. De fato nos textos evangélicos não é colocado tanto o acento no deixar como no seguir. “(…) deixaram as redes e seguiram” (Mc 1, 18) (…) e eles deixando o pai, puseram-se a seguir Jesus” (Mc 1,20). “Ele se levantou e seguiu-o” (Mc 2,14). Portanto, o “deixar” não é fim em si mesmo, mas está em função do “seguir”. É o verbo seguir que caracteriza o discípulo e não o termo aprender, muito menos o “deixar”. O desapego, o abandono, o deixar constituem o momento negativo; ao contrário, o momento positivo é constituído por aquilo que se tem em contrapartida. Deixa-se uma existência por outra; abandona-se todo o resto para viver a aventura da “sequela Christi” (Ubaldo Terrinoni, Projeto de pedagogia evangélica, Paulinas, p. 46-47).
● Os que se encontram com Jesus e ouvem seu chamado passam por um processo de transformação que sempre foi designado pela palavra conversão. “A pessoa divina de Jesus investe e envolve de algum modo o chamado que lhe muda o projeto de vida, o modo de viver, de pensar e de agir. Lentamente, o discípulo se encontra com um novo modo de escolher e de avaliar as coisas, as pessoas, os acontecimentos. O mestre Jesus exerce sobre o discípulo tal poder de atração que se torna irresistível! O apóstolo Paulo dirá de si que foi “agarrado” por Jesus Cristo (Fl 3, 12) (Terrinoni, op.cit., p. 47).
● O Papa Francisco na Exortação Apostólica Evangelli Gaudium mostra que precisa haver um laço estreito entre o encontro pessoal com o Senhor e a tarefa da evangelização – A primeira motivação para evangelizar é o amor que recebemos de Jesus, aquela experiência de sermos salvos por ele, que nos impele a amá-lo cada vez mais. Um amor que não sentisse necessidade de falar da pessoa amada, de apresentá-la, de torná-la conhecida, que amor seria? Se não sentimos o desejo intenso de comunicar Jesus, precisamos nos deter em oração para lhe pedir que volte a cativar-nos. Precisamos implorar a cada dia a sua graça para que abra o nosso coração frio e sacuda nossa vida tíbia e superficial. Colocados diante dele com o coração aberto, deixando que ele nos olhe, reconhecemos aquele olhar de amor que descobriu Natanael no dia em que Jesus se fez presente e lhe disse: “Eu te vi, quando estavas debaixo da figueira” (Jo 1,48). Como é doce permanecer diante de um crucifixo ou de joelhos diante do Santíssimo Sacramento, e fazê-lo simplesmente para estar à frente de seus olhos! Como nos faz bem deixar que ele volte a tocar nossa vida e nos envie para comunicar a sua vida nova! Sucede, então, que, em última análise “o que nós vimos e ouvimos, isto anunciamos” (1Jo 1,3). A melhor motivação para se decidir a comunicar o Evangelho é contemplá-lo com amor, é deter-se em suas páginas e lê-lo com o coração. Se o abordarmos dessa maneira, sua beleza deslumbra-nos, volta a nos cativar constantemente. Por isso, é urgente recuperar o espírito contemplativo que nos permita redescobrir, a cada dia, que somos depositários de um bem que humaniza e ajuda a levar uma vida nova. Não há nada melhor a transmitir aos outros” ( n. 264).
Carinho e ternura de Francisco por Cristo
● A recordação de Jesus crucificado permanecia constantemente em sua alma, como a bolsa de mirra sobre o coração da esposa do Cântico dos Cânticos, e na veemência de seu amor estático ele desejava ser inteiramente transformado nesse Cristo crucificado. Uma de suas devoções particulares era, durante os quarenta dias que seguem a Epifania que é tempo de retiro de Cristo no deserto, procurar a solidão e, oculto em sua cela, dedicar-se ininterruptamente, observando um jejum rigorosíssimo, à oração e ao louvor de Deus. Nutria por Cristo um amor tão ardente, e seu Bem-amado correspondia-lhe com uma afeição tão familiar, que o servo de Deus imaginava ter diante dos olhos a presença quase contínua do Salvador; ele mesmo, por diversas vezes, o disse confidencialmente a seus irmãos. O sacramento do Corpo do Senhor o inflamava de amor até o fundo do coração: admirava, espantado, misericórdia tão amável e amor tão misericordioso. Comungava muitas vezes e com tanta devoção, que comunicava aos outros sua devoção quando todo inebriado do Espírito e inteiramente absorto em saborear o Cordeiro, era arrebatado em frequentes êxtases.
São Boaventura, Legenda Maior IX, 2
TU ÉS MEU ALIMENTO
Senhor, tu és meu alimento e minha bebida:
quanto mais me nutro de ti, mais fome tenho,
quanto mais bebo, mais sede sinto,
quanto mais possuo, mais desejo.
Tu és mais doce a meu paladar que um favo de mel,
estás acima de toda medida mensurável.
Permanecem em mi fome e desejo.
Tu és inesgotável.
És tu que devoras ou eu que me absorves ou eu que te devoro?
Não sei. No fundo de minha alma sou absorvido e te devoro.
Queres que eu seja um contigo
Mas não consigo livrar-me de minhas coisas
Para adormecer em teus braços.
Nada posso fazer a não ser agradecer-te, honrar-te,
porque tu és a minha vida eterna.
Ruysbroeck (Místico da Renânia do sec. XVI)
Fevereiro
Esse tempo favorável que se chama Quaresma
Esta página do Retiro Mensal de fevereiro aponta para março e abril. Queremos consagra-la ao tema da quaresma. Nada mais normal que os cristãos, nesse tempo, tenham vontade de fazer um grande retiro percorrendo o deserto da quaresma, contemplando a face transfigurada do Senhor , dirigindo-se se com a mulher de Samaria ao poço da água viva e deixando que Jesus faça lama com a terra e unte nossos olhos para verem a luz da Páscoa. É tempo de quaresma. É tempo de revisão de vida. É o tempo favorável.
Fr. Almir Ribeiro Guimarães, OFM
freialmir@gmail.com
Tempo das passagens e travessias
Agora é o tempo favorável,
divino dom da Providência,
para curar o mundo enfermo
com um remédio, a penitência.
Hino do Ofício das Leituras do tempo quaremal
Do mais profundo de mim mesmo, clamo a ti, Senhor.
Não podes permitir que me afogue no abismo.
Tu és o Deus do perdão, da graça e da ternura.
Não te cansas de chamar o homem
para um dialogo face a face com teu amor.
Do mais profundo de mim mesmo, clamo a ti, Senhor.
Não suporto mais viver na superfície das coisas
e na mediocridade de existir.
Do mais profundo de mim mesmo clamo por ti, Senhor.
Dá a luz que clareie meu caminhar e o caminho da Igreja.
Que minhas entranhas se renovem.
Que me seja dada a graça da coragem e do ânimo
porque tu és o Deus da vida e o Senhor da força.
Isaias 58, 9-14
2Coríntios 5, 20 – 6,2
(ler na Bíblia)
• “No momento favorável eu te ouvi, e no dia da salvação eu te socorri. É agora o tempo favorável, é agora o dia da salvação” (2Cor 6,2). Percorramos todas as épocas do mundo e verificaremos que em cada geração o Senhor concedeu o tempo favorável da penitência a todos que a ele quiseram converter-se. Noé proclamou a penitência, e todos os que os escutaram foram salvos. Jonas anunciou a ruína dos ninivitas, mas eles fazendo penitência de seus pecados, reconciliaram-se com Deus por suas súplicas e alcançaram a salvação, apesar de não pertencerem ao povo de Deus” (Clemente I, papa). Estamos no tempo favorável. Como dizia Francisco de Assis: “Até agora nada fizemos. Vamos começar tudo de novo”.
• Há tempo para tudo. Inspirados no Eclesiastes aprendemos a relativizar determinadas coisas e a valorizar tantas outras. Há tempo para tudo. Tempo de nascer e de morrer. Tempo de preparar-se para a vida e tempo de esvaziar as gavetas e despojar-se de tudo para a grande travessia da páscoa com Cristo. Há o tempo do envolvimento amoroso com o Senhor em nossa juventude, o tempo da fidelidade e o tempo do desgaste e da infidelidade. Há o tempo de volta ao primeiro amor, da mudança do coração. Em nossa vida espiritual há o tempo das doces consolações e o tempo da secura interior, tempo da aridez e do deserto. Há o tempo de preparar o presépio do frágil menino e o tempo de colocar imagens e enfeites em caixas de papelão e guarda-las no quarto dos fundos ou no sótão de nossas casas. Não conseguimos agarrar o tempo, interromper sua marcha feita com tanta voracidade. Tudo passa. Há o tempo do advento e do natal e há o tempo da quaresma e da páscoa.
• Viver, atravessar o tempo da existência, não simplesmente passar pelo tempo. A vida não é um longo e sereno rio que corre placidamente, mas uma sucessão de passagens, de travessias que vão se sucedendo. Por vezes na sofreguidão de viver nem podemos respirar. Corremos. E esquecemos de pensar, de parar de refletir. Tem-se a impressão que uma pessoa bem sucedida é aquela que tem sua agenda cheia, acumulação de tarefas e de projetos que vão sendo realizados meio atabalhoadamente. Há coisas essenciais que precisam ser feitas entre o nascer e o morrer. Agostinho de Hipona tem esse pensamento curioso: “Quando se atinge uma determinada idade, morre-se à precedente e isto faz da vida humana como que uma farsa teatral”. Nada de elementos muito unidos e conjugados, nada de um drama coerente, mas pequenos projetos e relatos existenciais Na fala de Macbeth de Shakespeare o “homem seria um pobre ser que se pavoneia e se agita durante o tempo em que está em cena”.
• O tempo passa rápido. Nas brumas do passado as coisas vão se misturando. O que ocorreu de significativo em nossa história pessoal e familiar nos últimos dez anos? Quem bateu à nossa porta? O que a vida foi pedindo de nós? Que êxodo fizemos? Como estamos atravessando o tempo da existência? Que apelos nos vem do deserto? O que significa para nós a passagem de Jesus, sua travessia, sua páscoa? Enzo Bianchi afirma que o tempo da quaresma é tempo de busca da verdade de nosso ser. “A cada ano retorna a quaresma, um tempo pleno de quarenta dias que os cristãos devem viver todos juntos como um tempo de conversão e de retorno a Deus (…). A conversão, não é um acontecimento realizado de uma vez por todas. É um dinamismo que deve ser renovado nos diversos momentos da existência, nas diferentes idades, e sobretudo quando o tempo que passa leva o cristão a se adaptar ao mundanismo, a ser vencido pela fadiga, a perder o sentido e o objetivo de sua vocação e a viver a fé numa espécie de esquizofrenia. Sim, a quaresma é um tempo para reencontrar a própria verdade e a própria autenticidade, antes mesmo de ser um tempo de penitência. Não é um tempo de se fazer algo de particular de caridade ou de mortificação. É um tempo para redescobrir a verdade do próprio ser. Jesus afirma que mesmo os hipócritas praticam a caridade (Mt 6, 1-6; 16-18). Por esse motivo, precisamente trata-se de unificar a própria vida diante de Deus e ordenar o fim e os meios da vida cristão, sem confundi-los” (E. Biachi, Dar sentido ao tempo, Loyola, p. 34). Portanto, trata-se de reorganizar-se.
• “Na escola de nosso Redentor, bem amados, aprendemos que o homem não vive apenas de pão, mas de tudo o que sai da boca de Deus. Convém que, nesses dias da quaresma, o Povo de Deus deseje mais se nutrir da Palavra de Deus, do que do alimento material” (São Leão Magno). Jogados na existência, lançados na aventura da vida, somos envolvidos por todas as preocupações cotidianas, com este cortejo de pequenas coisas, ou de eventos significativos e portadores de amanhã e outros que obstruem as alamedas que nos levariam à plenitude. Há esse dia a dia imediato, intransferível: comprar, vender, pagar, curar, olhar, amar, sofrer ou simplesmente viver. No coração de tudo aquilo que vai se passando encontramos a Palavra. Não apenas um fonema mas o grito de Alguém que quer chegar ao mais íntimo de nós mesmos e arrancar uma resposta que possa nos levar à plenitude e nos transformar em seres luminosos no meio das trevas deste mundo caótico. O Senhor passa e fala. Oxalá ouvísseis hoje a sua voz e não endureçais o vosso coração.
• A Quaresma é tempo de ascese. Paul Evdokimov, conhecido autor ortodoxo, nos esclarece a respeito do dinamismo da ascese cristã. “A ascese cristã nunca foi fim em si mesma; é apenas um meio, um método a serviço da vida, e como tal procurará adaptar-se às novas necessidades. Outrora, a ascese dos Padres do Deserto impunha jejuns e privações intensas e extenuantes; hoje a luta é outra. O homem não tem necessidade de sofrimento suplementar: cilícios, correntes de ferro, flagelações correriam o risco de esgotá-lo inutilmente. A mortificação de nossa época consistirá na libertação da necessidade de entorpecentes, pressa, ruídos, estimulantes, drogas, álcool sob todas as formas. A ascese consistirá sobretudo no repouso imposto a si mesmo, na disciplina da tranquilidade e do silêncio, onde o homem possa concentrar-se na oração e na contemplação, mesmo em meio as ruídos do mundo, do metrô, entre a multidão, nos cruzamentos de uma cidade. Consistirá sobretudo na capacidade de compreender a presença dos outros, dos amigos, em cada encontro. O jejum, ao contrário da maceração imposta será a renúncia alegre do supérfluo, a sua repartição com os pobres, um equilíbrio espontâneo tranquilo” (Paul Evdokimow).
Quaresma, tempo em que nos alimentamos da Palavra. Nutrir-se da Palavra de Deus significa confrontar nosso projeto de vida com o projeto de Alguém que está para além das coisas pequenas que nos dão a ilusão de sermos importantes, projeto de Alguém que deseja que nos lancemos com coragem e confiança na direção de um amanhã que poderá ser radioso se tomarmos a decisão do seguimento. Nutrir-se da Palavra significa escutar atentamente a palavra na Liturgia de todos os dia, saborear os salmos, e à luz dessa mesma Palavra questionar todas as propostas que nos são feitas e as mirabolantes soluções para nossos problemas. O homem que tem sede de plenitude pergunta-se, incontáveis vezes, por aquilo que é o desejo do Senhor a seu respeito. Vive no horizonte da fé. Faz tal indagação no tempo da juventude, quando seus dias chegam á maturidade, nas horas de ventura e de desventura, e no entardecer da vida. A Palavra de Deus incide sobre nossa historia e nos “engravida” de Deus. Fala-se hoje, com razão, da necessidade da Leitura orante da Bíblia em comunidade.
Quaresma, tempo de teste
A Quaresma é o tempo do teste para nossa fidelidade na resposta ao plano de Deus; pode acontecer que o tenhamos traído, mutilado ou enterrado, e isso por covardia, interesse, hipocrisia, fraqueza, porque não soubemos vencer as tentações que hoje se nos oferecem. Toda civilização inclui elementos bons e elementos nocivos, expressão de sua ambiguidade, de sua incapacidade de salvar-nos. Hoje esses elementos nocivos são a apatia diante das realidades espirituais, seu sufocamento “mórbido” para que não constituam mais problema e seja relegados para os recantos da consciência e da vida; a total absorção no terrestre, nos valores e bens que nos são oferecidos em quantidade cada vez mais crescente e alienante; o “eficientismo”, gerado pelo ídolo do produzir-consumir e consumir-produzir, esse círculo vicioso implacável e destruidor de todo valor humano; o egoísmo e o espirito de opressão, a lutar pela própria carreira, que reduz o próximo unicamente a mais um adversário a eliminar, um concorrente a superar, um degrau pelo qual subir” (Missal Dominical da Paulus, p. 148).
TEM PIEDADE, SENHOR!
Abre-me as portas do arrependimento,
tu que dás a vida,
porque para teu templo santo se eleva o meu espírito.
Purifica-me, tu que és o compassivo,
na misericórdia de teu amor.
Nos caminhos da Salvação, dirije-me, Mãe de Deus,
porque com múltiplas faltas, manchei minha alma;
na negligência, desperdicei minha vida.
Por tuas preces, Mãe,
livra-me de todas as impurezas
Tem piedade de mim em teu grande amor, Senhor,
na abundância de teus gestos de compaixão
apaga meu pecado.
Infeliz, diante de meus inúmeros pecados,
tenho receio do dia da prestação de contas.
Confiando, no entanto, no amor de tua misericórdia
dirijo-me a ti como o rei Davi.
Em tua grande misericórdia, Senhor, tem piedade de mim.
Liturgia Ortodoxa
Março/Abril
A comunidade cristã, albergue do Ressuscitado
Estamos vivendo o tempo pascal. Na Liturgia das Horas e na celebração cotidiana da Eucaristia lemos textos que nos colocam diante do Ressuscitado e dos primeiros discípulos de Cristo diante dos acontecimentos do primeiro dia da semana após sua morte cruel no alto da cruz. Nós, cristãos de todos os tempos, vinculamo-nos a esse Crucificado-Ressuscitado.
Não somos discípulos do Cristo da sepultura. Reunimo-nos em torno do Ressuscitado. Aquele que foi levantado na cruz atraiu todos os olhares. Nós também, com o olhar da fé, contemplamos aquele que foi traspassado. Vivemos na Igreja que, de alguma forma, é albergue do Ressuscitado. Nesse tempo não nos cansamos de cantar os aleluias. A Vida venceu a morte.
Fr. Almir Ribeiro Guimarães, OFM
freialmir@gmail.com
Somos companheiros do Ressuscitado
Exulte o céu do alto,
aplaudam terra e mar;
o Cristo ressurgindo,
a vida vem nos dar.
Hino do Ofício das leituras Liturgia das Horas
Estiveste inteiramente presente na terra,
sem te ausentares do céu,
quando voluntariamente sofreste por nós.
Por tua morte, venceste a morte.
Por tua ressurreição nos deste vida.
A ti cantamos:
Jesus, doçura do coração
Jesus vigor dos corpos
Jesus, claridade da alma
Jesus, agilidade do espírito
Jesus, alegria de meu coração
Jesus, minha única esperança
Jesus, lembrança eterna
Jesus, supremo louvor
Jesus, plenitude de minha alegria.
Jesus, meu desejo, não me rejeites.
Jesus, meu pastor, busca-me.
Jesus, meu salvador, salva-me.
Jesus, Filho de Deus, tem piedade de mim.
Hino acadista (sec, V)
a) Vida escondida em Cristo
Irmãos, se ressuscitastes com Cristo, esforçai-vos por alcançar as coisas do alto, onde está Cristo, sentado à direita de Deus; aspirai às coisas do alto, onde está Cristo sentado à direita de Deus; aspirai às coisas celestes e não às coisas terrestres. Pois vós morrestes e a vossa vida está escondida, com Cristo em Deus. Quando Cristo, vossa vida, aparecer em seu triunfo, então vós aparecereis também com ele, revestidos de glória (Colossenses 3, 1-4).
b) A vida das primeiras comunidades
Eles frequentavam com perseverança a doutrina dos apóstolos, as reuniões em comum, o partir do pão e as orações. De todos apoderou-se o medo à vista dos muitos prodígios e sinais que os apóstolos faziam. E todos que tinham fé viviam unidos, tendo todos os bens em comum. Vendiam as propriedades e os bens e dividiam o dinheiro com todos, segundo necessidade de cada um. Todos os dias se reuniam unânimes, no Templo. Partiam o pão nas casas e comiam com alegria e simplicidade de coração. Louvavam a Deus e gozavam da simpatia de todo o povo. Cada dia o Senhor lhes juntava outros a caminho da salvação (Atos 2, 42-47).
c) Um só coração e uma só alma
A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma. Ninguém considerava propriedade sua o que possuía. Tudo entre eles era comum. Com grande eficácia os apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus e todos os fiéis gozavam de grande estima. Não havia necessitados entre eles. Os proprietários dos campos ou casas vendiam tudo e iam depositar o preço da venda aos pés dos apóstolos. Repartia-se, então, a cada um segundo sua necessidade. José, chamado pelos apóstolos de Barnabé, que significa filhos da consolação, levita e natural de Chipre, possuía um terreno. Vendeu-o e foi depositar o dinheiro aos pés dos apóstolos (Atos 4, 32-37).
● Somos cristãos. Cada um dos que somos discípulos do Senhor temos nossa vida, nossa história, nossa trajetória. Temos a alegria de poder dizer que somos cristãos. Esse é um nome que nos honra e nos dignifica. Nossa vida gira em torno dele, do Senhor que vive. Ele não está mais na morte, mas foi arrancado do mundo dos mortos pelo Pai ao qual ele foi inteiramente fiel. Viveu ele, no alto da cruz, a síntese de sua vida. Uma existência completamente orientada para os outros e para o Outro, esse Pai que o amava e que, apesar de calado, não o largou um só instante. Ressoam aos nossos ouvidos essa entrega do Mártir do Calvário: “E inclinando a cabeça, entregou o Espirito”. No momento do trespasse, da entrega irrestrita, no meio desse gesto de amor, já era dado o Espírito, do qual somos beneficiários.
● Ele vive não como um cadáver reanimado. Ao longo de nossa vida vamos tentando encontrá-lo e buscá-lo. Os que creem nele, nele renascem. Não basta contemplar à distância sua morte e ressurreição. Morremos e vivemos com ele. “Ontem pregado à cruz com Cristo, hoje sou glorificado com ele. Sepultado com ele ontem, hoje, com ele ressuscito. Aquele que hoje é ressuscitado dos mortos, o Cristo, ele me renova em espírito e me reveste do homem novo. Deus dá na pessoa do Cristo à criatura nova, a todos os que nasceram de Deus, um tutor e um guia. É ele que morre livremente com a criatura para ressuscitar com ela. Apresentemos, pois, nossas oferendas ao que sofreu por nós. Que cada um dê tudo ao que se deu a si mesmo como preço de nossa redenção. O que de melhor podemos lhe dar? Refazer em nossa vida tudo o que ele quis realizar por amor de nós. Sejamos como o Cristo, porque o Cristo quis ser como nós. Sejamos deuses para ele, já que ele quis se tornar homem por nós. Assumiu nossa baixeza para partilhar conosco sua grandeza. Tornou-se pobre para nos enriquecer com sua indigência. Assumiu a forma de escravo para nos dar a liberdade. Abaixou-se para no soerguer, foi tentado para que fôssemos vitoriosos; foi desprezado para nossa glorificação. Morreu para nos salvar. Subiu ao céu para nos arrastar com ele os que jazíamos na terra vítima do pecado. Fez-se tudo para nós, para que sejamos tudo para ele” (Gregório de Nazianzo, PG 36, col. 624-664).
● Cabe-nos, ao longo da vida, reconhecer sua misteriosa presença em nosso meio, no seio da Igreja e nesse mundo que também foi tocado por sua gloriosa ressurreição. Partimos dessa convicção de sua presença. Nascemos de novo. Não entramos no ventre da mãe. Nascemos do alto, da água e do Espírito. A Igreja não é uma organização qualquer, mas o espaço onde são recolhidas as graças da paixão e onde podemos vislumbrar a presença do Ressuscitado. Morremos com ele na sexta-feira das dores e na economia sacramental nos lavamos com a água de seu lado aberto e nos alimentamos de seu sangue. Já não somos mais da terra, mas do alto. Não levamos uma vida qualquer, vida banal, medíocre, interesseira, pequena, acanhada. Não aspiramos mais às competições tolas e aos êxitos epidérmicos. Morremos com Cristo e nossa vida está escondida, com Cristo, em Deus. Que ninguém nos incomode. Somos criaturas novas.
● Nossa vida cristã é vida nova. Passou o que era velho. Mesmo com idade avançada temos o viço da novidade de Cristo em nós. José Antonio Pagola nos ajuda a compreender essa presença do Ressuscitado: “A fé em Cristo ressuscitado não nasce hoje em nós de forma espontânea, só porque ouvimos desde crianças catequistas e pregadores. Para abrir-nos à fé na ressurreição de Jesus temos de fazer nosso próprio percurso. É decisivo não esquecer Jesus, amá-lo com paixão e buscá-lo com todas as nossas forças, mas não no mundo dos mortos. Aquele que vive deve ser buscado onde há vida. Se quisermos encontrar com Cristo ressuscitado, cheio de vida e de força criadora, devemos buscá-lo não numa religião morta, reduzida ao cumprimento e observância externa de leis e normas, mas onde se vive segundo o Espírito de Jesus, acolhido com fé, com amor e com responsabilidade por seus seguidores (…). Não vamos encontrar aquele que vive numa fé estagnada e rotineira, gasta por todo tipo de lugares comuns fórmulas vazias de experiência, mas buscando uma qualidade nova em nossa relação com Ele e em nossa identificação com seu projeto. Um Jesus apagado e inerte, que não apaixona nem seduz, que não toca os corações nem transmite sua liberdade, é um “Jesus morto”. Não é o Cristo vivo, ressuscitado pelo Pai. Não é aquele que vive e faz viver” (O Caminho aberto por Jesus, Vozes, p. 238).
● Os primeiros cristãos devem ter experimentado a presença do Ressuscitado intensamente. Talvez Lucas tenha, aqui e ali, nos textos acima transcritos, idealizado alguma coisa. O caminho para encontrar o Ressuscitado está ali.
● Encontramos o Ressuscitado perseverando na doutrina dos apóstolos, na leitura e penetração do sentido das Escrituras. Comunidades sedentas do Senhor ouvem a Palavra na qual o Ressuscitado se esconde. Felizes os que podem participar de grupos em que se faz a Leitura orante da Bíblia.
● Quando pessoas límpidas e transparentes se reúnem em nome dele, ele se faz presente, não um fantasma, mas o Cristo Ressuscitado. Ele se ausenta dessas assembleias em que a Palavra é lida por ser lida sem cair em corações que buscam o Senhor. O Ressuscitado e seu Espirito não gostam de caminhos batidos.
Os primeiros cristãos aprenderam com os judeus a rezar e passaram a rezar ao Senhor e com o Senhor. Os primeiros cristãos perseveram na oração comum onde certamente experimentavam a presença do Senhor.
● Os Atos dos Apóstolos falam fração do Pão. Lembram a partilha da caridade como lugar onde se manifesta o Ressuscitado. Os que cuidam dos outros sabem que cuidam do Cristo. Essa partilha ou fração do pão lembra a Eucaristia. Ali está um espaço privilegiado de encontro com o Senhor. Não pensamos na materialidade dos ritos, feitos e vividos mecanicamente. Pensamos em pessoas que se oferecem com o pão e vinho que é corpo dele, vida dele. Ali está o Senhor. Os discípulos de Emaús não o encontraram no partir do pão? Para nós não haverá de ser de outro modo.
● “Com grande eficácia os apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor e todos os fiéis gozavam de grande estima” (Atos 4, 33).
O caminho da glória
Aqui começa o caminho da glória do Senhor Jesus Cristo, o Vivo.
Ressuscitado pelo Pai, no caminho, manifestou-se ele a homens que o reconheceram na fração do pão.
Deu a Tomé os sinais de sua glória e alimentou os seus com seu Amor.
Aos que haveria de enviar pelo mundo afora declarou que não os abandonaria, que permaneceria com eles, mesmo quando fosse elevado. Não iria deixá-los órfãos.
Dando o Espírito abriu o caminho da glória e a partir de então por toda a terra a Boa Nova foi abrindo caminho de salvação para todas as línguas e nações.
Enquanto os homens caminham ele se torna presente todas as vezes que dois ou três se reúnem em seu nome.
Ele voltará, iluminado pela glória, Cordeiro vitorioso, para conduzir a humanidade à ultima etapa da viagem quando se estancarão todas as lágrimas e onde, se Deus quiser, ele haverá de nos chamar de benditos de seu Pai, seus irmãos, convidados para o festim das núpcias eternas, convidados para contemplar face a face o Deus três vezes santo.
Lecionário semanal Emaús
Ó Deus de eterna misericórdia, que reacendeis a fé do vosso povo na renovação da festa pascal, aumentai a graça que nos destes e fazei que compreendamos melhor o batismo que nos lavou e o sangue que nos redimiu. Por nosso Senhor Jesus Cristo, na unidade do Espírito Santo. Amém.
Maio
Habitar o coração
É urgente, de urgência urgentíssima, que as pessoas visitem novamente o coração. Quando os espaços interiores de nossas vidas estiverem desocupados, morcegos invadem nossa intimidade ou então estaremos sempre, sempre em fuga. É urgente fazer a viagem ao fundo do coração. Temos diante dos olhos um capítulo de Michel Hubaut, OFM (Habiter le silence, no livro Sous la discrète mouvance de l’Esprit. Initiation à la vie intérieure, Ed. du CERf, Paris, 2012, p. 37-49).
Fr. Almir Ribeiro Guimarães, OFM
freialmir@gmail.com
O louvor de Deus que leva ao amor é filho do silêncio e da solidão.
O deserto silencioso foi para mim fonte de progresso em minha vida,
quer dizer da vida divina em mim (Gregório de Nazianzo)
Vem, silêncio, onde tudo é Deus.
Vem, Amor e Verdade e Humildade.
Vem, Misericordioso,
Pai de ternura.
Vem, embala-nos
em teus braços invisíveis.
Vem nos dar o beijo do Perdão,
por teu Filho,
na glória
da vitória da Cruz.
Arrasta-nos para a eternidade da Trindade,
na esperança
da vida em abundância.
(Anônimo)
● “O Senhor reside no seu Templo santo. Silêncio diante dele, ó Terra inteira” (Habacuc 2,20).
● “Silêncio diante do Senhor Deus, porque o dia do Senhor está próximo” (Sofonias 1, 7).
● “Faz silêncio e escuta Israel: hoje tu te tornaste um povo para o Senhor teu Deus. Ouvirás a voz do Senhor Deus” (Deuteronômio 27,9).
● “Enquanto um calmo silêncio envolvia todas as coisas e a noite chegava ao meio de seu curso, tua palavra onipotente, vinda do céu, de seu trono real” (Sabedoria 18, 14-15).
● Elias no Horeb : “De repente a palavra do Senhor lhe foi dirigida nestes termos: ‘O que estás fazendo aí , Elias?’ Ele respondeu: ‘Estou cheio de ciúmes pelo Senhor Deus Todo Poderoso. Pois os israelitas abandonaram a tua aliança, demoliram os teus altares, mataram à espada os teus profetas e sobrei apenas eu. Mas também a mim procuram tirar-me a vida’. O Senhor respondeu: ‘Sai e põe-te de pé no monte, diante do Senhor! Eis que ele vai passar’. Houve então um grande furacão, tão violento que rasgava os montes e despedaçava os rochedos diante do Senhor, mas o Senhor não estava no vento. Depois do vento houve um terremoto, mas o Senhor não estava no terremoto. Depois do terremoto houve fogo, mas o Senhor não estava no fogo, percebeu-se o sussurro de uma brisa suave e amena. Quando Elias o percebeu cobriu o rosto com o manto e saiu, colocando-se na entrada da caverna” (1Reis 19, 9-13).
A) “O caminho da interioridade…
…. Hoje se dá num tempo de mudanças, tempo rico de muitos sinais de redescoberta da interioridade e do silêncio. A sociedade secularizada vem focada sobre o indivíduo fragmentado, com uma identidade fluida. Temos diante de nós uma mudança radical da visão do homem, determinada sobretudo pela tecnologia. São imensos os recursos da inteligência humana, descobertos hoje que podem ajudar o homem a criar um mundo melhor. É importante que o homem permaneça sujeito desse desenvolvimento, sobretudo a partir da verdade profunda de si mesmo. Confrontamo-nos também com o medo de entrar em nós mesmos, com a pobreza de sentimentos, de afetos, de capacidade de amar e deixar-se amar. No espaço da interioridade, o silêncio pede a escuta de nós mesmos, dos outros e da realidade. Os meios de informação podem iludir-nos, ao dar-nos a sensação de evitarmos esse trabalho. Na verdade tornamo-nos estranhos a nós mesmos. O percurso para dentro de nós mesmos não é só terapêutico para nossa cultura de barulho, mas também vem a ser um caminho voltado para o acolhimento, para uma nova civilização do amor. O caminho para dentro de nossa interioridade e para o silêncio torna-se, então, testemunho de uma opção de vida alternativa” ( O caminho que leva ao lugar do coração, Cúria Geral OFM, Roma 2003).
B) “Várias intervenções dos Padres sinodais…
…Insistiram sobre o valor do silêncio para a recepção da Palavra de Deus na vida dos fiéis. De fato a palavra pode ser pronunciada e ouvida apenas no silêncio exterior e interior. O nosso tempo não favorece o recolhimento e, às vezes, fica-se com a impressão de ter medo de se separar, por um só momento, dos instrumentos de comunicação de massa.. Por isso, hoje é necessário educar o Povo de Deus para o valor do silêncio. Redescobrir a centralização da Palavra de Deus na vida da Igreja significa também redescobrir o sentido do recolhimento e da tranquilidade interior. A grande tradição patrística ensina-nos que os mistérios de Cristo estão ligados ao silêncio e é só nele que a Palavra pode encontrar morada em nós, como aconteceu com Maria, mulher indivisivelmente da Palavra e do silêncio. As nossas liturgias devem facilitar esta escuta autêntica conforme Agostinho: Verbo crescente, verba deficiunt ( Exortação apostólica pós-sinodal Verbum Domini, de Bento XVI, n. 66).
C) J, Martin Velasco descreveu…
… Bem a situação espiritual das sociedades impregnadas pela cultura dita pós-moderna. Uma cultura da intranscendência que prende as pessoas no aqui e agora fazendo com que vivam apenas do imediato, sem necessidade de abrir-se à Transcendência. Uma cultura da “distração” (em castelhano divertimento) que arranca os indivíduos de seu interior fazendo com que esqueçam as grandes questões que o ser humano tem no coração. Uma cultura do “ter” que exercita o espírito de posse, incapacitando as pessoas para tudo aquilo de não seja um desfrutar imediato que facilmente desliza do pluralismo ao relativismo e à indiferença” ( José A. Pagola, Testigos del misterio en la noche, Sal Terrae, enero 2000, p. 29).
● Os textos lidos nos levam a querer buscar o caminho que nos leva ao fundo do coração, mais exatamente ao lugar do coração. “Tomando contato com as raízes de nossa vida e de nossa fé. Nesse ponto é possível aprofundar o dinamismo que existe entre interioridade-silêncio e missão evangelizadora, como parte essencial do carisma (franciscano). A interioridade, finalmente espaço habitado, é o clima, o ambiente, o húmus do encontro de Deus com as criaturas humanas. A oração litúrgica e pessoal cresce, quando brota do “lugar do coração” e vem protegida pelo silêncio. Descobrimo-la como uma realidade viva para escutar e acolher a Palavra de Deus. O silêncio deixa de ser apenas uma regra a ser observada. Santa Clara, com a metáfora do espelho, mostra-nos o âmago desse caminho: “Olha dentro desse espelho todos os dias… espelha nele constantemente o teu rosto” (4CtIn 15) ( O caminho que leva…, op.cit., p. 14-15).
● Desnecessário dizer que os espaços de silêncio se fazem cada vez mais raros em nossos tempos. Desde que acordamos chega uma enxurrada de informações. Os torpedos e as imagens chegam no celular e iluminam o quarto. Durante um concerto há pessoas que ousam atender, discreta ou indiscretamente, o celular para tomarem conhecimento das últimas informações que provavelmente têm pouca importância diante do fascínio de uma sonata de Beethoven. As pessoas se levantam de manhã, correm, se apressam. Há o barulho das máquinas, o doce estalar dos no-brakes. Saímos de casa: transportes coletivos cheios, ônibus incendiados, apitos das sirenes dos bombeiros, pessoas empurrando pessoas, os celulares e as pessoas falando. Somos como que mergulhados no seio do caos. Um mundo caótico.
● Sintomas, mais ou menos graves, foram analisados por psicossociólogos e educadores. A fragilidade e instabilidade de cada um, desenraizado de suas própria profundidade aparecem na vida dos casados, dos fiéis de uma comunidade, nos grupamentos de vida consagrada. As crianças têm dificuldade em se concentrarem. Há superficialidade nos relacionamentos. Há consumo intenso de tranquilizantes. Inadaptação crônica. Agressividade à flor da pele. Depressão. Dispersão, procura louva de evasão, droga, seitas… (M. Hubaut).
● Tudo indica que a perplexidade e o vazio sentidos por tantos de nossos contemporâneos tenham levado as pessoas a perderem uma dimensão essencial do existir. Como pode alguém ser ele mesmo sem ganhar altura e profundidade, sem fazer silêncio? O silêncio equilibra a vida e o crescimento. O homem que não faz mais silêncio perde não somente a arte de viver, uma qualidade de vida, mas uma peça estruturante de seu ser profundo.
● O homem deve se estruturar em duas direções complementárias: exterioridade e interioridade: exteriorização em relação aos outros e ao mundo; e interiorização, certo recuo, afastamento, silêncio, reflexão com relação a si mesmo, como os movimentos do coração humano, de sístole e diástole.
● Se a socialização contemporânea, tão necessária, não for acompanhada de uma crescente interiorização podemos chegar a desequilíbrios mais ou menos graves. O bem-sucedido de uma existência humana depende do seu desenvolvimento integral e da qualidade dos relacionamentos humanos. Uma das tarefas importantes da Igreja em nossos dias é a iniciação ao silêncio à vida interior. Nas grandes cidades, de modo particular, será preciso ajudar as comunidades a criar espaços de silêncio e de oração, pulmões que prevenirão uma asfixia.
● Com toda razão se tem dito e repetido à saciedade que o cristianismo não pode ser concebido sem um decidido compromisso contra a fome, injustiça, violência que degradam o homem. Com a mesma força se deve dizer que não se pode conceber o cristianismo sem um empenho determinado para que o homem valorize sua dimensão interior.
● O silêncio é um pedagogo que nos ensina a ouvir. Escutar a música da criação para perceber o segredo da harmonia. Ouvir nosso coração, nossa consciência, para melhor nos conhecer e dirigir nossa vida. Escutar os homens para nos enriquecer de sua diversidade e melhor amá-los. Escutar Deus, sua Palavra interior, seu Espírito que fala em nós para nos comunicar sua vida.
● “O silêncio é a última palavra do discurso. É plenitude de palavra. É dialogo sem palavras. É a medida do tempo necessária para amadurecer uma mensagem no coração. Consequentemente é muito pouco defini-lo, simplesmente como ausência de qualquer som ou rumor; é, ao contrário, uma realidade plenamente positiva; é escuta intensa da Palavra de Deus. Daqui se compreende que não se escolhe o silêncio pelo silêncio, mas o silêncio para a escuta, para o diálogo interior e prolongado, para a comunhão profunda” (Ubaldo Terrinoni, Projeto de pedagogia evangélica, Paulinas, p. 182).
O enigma do homem, ser de solidão e de relação
● O primeiro obstáculo para o silêncio não é o ambiente que o cerca, mas o próprio homem que parece fugir do silêncio apesar de ter dele necessidade e necessidade vital. O homem é um ser social que precisa viver com os outros, pelos outros e para os outros. Nesse sentido, a solidão pode ser ressentida como estado psicológico violento contra a natureza do qual ela procura escapar. Uma certa solidão é uma das grandes angústias do homem moderno, sobretudo dos que envelhecem e não aprenderam a sabedoria do viver. Há pessoas, não tão idosas, que são literalmente incapazes de permanecer escutando a voz de seu interior. Ficam desequilibradas com o silêncio.
● Não se pode confundir solidão de isolamento. Uma criança isolada, mesmo tendo o necessário para nutrir seu corpo e sua mente, dificilmente terá condições de encontrar sua identidade. Sabemos da catástrofe experimentada por tantas pessoas idosas e também doentes e presidiários. “Não é bom que homem viva só?”
● O ser humano quer a comunicação, mas difícil e raras vezes chega à comunhão. Entre um e outros há sempre uma região que não pode ser ultrapassada. A experiência é feita por amigos e por casais que se estimam de verdade. Cada ser humano é uma solidão ambulante.
● Cada um é um ser único cujo jardim secreto permanecerá sempre, em parte, impenetrável, indizível. Todo sonho de fusão está fadado ao fracasso porque desconhece o outro em sua diferença e nega assim sua identidade própria. Sartre: “Até o fim permaneceremos sós e juntos”. Sartre diz que mesmo que o inferno são os outros.
● O homem não suporta nem o isolamento, nem a contínua presença dos outros. Um prolongada solidão suscita nele um irresistível desejo da presença dos outros. Uma vida comunitária permanente, uma vida de intensos relacionamentos cria o desejo da solidão. Solidão e presença se chamam mutuamente. Não existe fraternidade franciscana quando seus membros riscaram de seu programa a leitura, a meditação, a oração, a visita ao fundo do coração. As reuniões comuns deixam a desejar. Serão apenas espaço para tagarelar.
O isolamento destrói, o silêncio habitado constrói
● A tradição cristã não confunde o silêncio da solidão voluntária, provisória ou permanente que pode ser fonte de enriquecimento, que é construtiva, com o silêncio do isolamento que é sempre sinal de empobrecimento e destruidor.
● A solidão não é finalidade em si mesma. Não é valor absoluto. Visa permitir que o homem ouça seu coração habitado pelo Espírito. Madeleine Delbrêl dizia: “A verdadeira solidão não é a ausência dos outros, mas a presença de Deus”. Na solidão habitada, o homem encontra verdadeira presença, a si mesmo, o mundo, os outros e a Deus.
● “A primeira condição para ousar a aventura da vida interior, para tentar uma vida de oração, é ter a convicção de ser habitado pelo Espírito que não posso me dar mas que recebo com um dom de Deus. Este Espírito é “Desejo-de-Deus em mim”. Não serei um homem ou uma mulher de oração enquanto pensar que a oração é, antes de tudo, “minha” atividade. A oração é, antes de tudo, ação do Espírito em mim. Não se convoca a Deus. Possui-se a Deus, acolhe-se a Deus. Não “se faz” nossa oração, mas abre-se a uma Presença. Rezar é acolher, escutar o Espírito que murmura em mim. Ele é fonte desse diálogo de amor filial com esse Deus que o Cristo revela ser nosso Pai. “Não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim”, diz São Paulo (Gl 2,20). Não sou fonte de minha oração, mas meu “coração” é o lugar onde o Espírito jorra e reza em mim” (Hubaut, p. 15).
● A solidão silenciosa deve estar a serviço do encontro com Alguém que ali marca encontro, não para uma estéril introspecção narcisista, mas para um diálogo de amor que coloca o ser humano em comunhão com todos os homens e a terra inteira. Somente o silêncio habitado é compatível com a estrutura e a vocação do homem. Se esta presença de Deus não é mais buscada nem reconhecida a solidão se torna desumana. Literalmente Hubaut: “É quase impossível amar o silêncio e viver serenamente uma certa solidão sem crer na dimensão interior do homem e do mundo, sem abertura para fonte transcendente da vida” (p. 42).
● Se o silêncio aspira à solidão e a solidão convida ao silêncio, o encontro feliz entre os dois não acontece automaticamente. Podemos ter uma barulheira na cabeça vivendo no deserto e fazer silêncio no meio da multidão. Podemos estar cheios de nós mesmos e de nossos problemas num mosteiro e estar completamente disponível para o mundano.
● “O homem é um ser solitário e comunitário que tem necessidade de solidão e de relacionamentos para encontrar-se consigo mesmo. Os dois caminhos, o da solidão e do relacionamento, não podem ultrapassar seus limites intrínsecos sem acolher a plenitude divina. O silêncio, para aquele que crê, não é um lugar, mas uma qualidade do coração, a solidão não é fuga não é isolamento, evasão ou fuga, mas uma renovada atenção a uma PRESENÇA que habita tanto a solidão do deserto como os relacionamentos humanos” (Hubaut, p. 41-42).
● Mais do que um afastar-se espacial, o silêncio é, antes de tudo, uma atitude interior. A experiência nos diz que há silêncios fecundos sem solidão. Muitos dos que reclamamos da falta de silêncio temos um interior cheio de tumulto. Nesta solidão encontra tédio e um vazio mortal que pode mesmo afetar seu equilíbrio.
● Quem deseja fazer silêncio para ouvir a Deus e unificar sua vida deverá aprender a descer ao deserto interior de seu coração onde o Espírito marca encontro. Cristo disse que o discípulo é do mundo e ao mesmo tempo não é do mundo. A fé, que revela a profundidade do homem e dilata seu horizonte, cria necessariamente um distanciamento no seio da vida cotidiana. Tocado por uma palavra de fogo que faz arder seu coração não pode mais absolutizar o que se revela como elemento da finitude do homem. Nada se despreza, mas tudo é relativizado.
● Os santos viveram esse silêncio, essa solidão fecunda. “Profundamente presentes à vida de seus contemporâneos, os santos, pela graça, são cidadãos de uma pátria invisível, mas mais real que toda realidade humana. A experiência nos leva a dizer que somente a graça de Deus pode fazer da solidão um espaço de silêncio interior que abre as chaves da vida íntima do homem onde o Espírito murmura e Deus fala” (Hubaut, p. 44).
A) “O silêncio é escolha dos fortes e capacidade dos sábios. O homem adentra-se no deserto para encontrar-se a si mesmo, para colocar ordem nas próprias ideias, para fazer emergir, novamente, das profundezas o essencial e renovar as opções. O silêncio total do ser humano é plenitude da Palavra de Deus, o qual gosta de falar no silêncio e quando fala não faz nenhum rumor. Como fez com Maria: a criatura do silêncio. Nela, no mais profundo dos silêncios, encontrou calorosa acolhida o Verbo, a Palavra de amor pronunciada por Deus desde sempre e para sempre. Um silêncio absoluto de todo o seu ser. Um silêncio do corpo imaculado para acolher Deus ( Terrinoni, op. cit, p. 185).
B) Nos tempos do Papa Francisco parece importante que os discípulos tenham a certeza que, na vida e na missão, Cristo caminha em sua vida e missão. Ora, o recolhimento e o silêncio permitem que os agentes de pastoral não sejam meros tocadores de obras e fazedores de tarefas. Mario França Miranda em conferência na 52ª. Assembleia da CNBB (Aparecida, SP, 30 de abril a 9 de março de 2014): “Numa época marcada pela inflação das palavras através do vários meios de comunicação e também por certo ceticismo com relação a ideologias e cosmovisões ganha a experiência pessoal um peso enorme para fundamentar as convicções pessoais. Esta realidade atinge também a fé dos cristãos. Esta resulta de uma iniciativa de Deus de vir ao nosso encontro, doando-Se a si próprio em Jesus Cristo e no Espírito Santo, iniciativa que se realiza plenamente ao ser acolhida pelo cristão na fé. Portanto, a fé é um evento salvífico na vida da pessoa que é, de certo modo, por ela experimentado. Esta experiência atinge o coração de cada um, não só dando sentido à existência humana, mas também consolando, fortalecendo e iluminando o que fazem. É a experiência do amor, da bondade e da misericórdia de Deus, realidade prioritária e fundamental de nossa vida. O papa bate na mesma tecla ao enfatizar a importância da experiência pessoal com Jesus Cristo, do amor de Deus que ele nos revela. Em suas palavras: “O verdadeiro missionário (…) sabe que Jesus Cristo caminha com ele, fala com ele, respira com ele, trabalha com ele (266).
C) Comentando pagina de João que fala da intimidade entre o discípulo e o Mestre, José Antonio Pagola escreve: Todo ramo que está vivo deve produzir fruto. E se não produz, é porque não circula por Ele a seiva da vida da videira. Assim também é nossa fé. Vive, cresce e dá frutos quando vivemos abertos à comunicação com Cristo. Se esta relação vital se interrompe, cortamos a fonte de nossa fé. Então a fé seca. Já não é capaz de animar nossa vida. Converte-se em confissão verbal vazia de conteúdo e de experiência viva. Triste caricatura do que os primeiros crentes viveram ao encontrar-se com o Ressuscitado. Digamos sinceramente, será que esta ausência de dinamismo cristão, essa incapacidade de continuar crescendo em amor e fraternidade com todos, essa inibição e passividade para lutar arriscadamente pela justiça, essa falta de criatividade evangélica para descobria as novas exigências do Espírito, não estão delatando uma falta de comunicação viva com Cristo ressuscitado? Por paradoxal que possa parecer, o vazio interior pode apoderar-se de mais de um cristão. Preso a uma rede de relações, atividades, ocupações e problemas, o cristão pode sentir-se mais só do que nunca em seu interior, incapaz de comunicar-se vitalmente com esse Cristo em quem diz crer. Talvez a derrota mais grave do homem ocidental seja sua incapacidade de vida interior. Parece que as pessoas vivem sempre fugindo. Sempre de costas para si mesmas. Diríamos que a alma de muitos é um deserto. A falta de contato interior com Cristo como fonte de vida conduz pouco a pouco a um “ateísmo pratico”. Não adianta continua confessando fórmulas, se a pessoa não conhece a comunicação calorosa, prazerosa e revitalizadora com o Ressuscitado. Essa comunicação de quem sabe desfrutar do diálogo silencioso com Ele, alimentar-se diariamente de sua palavra, lembrar-se dele com alegria no meio do trabalho cotidiano ou descansar nele nos momentos de abatimento e opressão ( O Caminho aberto por Jesus. João, José A. Pagola, Vozes, p. 218-219).
Pedindo a graça do silêncio
Senhor,
concede-me não o silêncio que me torna prisioneiro de mim mesmo,
mas o que me liberta e abre espaços novos.
Não o silêncio do corpo cansado procurado em paraísos artificiais,
mas aquele da alma que respira no limiar de teu Reino.
Não o silêncio do medo dos outros e do mundo
mas o que me torna próximo de todo homem e da criação.
Não o silêncio do egoísmo indiferente e altaneiro,
mas aquele que enraíza e fortalece a ternura do coração.
Não o silêncio do solitário monólogo,
mas o da intimidade da tua Presença.
Não o silêncio da resignação,
mas o que nos dispõe a combater pela verdade.
Não o silêncio do homem que foge,
mas de quem te busca.
Não o silêncio do homem que rumina seus fracassos,
mas de quem reflete para descobrir as causas.
Não o silêncio da noite do desespero,
mas o que espera a luz da aurora.
Não o silêncio do rancor
mas o da pacificação e do perdão.
Não o silêncio do tagarela, cheio de si,
mas o do coração que percebe o murmúrio de teu Espírito.
Não o silêncio devassado por incontáveis questionamentos e perguntas,
mas o do maravilhamento e da adoração.
Não o silêncio do esquecimento, do túmulo, da morte,
mas aquele em que a matéria fica prenhe das energias do Ressuscitado
na expectativa de uma vida nova em Tua luz.
Michel Hubaut
Junho
Meditação sobre o Coração do Redentor
Nosso Retiro Mensal de junho tem como tema as maravilhas realizadas por Deus no coração de seu Filho Jesus. Queremos nos deter na fresta do peito aberto, ninho para os aflitos, ferida de amor, chaga que sempre foi o encanto dos místicos. Queremos nos aproximar desse lado aberto pela lança do soldado depois que o mais belo dos filhos dos homens havia consumado sua vida e sua oferta ao Pai. Não queremos, com isso, propugnar uma espiritualidade intimista e alienada, desencarnada e sem compromisso. Somos impulsionados por esta ferida a ir pelo mundo inteiro, a toda as periferias, dizendo que o Amor precisa ser amado.
Assim fala o Amado:
– Olha-me, esposa, um momento,
nu, na cruz pregado,
com tão horrível tormento
para dar-te em alimento
meu fogo divino (…)
Ó alma bem amada
do supremo Criador,
olha que teu Senhor
espera-te, crucificado.
Observa aquela chaga
que está no lado,
vê o sangue no peito
que teu delito paga.
Lembra que eu fui chagado
por uma lança cruel
e tive por cada fiel
o coração traspassado.
(Jacopone de Todi, frade menor)
a) Oséias 11, 1-2a. 3-4. 8b-9
Leitura do livro do profeta Oséias
Quando Israel era um menino, eu o amei e do Egito chamei meu filho. Mas quanto mais eu os chamava, tanto mais se afastavam de mim (…). Fui eu quem ensinou Efraim a caminhar: eu os tomei nos braços, mas não reconheceram que eu cuidava deles. Com vínculos humanos eu os atraía, com laços de amor; eu era para eles como os que levantam uma criancinha contra o seu rosto; eu me inclinava para ele e o alimentava (…). Meu coração se contorce dentro de mim, minhas entranhas comovem-se. Não executarei o ardor de minha ira, não tornarei a destruir Efraim, porque sou Deus e não homem, sou santo no meio de ti, não retornarei com furor – Palavra do Senhor
b) João 19, 28-37
Evangelho de Jesus Cristo segundo João
Naquele tempo, sabendo Jesus que tudo estava consumado, para se cumprir plenamente a Escritura, Jesus disse. “Tenho sede”. Havia ali um vaso cheio de vinagre. Os soldados fixaram numa vara de hissopo uma esponja embebida em vinagre e lhe aproximaram da boca. Depois de provar o vinagre, Jesus disse: “Tudo está consumado”. E, inclinando a cabeça, entregou o espírito. Os judeus pediram a Pilatos que quebrassem as pernas dos crucificados e fossem retirados. Assim o fizeram porque já era a tarde da sexta-feira e não queriam que os corpos ficassem na cruz durante o sábado, por ser aquele sábado particularmente solene. Os soldados vieram e quebraram as pernas do primeiro, e do outro que tinham sido crucificados com ele. Quando chegaram, porém, a Jesus e viram que estava morto, não lhe quebraram as pernas, mas um dos soldados traspassou-lhe o lado com uma lança, e logo saiu sangue e água. Quem o viu deu o testemunho, e o seu testemunho é digno de fé. Sabe que diz a verdade, para que também vós creiais. Assim aconteceu para que se cumprisse a Escritura: Não lhe quebrareis osso algum. E outra Escritura diz também: Olharão para aquele a quem traspassaram – Palavra da Salvação
Outros textos bíblicos: Deuteronômio 7, 6-11; 1João 4,7-16; Mateus 11,25-30.
● João, o evangelista, afirma que Jesus, no alto da cruz, depois de provar o vinagre, disse: “Tudo está consumado”. Inclinando a cabeça , “entregou o espírito”. Seria seu espírito ou Espírito que procede dele e o Pai? Como esta crucifixão se dava às vésperas de festa grande para os judeus não convinha que os corpos dos condenados ficassem expostos aos corvos e animais. Os soldados receberam ordens das autoridades para quebrar as pernas dos condenados e retirar seus corpos das cruzes. João observa que abriram o lado de Jesus e saiu sangue e água.
● O Mestre já havia dado o último suspiro. O soldado abre uma cavidade, um ninho, uma fenda, uma fissura e fica uma ferida. Uma ferida de amor. João faz questão de dizer que o lado tinha sido aberto pela lança. Um dia, muito tempo antes, o lado de Adão fora também aberto e dali brotara Eva. O quarto evangelista lembra que depois da morte de Jesus e antes da ressurreição houve ainda o lado aberto. A Igreja, a esposa do Cordeiro, nasceria do lado aberto do Esposo que é Cristo.
● Brotaram dois filetes do peito do Senhor: água e sangue. Os simbolismos do lado aberto e das fontes que dele brotaram passaram a pertencer ao patrimônio místico, espiritual, teológico da Igreja. João faz questão de mostrar que esse lado aberto tinha uma dimensão profunda. Desde os primeiros séculos da Igreja, os Padres, grandes mestres da fé, viram na água e no sangue a imagens dos sacramentos da iniciação cristã.
● “Queres compreender mais profundamente o poder deste sangue? Repara de onde começou a correr e de que fonte brotou. Começou a brotar da própria cruz e sua origem foi o lado do Senhor (…). E imediatamente saiu água e sangue: a água como símbolo do batismo; o sangue com símbolo da eucaristia. O soldado, traspassando-lhe o lado, abriu uma brecha na parede do templo santo, e eu, encontrando um enorme tesouro, alegro-me por ter achado riquezas extraordinárias” (João Crisóstomo, citação de Liturgia das Horas II, p. 416).
● O Concílio do Vaticano II, retomando um pensamento de Santo Agostinho, afirmou: “Do lado de Cristo, dormindo na cruz, nasceu o admirável sacramento da Igreja (Sacrossanctum Concilium 5). Aos poucos foi se desenvolvendo uma verdadeira mística do lado aberto, passando pelos Padres, chegando à Idade Média. A contemplação daquele que tinha sido traspassado passa a apontar diretamente o Coração do Salvador. Bernardo de Claraval, no século XII, podia dizer: “Pela ferida do corpo se descobre o segredo do coração; por ela aparece esse grande sacramento de bondade e se revelam as profundezas da misericórdia”.
● A Igreja nasce do lado aberto do Redentor. O toque da lança do soldado permitiu que descortinássemos um horizonte mais profundo a respeito do mistério de Cristo. As águas do Jordão nas quais ela havia sido batizado eram apenas símbolo da água verdadeira que sairia de seu lado aberto. Pelo sacramento do Batismo, os discípulos não são purificados exteriormente, mas renascem precisamente na força da água viva que sai do peito do Senhor. Nós, cristãos, nos reunimos para a celebração da eucaristia. Alimentamo-nos do corpo, da vida, do sangue de Jesus, sangue vertido na cruz que saiu de seu peito. Belamente assim se exprime o Prefácio do Coração de Jesus: “Elevado na Cruz, entregou-se por nós com imenso amor. E de seu lado aberto pela lança fez jorrar, com a água e o sangue, os sacramentos da Igreja para que todos, atraídos ao seu Coração, pudessem beber, com perene alegria, na fonte salvadora”.
● Todos aqueles que se deixam tocar pelo mistério e pela graça de Cristo se comprazem em contemplar demoradamente o peito aberto do Senhor. No silêncio dos claustros, na penumbra de uma capela, no centro de uma grande cidade, no meio das lutas e dos combates para tornar o mundo mais fraterno com as cores do Reino de Deus, todos esses admiram e adoram o peito aberto do Senhor. Todo trabalho evangelizador na Igreja consiste precisamente em anunciar por palavras e pelo testemunho as maravilhas definitivas e profundas que Deus operou em Jesus mormente no seu mistério de morte e ressurreição, do peito aberto e do sepulcro vazio
Amor com amor se paga. A fonte do Coração de Jesus impele os discípulos do Mestre a viverem o amor no meio do mundo. Os verdadeiros discípulos de Cristo são pessoas atuantes junto aos que têm o rosto desfigurado por toda sorte de sofrimento. Amar o Coração de Jesus é segui-Lo em suas opções. Cristo preferiu os pequenos e excluídos, os marginalizados e os mais abandonados. Fala-se de uma devoção reparadora. O Coração do Senhor é ofendido pelo pecado e por todos os atentados perpetrados contra sua presença no rosto dos menores da terra. O I Congresso Nacional do Coração de Jesus, realizado em Itaici, São Paulo, em outubro de 1998, assim declarou: “O Coração de Cristo é a plena revelação do mistério de Deus que se inclina compassivo sobre a humanidade, Deus que se compromete com a história do homens e com a pessoa humana: Deus apaixonado, cheio de misericórdia e de ternura”.
Toda a mística que vê Cristo no excluído e no pobre aparece na bela página do Documento de Puebla (III Conferência do Episcopado Latino-Americano/ 1979) , descrevendo feições ou rostos desfigurados da América Latina:
“A situação de extrema pobreza generalizada adquire, na vida real, feições concretíssimas nas quais deveríamos reconhecer as feições sofredoras de Cristo, o Senhor que nos questiona e interpela:
● feições de crianças, golpeadas pela pobreza ainda antes de nascer, impedidas que estão de realizar-se, por causa das deficiências mentais e corporais irreparáveis, que as acompanharão por toda a vida; crianças abandonadas e muitas vezes exploradas de nossas cidades, resultado da pobreza e da desorganização moral da família;
● feições de jovens desorientados por não encontrarem seu lugar na sociedade e frustrados, sobretudo nas zonas rurais e urbanas marginalizadas, por falta de oportunidades de capacitação e de ocupação; (…)
● feições de operários, com frequência mal remunerados, que têm dificuldade de se organizar e defender os próprios direitos;
● feições de subempregados e desempregados, despedidos pelas duras exigências das crises econômicas e, muitas vezes, de modelos desenvolvimentistas que submetem os trabalhadores e suas famílias a frios cálculos econômicos;
● feições de marginalizados e amontoados das nossas cidades, sofrendo o duplo impacto da carência dos bens materiais e da ostentação da riqueza de outros setores;
● feições de anciãos cada vez mais numerosos, frequentemente postos à margem da sociedade do progresso, que prescinde das pessoas que não produzem. (Doc. Puebla, 31-39).
Santo Agostinho, apaixonado pelo mistério de Deus, soube escrever páginas admiráveis, densas de amor. Lamenta ter encontrado o seu Amor muito tarde.Ele afirma ter degustado a doçura da graça. “Tu me tocaste e meu coração arde em chamas, usufruindo de tua paz”. Inegavelmente os discípulos do Coração do Redentor são aqueles que se demoram na meditação da figura de Jesus: nos momentos de paz, de oração, de intimidade com Jesus na Palavra ou na Eucaristia, na contemplação do Crucificado com o peito rasgado, mesmo nos momentos de infidelidade e de pecado. O discípulo é tocado pela graça de Deus e pode dizer com Agostinho: “Fui tocado por Cristo. Ele me olhou. Tocou minhas fibras mais íntimas e não posso viver sem ele”. O Coração do Redentor, efetivamente, toca os que o amam. Assim falam os místicos:
● “É bom ficar com ele; nele vou fazer três tendas: uma em suas mãos, outra em seus pés; e uma terceira, permanente, em seu lado. Lá eu quero descansar e dormir, comer e beber, ler e rezar. Lá falarei ao seu Coração e dele receberei tudo o que ele quiser.
● É lá que eu moro; lá me alimentarei da comida que ele come; lá também me embriago com sua bebida; aí experimentarei uma tão grande doçura, que não há como explicar.
● Aquele que, por causa dos pecadores, morou no seio virginal, hoje digna-se carregar-me, a mim miserável em suas próprias entranhas. E tenho medo que venha o dia do parto, que me privaria das delícias que eu estou gozando.
● Sem dúvida, se ele me põe no mundo, precisará como um mãe, dar-me o leite de seu seio, lavar-me com suas mãos, carregar-me em seu regaço, consolar-me com seus beijos, aquecer-me sobre seu peito.
Sei bem o que vou fazer: ele poderá fazer com que eu saia dele quantas vezes quiser. Sei, no entanto, que suas fendas estão abertas. Por elas penetrarei de novo em seu seio, e para lá voltarei sempre de novo até que eu esteja inseparavelmente unido a ele” (Frei Tiago de Milão).
Obs.: Frei Tiago é um nome importante na mística franciscana. Pouco se conhece a seu respeito. Apenas dois fatos: foi professor de teologia no Convento dos Frades Menores em Milão e escreveu um tratado místico: Estímulo do Amor. Esta obra, durante muito tempo foi atribuída a São Boaventura. Depois foi descoberta sua autoria verdadeira, ou seja, de Frei Tiago de Milão. A obra foi muito valorizada por grandes espirituais como Frei Luís de Granada, e mesmo São Francisco de Sales. Seu estilo é um tanto afetado, mas se trata de obra de grande elevação espiritual e lembra em algumas passagens escritos de São Bernardo e do próprio São Francisco (observações de Frei Urbano Plenz ,OFM).
No alto da cruz ele se sentara como se sentasse num trono nupcial. Ali ele era o Esposo. Ele mesmo havia dito que enquanto estivesse no mundo os seus não teriam necessidade de jejuar nem de experimentar tristeza. Viria a hora das trevas, a hora das horas, em que o esposo seria arrancado do meio dos seus. Suspenso entre o céu e a terra, despojado e amando até o fim. Jesus exerce sedução sobre o coração dos homens. Mostra que a todos ama com amor eterno e lhes faz confidências amorosas. Leva os seus ao deserto do Calvário. Os que são tocados pelo amor do Esposo desfigurado, vestido de nudez, de despojamento, tendo a fonte dá água e do sangue em seu peito sentem-se tocados: “Seduziste-me e eu me deixei seduzir” (Jr 20,7). Os que vão se deixando seduzir vivem com uma questão nos lábios: “O que queres de mim, amado Esposo?”
Fazendo eco a estas reflexões transcrevemos palavras inspiradas de São Boaventura (1218-1274):
Teu lado foi rasgado,
para que nos fosse aberta uma entrada.
Teu coração foi ferido,
para que pudéssemos descansar debaixo daquela videira,
livres da agitações exteriores;
e foi também ferido, para que pela chaga visível,
víssemos a chaga do amor.
Pois quem ama ardentemente,
está ferido de amor.
E como melhor se poderia mostrar este incêndio,
senão deixando traspassar a lança
não só o corpo,
mas também o Coração?
Assim, a ferida do corpo mostra a ferida espiritual (…).
E a esposa é a causadora de ambas as feridas;
por isso, o Esposo diz:
– Feriste-me o coração, minha irmã;
ó esposa, feriste-me o coração (…).
Peçamos ao Esposo que faça arder nosso coração, ainda duro e impenitente e o amarre com os doces laços de seu amor e digne-se feri-lo com suas flechas. Amém.
(A Videira Mística II, 5-6. Trad.de Frei Urbano Plenz, OFM, Cadernos Franciscanos de Minas, 1984, n. 4, p.14 e 15).
O discípulo de Cristo é aquele que contempla suas chagas, aspira morar nas alturas e descansar na fenda aberta no peito do Redentor. Transcrevemos o salmo 60(61). O homem agradecido exprime seu louvor: “Quando em mim o coração desfalecia, conduziste-me às alturas do rochedo”.
Escutai, ó Senhor Deus, minha oração,
atendei à minha prece, ao meu clamor!
Dos confins do universo a vós eu clamo
e em mim o coração já desfalece
Conduzi-me às alturas do rochedo,
e deixai-me descansar neste lugar! Porque sois meu refúgio e fortaleza,
torre forte na presença do inimigo.
Quem me dera morar sempre em vossa casa
e abrigar-me à proteção de vossas asas!
Pois ouvistes, ó Senhor, minhas promessas,
e me fizeste tomar parte em vossa herança (…).
Então sempre cantarei o vosso nome
e cumprirei minhas promessas dia a dia.
Julho
Visitando a casa do coração
Cultivar a interioridade
A Cúria Geral da Ordem dos Frades Menores publicou em 2003 um pequeníssimo fascículo que levava o seguinte título de “O caminho que leva ao lugar do coração”. O subtítulo indicava mais claramente sua finalidade: Achegas para descobrir interioridade e silêncio na vida franciscana. Haveremos de ter suas linhas diante de nossos olhos neste Retiro Mensal. Dois acentos nestas páginas: interioridade e silêncio.
Fr. Almir Ribeiro Guimarães, OFM
freialmir@gmail.com
Senhor, não sei para onde vou. Não vejo o caminho diante de mim.
Não posso saber com certeza onde terminará.
Nem sequer em realidade me conheço e o fato de pensar que estou seguindo a tua vontade não significa que em verdade o esteja fazendo.
Mas creio que o desejo de te agradar te agrada realmente.
E espero ter esse desejo em tudo o que faço.
Espero que jamais venha a fazer algo de contrário a esse desejo.
E sei que se assim fizer me hás de conduzir pelo caminho certo, embora eu nada saiba a esse respeito.
Portanto, sempre hei de confiar em ti ainda que me pareça estar perdido e nas sombras da morte.
Não hei de temer, pois estás sempre comigo e nunca me abandonarás. Não enfrentarei sozinho os perigos que me cercam.
Thomas Merton
Na liberdade da solidão, Vozes, p. 66
a) O coração como morada do Altíssimo
Disse Jesus: “Se alguém me ama, guarda minha palavra e meu Pai o amará, viremos a ele e faremos nele a nossa morada. Aquele que não me ama não guarda as minhas palavras. A palavra que estais ouvindo não é minha, mas do Pai que me enviou. Disse-vos estas coisas enquanto estou convosco. Mas o Paráclito, o Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome, ele vos ensinará tudo e vos trará à memória tudo quanto eu vos disse” ( Jo 14, 23-25).
Francisco diante deste texto: “Irmãos todos, vigiemo-nos muito a nós mesmos, a fim de não perdermos ou desviarmos do Senhor nossa mente e nosso coração sob a aparência de uma recompensa ou obra ou ajuda. Mas na santa caridade que é Deus, rogo a todos os irmãos, tanto os ministros como os outros, removam todos os obstáculos e rejeitem todos os cuidados e solicitudes para com o melhor de suas forças, servir, amar, adorar e honrar, de coração reto e mente pura, o Senhor nosso Deus, pois é isso que ele deseja sem medida. E preparemos-lhe sempre dentro de nós uma morada permanente, a Ele que é o Senhor e Deus todo poderoso, Pai, Filho e Espírito Santo” (Regra não bulada 22, 27).
b) Os que ouvem a Palavra são parentes de Jesus
Enquanto Jesus ainda falava ao povo, sua mãe e seus irmãos, do lado de fora, tentavam falar com ele. Então alguém lhe disse: “Tua mãe e teus irmãos estão lá fora, querendo falar contigo”. Jesus, porém perguntou a quem lhe deu o recado: “Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?” E estendendo a mão sobre os discípulos, disse: “Eis aqui minha mãe e meus irmãos. Pois quem fizer a vontade de meu Pai que está nos céus, este é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mt 12,46-50).
Francisco diante deste texto: “Somos esposos, quando por virtude do Espírito Santo, a alma fiel se une a Nosso Senhor Jesus Cristo. Somos irmãos de Cristo quando fazemos a vontade do Pai que está nos céus e somos mães quando o levamos em nosso coração e em nosso corpo por virtude do amor divino e de uma pura e sincera consciência; nós o geramos por uma vida santa que deve brilhar como exemplo para os outros” (Carta aos Fiéis, primeira recensão).
● Quando dispomo-nos a fazer um retiro temos o propósito e o desejo de que o Senhor possa agir e falar em nós. Não queremos resolver problemas, mas deixar que o Senhor nos ilumine e possa tomar posse de nós. Há algumas condições: silêncio de nós mesmos; desejo que o Senhor nos visite com seu perdão porque sem isso não conseguimos olhar nos olhos do Amado; que luzes se acendam no horizonte de nossa vida. Tudo isso será feito com grande humildade interior. No começo do retiro irrompe sempre a questão que nunca terminamos de responder: “O que queres de mim?” Somos convidados a passar alguns instantes em absoluto silêncio, nus diante da claridade do Senhor.
● Francisco começa a descentrar-se de si mesmo, abandona a lógica da carne e se abre às visitas do Espírito. “A partir desse momento começou a considerar de pouco valor e a desprezar as coisas que havia amado, mas ainda não estava plena e intimamente desligado das vaidades do mundo. Aos poucos, porém, subtraindo-se ao tumulto do mundo, procurava guardar no seu interior a Jesus Cristo e quase todos os dias ia frequente e secretamente fazer orações, ocultando aos olhos dos iludidos a pedra preciosa que desejava comprar mesmo tendo que vender tudo” ( Três Companheiros 8).
● Pode ser que, devido a tantas transformações interiores e exteriores, tenhamos perdido a sede de Deus. Não é de estranhar que, com tantos ruídos, imagens e sensações, sem nos termos dado conta, perdemos uma certa orientação que nos guiava, o sentido de nosso projeto de vida e se se tenha instaurado em nós esse bulício que nos envolve. Sentimo-nos desmotivados e desorientados e mesmo sem sede alguma de plenitude. Jogamos a culpa no trabalho, nas circunstâncias. Talvez fosse importante perguntar: Por que perdemos a sede? Que fontes de água andamos buscando? Entregues a nossas rotinas fomos nos tornando seres secos.
● “O caminho para a interioridade hoje dá-se num tempo de mudanças, tempo rico de muitos sinais e de redescoberta da interioridade e do silêncio. A sociedade secularizada vem focada sobre o indivíduo, fragmentado, com uma identidade fluída.Temos diante de nós uma mudança radical da visão do homem, determinada sobretudo pela tecnologia (…). Importante que o homem permaneça o sujeito desse desenvolvimento, sobretudo a partir da verdade profunda de si mesmo. Confrontamo-nos também com o medo de entrar em nós mesmos, com a pobreza de nossos sentimentos, de afetos, de capacidade de amar e deixar-se amar. No espaço da interioridade, o silêncio pede a escuta de nós mesmos, dos outros e da realidade. Os meios de informação podem enganar-nos, ao dar-nos a sensação que eles fazem este trabalho em nosso lugar. Na verdade tornamo-nos estranhos a nós mesmos. O percurso para dentro de nossa interioridade não é somente terapêutico para nossa cultura do barulho, mas também vem a ser um caminho voltado para o acolhimento e para uma nova civilização do amor” (O caminho que leva…,op.cit., p.5).
● Analisando a vida de oração na Ordem dos Frades Menores o ex-Ministro José R. Carballo, escrevia: “Nesses momentos em que muitos sofrem as consequências do estresse e o secularismo introduziu-se entre nós, torna-se mais necessária uma intensa vida de oração. Chegou o momento de reafirmar a importância da oração diante do ativismo e do opressor secularismo. Sempre que estiverem paralisados pela angústia, desorientados e desmoralizados, os Frades e as Fraternidades precisam entrar na “sala superior”, o Cenáculo, num lugar íntimo, onde Deus seja reconhecido e adorado (…). Em tempos em que entre nós se faz sentir fortemente a tentação de cada um construir a própria estratégia e acender o próprio foguinho, é necessário contemplar e rezar para recebermos juntos o único fogo de Pentecostes, o Espírito que vem de Deus. Quando a superficialidade e a dispersão se tornam presentes em nossas vidas, é necessário que toda a nossa existência mergulhe num clima de oração, de contemplação, de adoração, de abandono e de ação de graças” (Com lucidez e audácia, n. 32).
● Anteriormente, o Ministro Giacomo Bini, recentemente falecido, falava da necessidade de reencontrar a unidade na diversidade. Ninguém pode dizer que nosso projeto de vida não esteja claro. O que sucede é que talvez não consiga tornar-se um projeto existencial nem levar a um novo estilo de vida. Essa é a questão. O problema dos documentos produzidos nos últimos tempos é que foram aceitos (quando foram aceitos) como “documentos” e não como instrumentos importantes para a reestruturação e reanimação de nossa vida diária. “Desta forma nossa vida quotidiana está se desintegrando e fragmentando a partir dos inúmeros compromissos e desejos despertados em nós por um mundo demasiadamente consumista. Devemos substituir a cultura da aparência, do imediato, da exterioridade, da eficiência própria do nosso mundo globalizado, por uma cultura da interioridade, do silêncio, da escuta obediente, da fecundidade divina” (A Ordem hoje, Roma, 2000).
● “O silêncio é a linguagem de quem ama. É o ambiente vital em que podemos reconhecer que o Pai do céu está presente e dá sentido à vida humana de cada um (…) A viagem para nossa interioridade não significa uma evasão da vida e de seus desafios. Ao contrário, pode tornar-se um lugar de escuta da realidade e dos sinais dos tempos. Além disso, pode conduzir-nos à unidade entre fé e vida; pode conduzir-nos a uma comunhão profunda, capaz de acolher o outro com respeito e gratuidade. A interioridade e o silêncio levam-nos ao reconhecimento de que somos criaturas limitadas e radicalmente pobres . E assim podemos abrir-nos à gratidão e à restituição de tudo o que somos Àquele que é o Bem, o Sumo Bem” ( O caminho que leva…,op. cit,. p.6).
● “O silêncio é a última palavra do discurso. É plenitude da palavra. É diálogo sem palavras. É a medida do tempo necessário para amadurecer uma mensagem no coração. Consequentemente, é muito pouco defini-lo apenas como ausência de qualquer som ou rumor; é, ao contrário, um realidade plenamente positiva: é escuta intensa da Palavra de Deus. Daí se compreende que não se escolhe o silêncio pelo silêncio, mas o silêncio para a escuta, para o diálogo interior e prolongado, para a comunhão profunda” ( Ubaldo Terrinoni, Projeto de pedagogia evangélica, Paulinas, p. 182).
● Afinal de contas, o que pode bem significar trilhar o caminho do coração, voltar ao interior?
o Conservar sempre um espírito de simplicidade e de humildade.
o Conservar um coração puro que saiba escutar os silêncios de Deus.
o Reservar suficientes momentos de oração silenciosa.
o Fazer regulares revisões de vida procurando saber por onde anda seu coração.
o Ter o hábito da oração de louvor.
o Viver da melhor maneira possível o espírito de desapropriação.
o O caminho para a interioridade é um itinerário de tratamento das feridas mais profundas, é a conversão evangélica. Permitir que o Senhor nos cure em profundidade.
o “Preparar uma morada para ele exige uma revisão do uso do tempo, procurando espaços de gratuidade e de liberdade para si e para a Fraternidade; exige o cultivo de leituras adequadas; exige o tempo para a oração”. (O caminho que leva…, p. 11)
O gosto de Deus
Sem gosto nada se faz.
Para poder se achegar a Deus será preciso um certo gosto de Deus.
Há pessoas que não têm ou dão a impressão de não ter gosto de Deus. Deus não lhes diz nada. Para elas não corresponde a nada. Impossível falar-lhes de Deus.
Há, de outro lado, aqueles que experimentam alegria pelo simples fato de pensar em Deus. São esses que experimentam necessidade de amar e de amar não a qualquer um, a alguém passageiro e imperfeito, mas o Bem perfeito. Desejam, efetivamente, poder se entregar totalmente a ele e de entrar em sua alegria. Entram em sua alegria. O Bem as a trai. Têm o gosto de Deus.
A atração por Deus é experimentada de várias maneiras.
Pode ser uma claridade, um calor, uma atração experimentada que nos chama a buscar sua presença, a entrar ou permanecer em contato com ele.
Como isto pode se dar? Pode ser o sofrimento do vazio, a angústia que busca um coração a amar, o quase desespero em buscar a verdade. Há esse gosto pelo fervor que vem de Deus.
O gosto de Deus é também necessidade de viver com ele: que ele esteja comigo ou em mim, que eu esteja com ele e nele.
É a atração da amizade divina da vida verdadeiras.
Vaidade das vaidades, tudo é vaidade… menos Deus, o ser que não se divide e não pode ser limitado, luzente em sua plenitude sem sombra.
Há pessoas que parecem apreciar a vida em sua espuma. O homem que procura sua vida em alimentos mais ricos: em afetos profundos, na verdade e na probidade, na sabedoria, na justiça, nos atos retos e mais corretos possíveis: este homem vê sua vida se aprofundar e ao mesmo tempo se simplificar.
Em lugar de se derramar na atração pelas coisas passageiras, haverá de recolher-se em si mesmo e se alegrará menos em ter e mais em ser.
Dom Germain Barbier, OSB
Como uma fonte
Senhor, eu não sei rezar.
Incessantemente meu corpo se agita,
meus pensamentos se dispersam como indócil rebanho.
Todo meu ser foge de ti.
Nada mais tenho a oferecer.
E, no entanto, como que manco, inseguro e pesado
estou aqui e te contemplo.
Tu vens a mim, tu o Altíssimo,
o três vezes Santo, o Onipotente.
Debruças sobre mim.
Tu me esperas e me acolhes.
Tu estás em mim como uma fonte
que desliza suavemente declive abaixo.
Esse ribeiro tranquilo e sereno,
torna delicioso o ar com seu murmúrio,
exala frescor
e deposita um canto de alegria em meu coração.
Não me abandones, Senhor.
Sem ti nada sou.
Sem ti volto ao nada.
Permanece em mim como uma fonte.
Que essa fonte ilumine minha opacidade
e vivifique o barro do qual me tiraste.
De minha parte então talvez possa tornar-me fonte para os outros.
Irmão Henri-Renê, Irmão da Ressurreição
Agosto
Clara: um coração contemplativamente ardoroso
Nosso retiro do mês de agosto de 2014 se faz em torno da figura de Clara, a mulher cheia de fogo, aquela que se apaixonou pelo Cristo pobre e viveu a vida toda esses esponsais no espaço exíguo de São Damião. Ainda hoje chega até nós o perfume dessa vida apaixonada pelo Cristo esposo. Basta entrar na Igreja de São Damião, fechar os olhos e esquecer que já se passaram mais de oitocentos anos
a) Ao Espírito, suplicando pela paz
(acolhendo a presença do Senhor)
Faze de nós, Pai, imagens tuas,
sedentos de justiça
e artífices da paz.
Pai de todas as misericórdias,
envia-nos o teu Espírito,
o advogado dos pobres,
o consolador dos humilha dos,
a brisa suave
que reconcilia o irmão com o irmão.
Que por sua inspiração,
cheia de força e de doçura para eliminar toda violência,
venhamos a ser infinitamente criativos,
apoiados na rocha da fé,
dispostos a todas as paciências da esperança,
uma vez rompidas todas as falsas manifestações de amor.
Amém.
b) A Santa Clara
Clara,
mulher cheia de claridade,
irmã de Francisco de Assis,
intercede por teus devotos
que querem ser puros e transparentes.
Teu nome e teu ser
exalam o perfume das coisas inteiras
e o frescor do que é novo ou renovado.
Clareia os caminhos tortuosos
dos que se embrenham na noite
do próprio egoísmo
e nas trevas do isolamento.
Clara,
irmã de Francisco,
coloca em nossos corações
a paixão pela simplicidade,
a sede pela pobreza,
o desejo da contemplação.
Santa Clara,
ilumina os passos daqueles que
buscam a Claridade!
Oseias 2, 16-18. 21-22
O Senhor leva a esposa ao deserto
Assim fala o Senhor: “Eu mesmo a seduzirei, conduzirei ao deserto e lhe falarei ao coração. Lá eu lhe restituirei suas vinhas, e o vale de Acor será uma porta de esperança. Lá ela (a esposa) responderá como nos dias da juventude, como no dia em que saiu do Egito. Naquele dia – oráculo do Senhor – tu me chamarás meu marido e já não me chamarás meu Baal (ídolo) (…) Eu te desposarei para sempre, eu te desposarei na justiça e no direito, no amor e na ternura. Eu te desposarei na fidelidade e conhecerás o Senhor”.
Outro texto: João 15, 4-10
Reflexões
⇒ O crescimento espiritual de uma pessoa depende, em boa parte, de um adensamento de seus relacionamentos com o Senhor e do cultivo de um amor ao próximo. Os que são responsáveis por orientar outros no caminho da vida interior sabem perfeitamente que precisam conhecer experimentalmente a Deus e, ao mesmo tempo, ter tino e tato de perscrutar, com o auxílio do Espírito, o coração dos que lhes foram confiados. Deverá ter clareza a respeito dos princípios teológicos do crescimento na vida espiritual. Para acompanhar os outros a crescerem será conveniente fazer o levantamento de suas potencialidades e possibilidades. E, em resumo, abrir os caminhos para que o Espírito possa agir.
⇒ Uma das dificuldades que experimenta uma pessoa que está à frente de outras na tarefa formativa é a da aquisição de uma habilidade teológica e psicológica para que possa ser feita uma leitura autêntica dos dinâmicos relacionamentos entre Deus e o homem. O Senhor já está em ação nas pessoas. Clara é verdadeira guia espiritual para a vida franciscana. Seus escritos revelam uma compreensão profunda da espiritualidade franciscana, dos grandes tema da espiritualidade monástica, assim como revelam uma aguçada compreensão da condição humana.
⇒ Clara não é uma substituta de Francisco que foi para ela pai e guia espiritual. Ela mesma faz questão de se autodefinir como plantinha do seráfico Pai. Clara tem títulos que a fazem mestra de espiritualidade franciscana. Em razão de seu relacionamento todo particular com São Francisco e da qualidade de seu conhecimento a respeito do “mistério” do Poverello e de sua visão mística da realidade humana e do mundo espiritual, fruto de muitos anos de vida contemplativa e de orientadora das irmãs pobres de São Damião e pelo fato de ser mulher, Clara, mais do que qualquer outra pessoa, é o complemento mais significativo e mais essencial de São Francisco e, desta forma, uma autêntica guia espiritual para vida franciscana. Na teia rica da espiritualidade seráfica, Clara nos leva à contemplação e nos convida a que a entremos no âmbito do relacionamento conjugal com Cristo.
⇒ Nos seus escritos transparece o tema do desejo de união com o Cristo esposo. A doutrina espiritual de Clara brota de sua experiência mística, experiência cristocêntrica e mariana. Mais do que teológico-conceitual seu cristocentrismo é, antes de tudo, afetivo e experiencial. Insiste na necessidade Absoluta de se procurar a comunhão de vida com o Cristo esposo, pobre e humilde, caminho para união com o Pai. Corolário deste tema basilar é o desejo do céu (união plena com Deus) para além dos atrativos deste mundo.
⇒ O tema do desejo da união com Cristo é dos mais importantes e singulares em Clara. A essência da vida para as irmãs pobres de São Damião é antes de tudo amar uma pessoa, Jesus Cristo, e assim responder ao seu amor. Trata-se de dar-se a Cristo. Nada querer que não seja Cristo Jesus (Legenda 13). Sua espiritualidade é ele: o Filho de Deus que por nós se fez caminho (Testamento 5). A pedra angular de todo o edifício religioso, de toda a vida espiritual de Clara e de suas irmãs, consiste em estarem ligadas por um afeto pessoal a Cristo Jesus com amor ardoroso e apaixonado. Por causa de Cristo, em vista de Cristo, perto de Cristo se realizam todas as suas experiências e se constrói o edifício da vida espiritual das irmãs.
⇒ Suas cartas a Inês de Praga estão repletas de expressões que, a princípio, poderiam ser simples observações de afetividade feminina. Em parte, assim, podem ser interpretadas. Elas são também ser um sinal da natureza afetiva da espiritualidade franciscana. Trata-se da linguagem do amor intenso e do desejo de união com o esposo divino que havia se apossado tanto do coração de Clara como do de Inês. O mesmo já havia acontecido com Francisco: “Quem seria capaz de narrar a caridade fervorosa que ardia em Francisco, o amigo do esposo? Parecia, de fato, todo absorto, como um carvão ardente, na chama do amor divino. Ao ouvir falar do amor do Senhor, subitamente se excitava, se comovia, se inflamava, como se com a palheta da voz exterior se tocassem as cordas mais íntimas do coração” (Legenda Maior IX, 1-2).
⇒ Servindo-se da imagem esponsal Clara define implicitamente a vida franciscana como caminho permanente de busca do Senhor, a única coisa necessária (2ª. Carta a Inês, 1), o tesouro incomparável (3ª. Carta), ligando-se a ele e a ele se unindo em contemplativo abraço para experimentar misticamente sua presença, para segui-lo e imitá-lo e conformar a vida e o pensamento a ele que a nós se entregou totalmente(2ª.Carta, 15).
⇒ Com as mesmas palavras usadas por Francisco na Regra, Clara sublinha a prioridade absoluta que deve ser dada ao desejo de união com Cristo, união que se realiza na alma pelo Espírito Santo: “lembrem-se, que acima de tudo devem desejar ter o Espírito do Senhor e sua santa operação (Regra de Clara X,9).
⇒ Assim, a linguagem do desejo ardente da união com Cristo aparece, antes de tudo e primordialmente nas Cartas a Inês: “…ficai firme no santo serviço do Pobre crucificado, ao qual vos dedicaste com amor ardente (1ª. Carta 13). Mais claramente ainda: “Achei bom suplicar a vossa excelência e santidade, na medida do possível, com humildes preces, nas entranhas de Cristo, que vos deixeis fortalecer em seu santo serviço, crescendo de bem para melhor, de virtude em virtude, para que aquele que servis com todo o desejo do coração se digne dar-vos os desejados prêmios (1ª Carta 31-32).
⇒ Quando se reflete sobre o amor esponsal de Clara pelo Cristo necessário ter em mente os dizeres da 4ª. Carta onde Clara mostra ter familiaridade com o Cântico dos Cânticos: “Tomara que você se inflame cada vez mais no ardor dessa caridade, ó rainha do Rei celeste! Além disso, contemplando suas indizíveis delícias, riquezas e honras perpétuas, proclame, suspirando com tamanho desejo do coração e tanto amor: Arrasta-me atrás de ti! Corramos no odor de teus bálsamos (Ct 1,3), ó esposo celeste! Vou correr sem desfalecer, até me introduzires na tua adega (Ct 2,4), até que a tua esquerda esteja sobre a minha cabeça, sua direita me abrace (Ct 2,6) toda feliz e me dês o beijo mais feliz de tua boca (Ct 1,1)” ( 4ª. carta 27-32)
a) Dou graças ao Senhor por todas as vezes que, exatamente junto a um mosteiro, desde frade jovem, pude fazer a experiência de “cura” recolocando em ordem harmoniosa os valores evangélicos de minha vocação e missão, graças à ajuda das Irmãs Clarissas. Muitas vezes pedi hospitalidade em seus mosteiros para dar novo tom espiritual à minha vida. Obrigado a todas vós, irmãs clarissas por esta função terapêutica tão importante para a caminhada vocacional de uma pessoa consagrada ( + Fr. Giacomo Bini, OFM).
b) Da carta de uma Clarissa aos frades – “Se a Ordem e o mundo de hoje quiserem superar o “impasse” em que se encontram eu, Clarissa, não vejo outro caminho senão este: centrar-se na oração. Será preciso reavivar aquela oração pessoal com Deus, aquele encontro pessoal que Francisco alimentou durante toda s sua vida, encontro que se reveste de fé, esperança e amor. Uma relação de pessoa a pessoa, de amigo a Amado, do “verme inútil” ao dulcíssimo Deus. Vocês sabem muito bem que sem encontro pessoal não poderão encontrar o próximo. Este “diálogo” com Deus é tão urgente que, sem ele, não será possível entregar-se ao serviço dos irmãos. Em que consiste o apostolado que vocês realizam? Ou será que já desistiram de amar os homens e lavar-lhes os pés? Creio que o apostolado consiste em transmitir ao próximo, numa relação pessoal, o dom que Deus nos dá também numa relação pessoal. Estou convencida que a salvação da Ordem e a renovação do mundo consiste na humilde volta aos inícios da oração. Esta precisa tornar-se novamente fome de Deus, diálogo constante com o Ser que se ama. Então, como que automaticamente, todas as coisas vão sendo colocadas em seus devidos lugares. Vocês sabem que o Espírito de Deus não está em repouso e é esse Espírito que renova a face da terra. Urge começar novamente a rezar, individual e comunitariamente. Urge consagrar à oração muitas horas durante o dia. Sei que isso exigira de vocês um grande esforço. Mas vocês não querem atingir o essencial? Já sei. Vão me dizer que a fé está enfraquecida. Estou persuadida que este é um grande problema. Vocês perderam o senso da presença de Deus e de sua atuação. Mas é preciso rezar novamente. No início será difícil. Que vocês simplesmente se apresentem diante de Deus como quem traz a própria miséria, seu vazio e seu fracasso na qualidade de menor. Não creio que a vitória sobre as dificuldades atuais possam ser superadas sem que vocês criem espaços de silêncio e de solidão. Solidão não quer dizer separar-se dos homens, mas criar condições para o encontro com Deus. Vocês sabem perfeitamente que o “fazer coisas” pelos outros se esvazia completamente se Deus não estiver com vocês. É por isso, que muitas vezes, a ação pastoral de frades e homens cristãos é estéril. Muitos dos problemas pastorais que vocês dizem encontrar aparecerão como falsos desde o momento em que vocês, novamente, estiverem imersos no amor do Senhor
Inspirado em Scrito col cuore – Chiara Augusta Lainait, OD=SC, in Vita Minorum 14, 1972, p. 472
• O que chama sua atenção neste texto?
• Como concretamente se realiza essa união do coração com o esposo que é Cristo?
• Quais as características de uma espiritualidade esponsal?
• Qual é a preocupação de Chiara Augusta Lainati no texto dirigido aos frades, transcrito acima?
Em louvor de Santa Clara
Clara, minha irmã Clara,
mostra-me onde está
o tesouro do campo de tua vida:
como é belo o sol que brilha em teu jardim!
Tenho vontade que me tomes pela mãe e me leves!
Este é meu desejo!
Clara, minha irmã Clara,
faze com que eu aprenda a andar
com o ritmo de teus passos:
tu és tão feliz e tua alma dança de alegria.
Tenho um único desejo:
que minha alma dance diante de Deus a dança da alegria!
Clara, minha irmã Clara,
lava-me na corrente de tua vida;
tão pura é nossa irmã água que corre que só tenho um desejo,
isto é, aproximar-me da fonte de tua vida.
Clara, minha irmã Clara,
guarda-me no segredo de teu rosto;
teu semblante e teu olhar
quando estás em oração são tão luminosos
que só tenho um desejo: sentar-me à tua luz.
Clara, minha irmã Clara,
leva-me ao teu Amado pobre e crucificado:
tão alegre é teu coração diante do Evangelho
que só tenho um desejo:
ter um coração parecido com o teu.
Setembro
UMA RELÍQUIA VIVA DESCIA DA MONTANHA
Francisco era “estigmatizável” antes de ser estigmatizado
Nada mais natural que no mês de setembro detenhamo-nos, neste retiro mensal, na festa solene da Estigmatização do Pai Francisco (17 de setembro). Ressoam aos nossos ouvidos as palavras de Paulo dirigidas aos cristãos da Galácia: “Que ninguém me moleste, pois eu trago em meu corpo as marcas de Jesus” (Gl 6, 17). Dois anos antes de seu trânsito que se daria nu na terra nua Francisco quer viver uma quaresma em honra de São Miguel no esplendoroso quadro do Monte Alverne. Somos discípulos daquele que desce encantado e chagado do monte ao lado de seu fiel frei Leão.
Frei Almir Ribeiro Guimarães
freialmir@gmail.com
Vem, silêncio onde tudo é Deus.
Vem, Amor, Verdade e Humildade.
Vem, Misericordioso, Pai de ternura.
Vem e embala-nos em teus braços invisíveis.
Vem nos dar o beijo do perdão,
por teu Filho
na glória da vitória da Cruz.
Leva-nos para a eternidade da Trindade
na esperança da vida em abundância.
Amém
a) Na linha do desejo
• Sois vós, ó Senhor, o meu Deus!
Desde a aurora ansioso vos busco!
A minh’alma tem sede de vós,
minha carne também vos deseja,
como terra sedenta e sem água! (Sl 63, 2)
• Assim como a corça suspira
pelas águas correntes,
suspira igualmente minh’alma
por vós, ó meu Deus!
Minh’alma tem sede de Deus,
e deseja o Deus vivo.
Quando terei a alegria de ver
a face de Deus? (Sl 42, 2-3)
• É seguindo os caminhos dos teus desejos,
que nós esperamos em ti, Senhor…
Anseio por ti durante a noite,
do fundo do coração eu te procuro (Is 26,8.9).
• A minh’alma anseia e tem saudades
dos átrios do Senhor
com todo o meu ser canto de alegria ao Deus vivo! (Sl 84,3).
b) Texto franciscano
O fiel servo e ministro de Cristo, Francisco, dois anos antes de entregar a Deus o espírito, tendo iniciado, num lugar elevado e solitário chamado Monte Alverne, um jejum de 40 dias, em honra do arcanjo São Miguel, mais do que de costume infundiu-se nele a suavidade de elevada contemplação, e, inflamado de desejo mais ardente das coisas celestes, começou a perceber dons vindos do alto. Enquanto, nos ardores de seráficos desejos, arrebatava-se em Deus, certa manhã, nas proximidades da festa da Exaltação da Santa Cruz, rezando na encosta do monte, viu uma espécie de serafim, tendo seis asas tão fúlgidas quanto ígneas, do alto dos céus. Com voo célere pelo ar, chegando perto do homem de Deus, apareceu não só alado, mas crucificado. Ao ver isto, admirou-se e um misto de alegria e de dor encheu-lhe o espírito, enquanto sentia enorme alegria diante de Cristo que lhe aparecia, em aspecto afável tão familiarmente, bem como a visão cruel da crucifixão atravessava-lhe a alma como uma espada de dor compassiva. A visão desapareceu, depois de misterioso e familiar colóquio, e inflamou-o interiormente por seráfico ardor; marcou-lhe a carne externamente com uma efígie do Crucifixo, como se à força antecedente de liquefazer do fogo se seguisse a impressão de um sigilo. Logo, nas mãos e nos pés começaram a aparecer-lhe os sinais dos cravos, as cabeças dos quais apareceram na parte inferior das mãos e na superior dos pés e suas pontas estavam em sentido contrário. Também o lado direito, como se fosse traspassado por uma lança, apresentava rubra cicatriz que frequentemente vertia o sangue sagrado” (De Stigmatibus sacris, 1-4).
Um coração cheio de desejo
Dispomo-nos a refletir sobre o conhecido episódio da estigmatização de Francisco no alto do Monte Alverne. Começamos rezando salmos que falam do desejo e tomamos conhecimento dos fatos pela descrição de Boaventura. Francisco é homem do desejo. Conhecemos seu encontro com o Evangelho da missão na igrejinha de Nossa Senhora dos Anjos, cheio de entusiasmo e ardor. Quando se dá conta que sua vida será andar pelo mundo anunciando a Boa Nova, exclama: “É isso que quero, que busco, que desejo de todo o coração”. O desejo enche sua alma, desejo de colocar em prática o Evangelho, desejo de estar com Cristo, desejo que o Espírito continue visitando-o. Os biógrafos insistem em dizer que tudo o que Francisco ouve tem necessidade, desejo de colocar em prática imediatamente. Desejo se casa bem com ardor, fogo. Não foi sem razão que o santo é conhecido como o seráfico. Saraph em hebraico quer dizer queimar. A impetuosidade do desejo é a marca de sua vida. Desde a juventude sua cabeça está cheia de sonhos que busca concretizar. Aos poucos seus desejos vão sendo purificados. Passa a buscar não o servo, mas o Senhor, nas as glórias da guerra, do sucesso e do êxito, mas o Senhor marcadamente pobre. Quando se sentiu impelido a abraçar os leprosos vai experimentar uma reorientação radical de seus desejos. O amargo fica doce e o doce, amargo. Intensifica-se o ardor amoroso pelo Cristo que o seduz. Começa um processo de identificação do amigo com o Amigo.
A Escritura nos fala de não poucos personagens marcados pelo desejo: Elias, João Batista, zelosos e ardorosos, e o próprio Cristo, possuído de zelo pela causa do Pai. Os místicos afirmam que o desejo está na base da santidade. Ninguém se torna santo pela repetição da mesmice. Num incêndio de amor é que Francisco se consuma no momento da estigmatização. No final de sua vida todas as suas faculdades estão orientadas para Deus, o Santo, o único que opera maravilhas, o Bom e o Bem, o Forte o todo poderoso. Francisco foi o homem do desejo de Deus, do desejo de se ligar visceralmente ao Cristo pobre e sofredor até o momento em que deita nu na terra dura e nua.
O ardor e viço do desejo se opõem a uma vida marcada pela tibieza. Frei José Rodriguez Carballo, ex-Ministro Geral da OFM, pedia que os frades voltassem ao vigor da paixão: “Se hoje como ontem é urgente conhecer melhor o homem Jesus, reconhecido como Cristo e confessado como Senhor, não temos outro caminho para chegar a esse objetivo senão tomar nas mãos o livro das Escrituras, abrir-lhe as portas do coração e oferecer escuta e acolhida à Palavra. Se nosso coração arde de desejo de sair da insignificância e prostração de nossos cotidianos fracassos não temos outro caminho senão deixar-nos possuir pela Palavra e lhe dar amplo espaço em nossa vida. Ser possuído pela Palavra ou por Cristo é a mesma coisa. Se quisermos recriar e refundar nossa vida e missão, não nos resta outra saída senão abrir espaço à Palavra, relê-la, estuda-la meditá-la acolhê-la num coração vazio e pobre, sussurrá-la dia e noite, para então vivê-la e celebrá-la” (Guiados pela Palavra. Mendicantes de sentido, n.20).
Sentido dos estigmas de Francisco
Bernard Forthomme, frade menor francês, escreveu um pequeno e precioso livro sobre os estigmas. Não tenta dar explicações. A partir da fé vê que um ser interiormente possuído por Deus poderia ter os sinais da paixão do Senhor. Fala da redescoberta do corpo nos primeiros anos do século XIII e do empenho de Francisco em ver, escutar, tocar, os mistérios de Cristo. Antes de Francisco não se tem notícia de pessoas que tivessem os estigmas no corpo. O corpo não gozava de muito prestígio. Nem mesmo se demonstrava muita consideração para o corpo sacramental de Cristo na Eucaristia. A festa de Corpus Christi não existia antes de 1264. As hóstias consagradas após a celebração da eucaristia não eram tratadas com especial atenção. Na quinta-feira santa se falava mais da traição de Judas do que do Corpo de Cristo. Os fiéis se precipitavam em massa para venerar as relíquias sem fazer reverência diante do tabernáculo, palavra que foi introduzida no tempo do nascimento de Francisco. Ele manifesta esses desejo de “ver, ouvir e tocar” o Verbo de Deus. Pede que se faça um presépio vivo. Não bastava a palavra de Deus no decorrer da celebração. A palavra se encarnou em Francisco. Seu corpo fala, fala do amor de Deus.
A experiência do corpo Francisco viveu no contato e no cuidado dos leprosos, nesses marginalizados da sociedade. O Poverello não conseguia esconder sua repugnância por esses seres fétidos. Vai ter com eles, lava-os com suas mãos esses seres que carregam o “estigma” da lepra. Unindo-se aos leprosos cegos, e paralíticos, pessoas incapazes de ganhar a vida Francisco se estigmatiza socialmente. Forthomme tem uma expressão muito feliz: “Francisco é estigmatizável antes de ser estigmatizado. O aparecimento das chagas no corpo do Poverello teve um cortejo de preparações de um homem que uniu o Cristo ao corpo, ao palpável, aos corpos destroçados dos leprosos.
A oração de Francisco
Nesta altura de nossas reflexões deste retiro convém meditar numa súplica de Francisco conservada no livro das Considerações sobre o Estigmas. Um dia teria formulado uma oração neste teor: “Senhor, gostaria de ser digno de receber duas graças de vossa parte: experimentar em meu coração o amor que tiveste para com os homens e sentir a dor de tua acerbíssima paixão”. O amado procura o Amante. O santo vinha do Oriente, cansado, doente, constatando que seus irmãos pareciam esquecer a beleza do seguimento radical do Cristo. Perdiam o ardor dos começos. Sem amargura, Francisco sente vontade de tomar certa distância dos fatos e dos acontecimentos. O santo já tinha dores em todo o corpo. Estava tomado de febres loucas e quase não enxergava. Não podia mais suportar a luminosidade do Irmão Sol. E este homem que sobe até o Alverne. Francisco suplica amor e dor. Quer experimentar o amor do Senhor e se associar a seus sofrimentos. Durante anos, após sua conversão, ele foi tentando viver a intimidade nas grutas, nos caminhos, nos leprosos, nas igrejinhas abandonadas. Foi tendo “os mesmos sentimentos de Cristo Jesus”. Foi se abrasando no amor de Cristo. Foi refazendo em si os mistérios de Cristo.
Francisco não é mais dono de si
Bernard Forthomme, de maneira poética e forte, afirma que os estigmas são expressão do despojamento, da “não posse”. “Aquele que tem as mãos estigmatizadas não pode mais apropriar-se, agarrar pessoas ou coisas. Aquele cujos pés estão estigmatizados não têm mais condições de caminhar pela vida como conquistador e dominador. Aquele cujo lado foi tocado não consegue reter seus dons na caixa toráxica, nem mesmo seus ressentimentos e amargos remorsos. O pássaro da liberdade acha uma porta para voar na direção de montanhas e vales. O homem que mesmo em sua carne se considera diferente do proprietário passa a distribuir seus bens e até mesmo a natureza encontra seu esplendor inédito, sua fraternidade originária como o ardor divino que a provoca”. Deve-se ler e meditar os Louvores a Deus que Francisco compôs no Alverne e confiou a Frei Leão.
Os estigmas são uma forma de pregação
Os estigmas constituem uma pregação que se faz quando os lábios emudecem. Os estigmas são um foco para a palavra do silêncio, aquela que se submete a toda criatura para ser melhor ouvida. Os estigmas são os lábios e as pálpebras da carne que revelam e contemplam as profundezas quando tudo se cala, quando o meio ambiente ordena que se calar e fechar os olhos, onde reina o cegamento e não somente a cegueira. “Quando o contencioso com os frades torna-se mais forte, quando o destino da Fraternidade franciscana parece incerta, quando o Evangelho corre o risco de ser uma utopia senão um sonho generoso, então, Francisco, o homem novo, decide subir o monte Alverne e ai viver uma reforçada solidão. No silêncio da troca misteriosa há, face a face, troca de sofrimentos do amigo com o Amigo. Nada mais podemos dizer, mas levar estas coisas para o fundo do coração e meditar a respeito delas”. Francisco não é mais dono de si. Aos poucos, ao longo dos anos de sua vida, ele foi se despedindo de si mesmo, esvaziando-se e no espaço do vazio veio o êxtase. O amado ganha a força do Amor do Amante. Como ninguém e como nunca, Francisco podia dizer como Paulo: “Já não sou eu que vivo é Cristo que vive em mim”. Paul Claudel, num de seus poemas consagrados ao Poverello, evocou com rara felicidade essa não posse de si mesmo de Francisco: “Francisco tinha dado sua alma de tal forma que nem mesmo seu corpo conserva mais. Em vão pedir-se-lhe-ia uma explicação: nada mais tem a nos dizer. Ele é propriedade de alguém que não explica, mas plenifica. É todo inteiro doação, como um esposo ou um recém-nascido. Caminha na visão de todos os homens como alguém que está inebriado, como um esposo que geme e que sorri, cambaleante e ferido de uma glória da qual ele é o inexplicável consorte. Quem desce trôpego do Alverne e mostra chaga e cicatriz secretamente a Clara é Jesus com Francisco, fazendo uma única realidade, viva, sofredora e redentora” (cf. Éloi Leclerc, Francisco de Assis. O retorno ao Evangelho, Vozes, p. 109).
Nada mais é necessário dizer. O homem de Assis percorreu os caminhos do mundo fascinado pelo Cristo pobre ajustando as batidas do seu coração com aquelas de seu Coração. Francisco místico e transfigurado desce trôpego os caminhos do Alverne rumo a Assis. Mas carrega imagem do Amado. Isso é tudo. Isso basta. Quer recomeçar porque até aquele momento nada havia feito ou muito pouco.
Pobreza franciscana
A pobreza franciscana não é uma maneira de contestar o sistema da sociedade, nem uma estratégia apostólica, nem mesmo um ato de ascetismo. É antes de tudo um modo de andar na sequela de Cristo. É o caminho do Filho que nos revela a grandeza da altíssima pobreza. A primeira motivação do amor de Francisco pela Senhora pobreza é seu desejo de seguir o Cristo. A alma da pobreza franciscana é o amor, a imperiosa necessidade de se identificar com aquele que ele ama. Sua pobreza brota do amor que leva ao amor. Ele repete constantes vezes a seus irmãos envergonhados de pedir esmolas: “Bem amados irmãos, o Filho de Deus era mais nobre do que nós, por nós se fez pobre neste mundo. Por amor por ele escolhemos o caminho da pobreza” (2Celano 74). (Michel Hubaut, Chemins d’intériorité avec saint François, p. 188).
Oração final
Senhor,
impõe silêncio à minha oração
Envolve-me, Senhor, na riqueza divina
de teu silêncio,
plenitude capaz
de tudo preencher em minha alma.
Faze com que se cale em mim tudo o que não seja Tu,
o que não for tua presença
toda pura, toda solitária, toda pacificadora.
Impõe silêncio aos meus desejos,
a meus caprichos, a meus sonhos de evasão,
à violência de minhas paixões.
Cobre com teu silêncio a voz
de minhas reivindicações, de minhas queixas.
Impregna com teu silêncio
minha natureza tão impaciente
querendo sempre falar, inclinada à ação exterior e ruidosa.
Impõe mesmo teu silêncio
à minha oração, para que ela seja puro elã para Ti.
Faze descer teu silêncio
até o fundo de meu ser e faze com que esse silêncio
suba até a Ti, como homenagem de amor.
Textos:
1.Bernard Forthomme,OFM – Par excès d’amour – Les stigmates de François d’Assise – Éditions Franciscaines, Paris 2004, 30 páginas
2. François Fine, OFM -“Les stigmes” In Évangile Aujourd’hui, n. 116 (2007), p. 29-40
Outubro
VAMOS COMEÇAR TUDO DE NOVO!
Francisco de Assis, o fascinante
Francisco “ardia em um desejo enorme em voltar à humildade do começo, e seu amor era tão grande e alegremente esperançoso, que queria reduzir seu corpo, à servidão antiga, embora já estivesse no limite de suas forças. Afastava de si todos os obstáculos de preocupações e freava de uma vez a agitação de todas as solicitudes. Precisando moderar seu rigor antigo por causa da doença, dizia: ‘Vamos começar a servir a Deus, meus irmãos, porque até agora fizemos pouco ou nada’” (1Celano 103).
Frei Almir Ribeiro Guimarães
freialmir@gmail.com
Absorvei, Senhor, eu vos suplico o meu espírito
e pela suave e ardente força de vosso amor,
desafeiçoai-me de todas as coisas
que debaixo do céu existem
a fim de que eu possa morrer por vosso amor,
ó Deus, que por meu amor vos dignastes morrer
(Oração de São Francisco).
Aquele que faz coisas novas
Sim, vou criar um novo céu e uma nova terra; já não haverá lembrança do que se passou, nisto já não se pensará. Antes, exultai e alegrai-vos sem fim por aquilo que eu crio (…). Vou rejubilar-me por Jerusalém e alegrar-me por meu povo; nele não se ouvirão mais choros nem gritos de dor, não haverá crianças que vivam apenas uns dias, nem anciãos que não completem seus dias. Pois será jovem quem morrer aos cem anos e quem não chegar aos cem anos será como um amaldiçoado” (Isaías 65, 17.20).
Que novo anda Deus fazendo no mundo, na Igreja e em sua vida?
O Deus dos pequeninos e simples
Texto proclamado na Festa do Seráfico Pai
Naquele tempo disse Jesus: “Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelastes aos pequeninos. Sim, Pai, porque assim foi de teu agrado. Tudo me foi entregue pelo Pai. De modo quem ninguém conhece o Filho senão o Pai e ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho quiser revelar. Vinde a mim todos vós, fatigados es sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre os ombros meu jogo e aprendei de mim que sou manso e humilde de coração e achareis descanso para vossas almas. Pois meu jugo é suave é meu peso é leve” (Mateus 11,25-30).
Como e por que Francisco pode receber as revelações do Senhor?
“Necessário mudar a vida, mudar tudo; mudar tudo não quer dizer tudo destruir, mas salvar tudo” ( Maurice Bellet)
Eis-me aqui: imbecil, ignorante diante de coisas desconhecidas (Georges Bernanos).
“Francisco, ‘o homem do século futuro’. Assim o chamava o seu primeiro biógrafo. Quanto a nós, homens de um século envelhecido que conheceu campos de concentração e de mortes e que inventou a bomba atômica, duvidamos se ainda existe um século futuro. Por vezes, o medo nos gela. Diz-se que nos tempos de Francisco apareceu “um lobo grandíssimo, terrível e feroz, o qual não somente devorava os animais, mas também os homens, de modo que todos os citadinos estavam tomados de grande medo” (Fior, 25). Aprendemos a conhecer melhor este lobo, que é de todos os tempos. Não corre nas florestas, mas mora em cada um de nós e em cada grupo humano, pronto a dilacerar e a devorar. Quem hoje nos livrará deste lobo? Quem for capaz será verdadeiramente o homem do século futuro. Avançará sem medo pelos caminhos da história e milhares de irmãos o acompanharão. Atrás dele caminhará, livre e alegre, o grandíssimo lobo domesticado” (Éloi Leclerc, in Francisco de Assis. Retorno ao Evangelho, p. 128)
Nosso Retiro Mensal foge um pouco do esquema no qual foram elaborados os textos precedentes. Queremos fazer uma série de citações a respeito de Francisco, esse ser simples que recebeu as confidências do Senhor e esse homem novo que nos ajuda a buscar a novidade de vida respondendo ao convite do Papa Francisco. Não podemos trilhar caminhos batidos. Francisco, simples e serenamente humilde, Francisco é aquele que cria o novo em sua vida, que não caminha por trilhas batidas, o homem de um novo século. Atrás dos “homens novos” dos tempo atuais segue o lobo domesticado pela vida de homens parecidos com Francisco de Assis.
Francisco, se abre à doçura de Deus: “Francisco não foi de início um modelo de doçura. Suas ambições o havia atirado à guerra: à guerra voluntária como caminho para a glória. Mas ele encontrou Cristo e, finalmente, se o universo se transfigurou aos seus olhos foi porque o seu coração se abriu à grande doçura de Deus. Francisco soube domesticar sua própria agressividade. Converteu o lobo, aquele lobo que não vive apenas nas florestas, mas que se oculta em cada um de nós… E o lobo feroz se tornou fraternal. Aquela força de combate e de crueldade metamorfoseou-se numa energia de amor, numa força criadora de comunhão entre os seres” (E.Leclerc, O sol nasce em Assis, Vozes, p. 95).
Francisco, homem do século futuro – Celano: “Ninguém é capaz de compreender quanto se comovia quando pronunciava vosso nome, Senhor santo. Parecia um outro homem, um homem do outro mundo, todo cheio de júbilo e do mais puro prazer” (1Celano 82). O Dicionário Franciscano insiste no novo em Francisco: “Francisco parecia aos seus contemporâneos um homem que, de certa maneira, voltou às suas origens e é também o homem dos últimos tempos. Sua presença era como de uma nova luz enviada do céu para dissipar as trevas do mal. Ele é “o novo evangelista destes últimos tempos que mostrou o caminho e a verdade do Filho de Deus. Com ele, o mundo vive uma nova juventude, a Igreja é “renovada”, os cristãos adquirem o espírito novo (1Cel 89). É realmente notável esse sentido de novidade que o biógrafo coloca em destaque. rata-se da novidade da vida futura já presente e vivida nele: é sinal bem visível em sua pessoa do caráter efêmero deste mundo e mostra tangível da bem-aventurada realidade escatológica deste novo mundo” (Dicionário Franciscano, Leonardo Izzo, p. 775).
O cristianismo vivo que reina no mundo proveio de Francisco – Transcrevo reflexões de Éloi Leclerc a respeito de Francisco que quase nos parecem exageradas: “A propósito de Francisco de Assis, escreve o historiador Georges Duby na obra Le Temps des cathédrales: “De parceria com Cristo foi Francisco o grande herói da história cristã. Pode-se afirmar sem exagero que o que hoje resta de cristianismo vivo provém diretamente dele ( Le Temps des cathédrales, Gallimard, 1976, p. 170). Poderá parecer exagerada esta opinião. Mas sem qualquer exagero é legítimo pensar e dizer com P. Lippert que “se Deus algum dia conceder à Igreja a ordem religiosa do futuro, para a qual se já se voltam muitos olhares, essa ordem apresentará sem dúvida os traços espirituais de Francisco de Assis (P. Lippert, La Bonté, Aubier 1946, p. 120). (E. Leclerc, Caminho de Contemplação, pro-manuscripto, p.43).
Francisco leva o homem a crer na bondade divina – “Francisco é dessas figuras da qual a humanidade sempre sentirá orgulho. Suas qualidades forçam a simpatia; seus defeitos, se os tem, são atraentes; sua santidade nada tem de exotérico, afetado ou ameaçador, seus dons naturais suscitam em geral admiração; seus ensinamentos exalam tal frescor, poesia e serenidade, que mesmo espíritos embotados podem encontrar neles razões para amar a vida e crer na bondade divina” (Omer Englebert, Vida de São Francisco de Assis. Trad. Frei Adelino Pilonetto. EST Edições, Porto Alegre, 2004, p.9).
Francisco, original e genial – Francisco de Assis é personagem original e genial, situado entre 1182, data de seu nascimento, e 1226, ano de sua morte. A respeito de nenhum santo tanto se escreveu como a seu respeito, na frente de todos os textos da literatura religiosa. Por ele se interessaram historiadores, literatos, teólogos, sociólogos, filósofos, artistas, cineastas, etc. Na lista de admiradores seus estão católicos, protestantes, ortodoxos, heterodoxos, racionalistas, panteístas e até ateus devotos. Conservadores e reformistas, tradicionalistas, revolucionários, místicos e ecologistas nele se apoiam para justificar teses e antíteses, tradições ou contradições. Trata-se de um personagem a respeito do qual muito se falou, precisamente este que se propôs a pouco falar e pouco escrever. Descobrimos esse personagem não só em seus escritos e palavras, mas também em suas obras, seus gestos, atitudes e insinuações, inclusive por seus silêncios e provocações. Francisco de Assis é um santo com inumeráveis e contrastantes interpretações. Talvez essa riqueza de perspectivas oculte a autêntica realidade de sua existência e cause um certo desconcerto. Nisto reside a pluralidade de famílias que disputam sua autenticidade. É o santo mais interpreta e, por isso, o santo mais desfigurado, convertendo-se, assim, num santo enigmático. O Poverello impacta por sua simpatia, simplicidade, humanidade e bondade, inclusive por suas contradições. Evoca serenidade, humanidade e poesia. Cativa por sua nobreza, ternura e desinteresse. Soube sincronizar admiravelmente santidade com poesia, canto com sofrimento, alegria com pobreza, amabilidade com austeridade, Evangelho com humanidade, imanência com transcendência, mística com ação, religiões com os problemas mais contundentes da vida. É um cavaleiro da fé, que caminha sem duplicidade nem arrogância, mas com audácia e decisão querendo atingir os fins a que se propôs. Toma distância das mentiras piedosas, desconhece os pensamentos medíocres. Não suporta a vulgaridade, nada tem de cumplicidade com subterfúgios fáceis nem melindres oportunistas. Sabe respeitar a todos os que destacam sem ser um barato bajulador. Não precisa bajular a ninguém. Despreza os bens temporais e não tem nenhuma pretensão de grandeza nem ânsia de galgar postos grandiosos da sociedade ou da Igreja porque acredita que a própria existência é graça e nobreza. A maior que lhe pode ser tributada é realçar sua magnanimidade. Foge do servilismo, embora sirva a todos. Desmascara as lisonjas dos aduladores e servis. Consegue ser totalmente livre sem fazer concessões ao egoísmo e à extravagância” (José Antonio Merino OFM, Francisco de Asís, santo enigmático e provocador, Encarte, Vida Nueva, n. 2663).
Esse ‘revolucionário’ Francisco – Chesterton escreveu uma apaixonante biografia sobre o santo. Dele retenho, por necessidade de brevidade, uns poucos parágrafos. “Não é possível ler racionalmente a história de um homem apresentado como espelho de Cristo sem compreender sua fase final como Homem das Dores e, sem ao menos apreciar artisticamente a propriedade de ele ter recebido, numa nuvem de mistério e de isolamento, e não provocadas por mão humana, as feridas sempre abertas que curam o mundo” (…). A vinda de São Francisco foi como o nascimento de uma criança numa casa escura que tivesse acabado por uma maldição; uma criança que cresce sem ter consciência da tragédia e que a vence pela inocência. Nele, é preciso não só inocência como desconhecimento. É da essência da história que ele se jogue na grama verde sem ver se ela esconde um cadáver ou que suba numa macieira sem saber que ela é a forca de um suicida. Foi essa anistia e reconciliação que o frescor do espírito franciscano trouxe ao mundo” (São Francisco de Assis. A Espiritualidade da Paz, Ediouro, 2001, p. 18 e 171).
Francisco olha o mundo com olhos de criança – “Hoje como outrora, os Pobres de Javé veem aparecer o Reino de Deus naquilo que há de mais frágil no mundo: o olhar duma criança: “Foi nos dado um filho…”: este oráculo do profeta Isaías continua a ser válido, pois encerra o futuro do mundo. Os viandantes da noite, os desorientados das sombras, viram surgir uma luz: e esse arrebol de aurora brilha no olhar de uma criança. Maravilhoso paradoxo: uma criança, um ser indefeso, tão fraco que nem é capaz de falar, nem sequer sabe falar e é ela que nos vem transmitir a Palavra na sua plenitude! Nos seus ombros minúsculos e frágeis repousa a onipotência! A sua fragilidade, para quem saiba entendê-la, é princípio, criação, novidade imprevisível. No seu olhar brilha a infância divina. É ela, essa criança, a grande comunicação de Deus ao mundo. Tal como o Criador, também o homem, enfim, a quis desde o princípio. Diz-se que foi o Pobre de Assis o inventor do presépio de Natal. Pelo menos contribuiu para divulgar esta prática devota. Mas o mais importante é o fato de ele ter visto e ter feito ver com outros olhos o acontecimento do Natal: com um coração de pobre e com olhos de criança. “Eu quereria ver com os meus próprios olhos, dizia ele, o Menino, tal como ele era, deitado numa manjedoura, a dormir sobre o feno, entre um boi e um jumento..” Era uma ideia nova e infantil por um lado, mas por outro lado maravilhosa e genial, como só os poetas a costumam ter: a de ver e fazer ver, com olhos de criança, o próprio Deus no seu gesto de “ternura”. Era isso o mais importante para o futuro do mundo. Numa sociedade de mercadores, dominada pela paixão do dinheiro, tornava-se urgente dar a ver a toda gente a gratuidade de Deus. Num mundo onde os clérigos sonhavam com a teocracia, era urgente mostrar a todos a humildade de Deus. E num tempo de cruzadas e guerras santa, nada mais necessário do que fazer ver a ternura de Deus. Enquanto a cristandade, ufana de si mesma, sonhava em celebrar a sua própria epifania, erguendo cada vez mais altas para o céu as torres e flechas das catedrais, como um Te Deum flamejante, Francisco de Assis e seus primeiros companheiros, contemplavam, na penumbra de um estábulo, Deus a vir ao mundo na fragilidade de uma criança. Chegavam assim à fonte maravilhosa. E abrindo-se a esta comunicação com Deus, transformavam-se naquilo que contemplavam: nasciam para a vida divina. E em alegria criadora restituíam a Deus o mundo, a humanidade e o próprio Deus” ( E. Leclerc, Caminho de Contemplação, op.cit.p. 53-54).
Obs.: Seria conveniente refletir em grupo sobre estes textos e buscar neles os traços do homem novo
Francisco de minha vida
Francisco,
pequeno e grande Francisco,
tu continuas vivo entre nós.
Tu és o meu irmão,
meu irmão mais velho,
meu irmão modelo,
meu irmão da roupa marrom,
das chagas douradas na mão,
apaixonado pelo Senhor Jesus.
Gosto de tem contemplar
erguendo os braços ébrios de amor,
cantando os louvores do Altíssimo
e Grande Senhor!
Acompanho-te pelas ruelas de Assis
com o irmão sol que te aquece o rosto,
pegando nas mãos a irmãzinha água
tão casta e tão transparente,
pisando na terra mãe
que produz variedades de flores e frutos.
Gosto de ver teu olhar acompanhar os irmãos,
os irmãos leprosos, os irmãos que te seguem,
os irmãos que são filhos do Altíssimo.
Espreito-te ao jogares tuas roupas
nas mãos de teu pai e proclamares livremente
que teu Pai está nos céus.
Aplaudo-te quando dizes
que os teus seguidores serão menores
e nunca hão de se alegrar
a não ser com o ultimo de todos os lugares.
Vejo-te percorrendo ruas e ruelas
da meiga Assis dizendo a todos
que o Amor não é amado.
Aprecio a tua coragem de partir sem segurança,
sem sacola e sem dinheiro
para dizer a todos os homens
que chegou o Reino novo
do Filho da Virgem Maria.
Recolho-me num cantinho
e vejo que sais da contemplação
com as chagas de Cristo Jesus
nas mãos, nos pés e coração.
Morro e renasço contigo
quando cantas o salmo que fala que é preciso
que Deus nos tire desta prisão.
Francisco de ontem e de sempre,
Francisco da roupa marrom,
Francisco de minha vida!
Novembro
Francisco de Assis, homem reconciliado e arauto da paz
O tema do retiro mensal deste início de mês é o da reconciliação e da paz segundo o espírito de Francisco de Assis. O assunto é vastíssimo e complexo. No contexto de um retiro espiritual não cabe fazer um tratado em torno da guerra e paz, nem elencar todas as manifestações de violência que vivemos em nossos dias. Queremos apenas mostrar Francisco como um ser reconciliado. O Altíssimo lhe dá irmãos para que sejam apóstolos da paz e do bem. De alguma forma estas reflexões nos ajudam a ingressar nas plagas do advento, elas que nos levam até o presépio do Menino das Palhas que é o Príncipe da Paz. Trata-se de um texto destinado ao retiro e não de um tratado de doutrina franciscana da paz.
Frei Almir Ribeiro Guimarães
freialmir@gmail.com
Jesus, Príncipe da paz e Filho do Deus vivo,
faze de nós artífices da paz, em todo tempo e em todo lugar;
que possamos bendizer teu Nome santíssimo
com um coração pacificado;
que em todo tempo invoquemos teu socorro poderoso.
Jesus, nosso Deus de quem recebemos a paz,
enche-nos de tua graça
a fim de que passemos cada dia de nossa vida
com uma consciência em paz
e que louvemos e glorifiquemos tua bondade infinita
com uma alma cada vez mais pacificada.
Jesus, Senhor da paz,
dá-nos conformarmo-nos com tua vontade
de toda nossa alma e de toda o nosso coração.
Desta maneira seremos agradáveis à tua grandeza;
assim entraremos um dia no repouso de nosso Deus e Pai,
o lugar da paz que nada pode perturbar,
na glória eterna do reino celeste.
Dyonissios Pharazoulis
Pregador grego, 1882-1920
Isaías 9, 1.5-6
O povo que andava nas trevas viu uma grande luz. Sobre os que habitavam a terra da sombra brilhou uma luz (…). Porque nasceu para nós um menino, um filho nos foi dado. Ele tem a soberania sobre seus ombros e será chamado: Conselheiro admirável, Deus forte, Pai para sempre, Príncipe da paz. Ele terá uma soberania ampla e uma paz sem limites sobre o trono de Davi e sobre seu reino, para estabelecê-lo e firmá-lo no direito e na justiça, desde agora e para sempre. O zelo do Senhor Todo-poderoso fará isto.
Isaías 11, 6-9
Então o lobo será hóspede do cordeiro e o leopardo se deitará com o cabrito. O bezerro, o leãozinho e o animal cevado estarão juntos e um menino os conduzirá. A vaca e o urso pastarão lado a lado; juntas se deitarão as suas crias; e o leão comerá capim com o boi. A criança de peito brincará junto à toca da víbora, a criança desmamada porá a mão na cova da serpente. Não se fará mal nem destruição em todo o meu santo monte, porque a terra estará cheia do conhecimento do Senhor como as águas que enchem o mar.
João 14, 27-31
Naquele tempo, disse Jesus a seus discípulos: “Deixo-vos a paz, eu vos dou a minha paz. Eu vo-la dou não como o mundo a dá. Não fiqueis perturbado nem tenhais medo! Ouvistes o que eu vos disse; eu vou mas volto para vós. Se me amásseis, certamente, haveríeis de alegrar-vos. Porque eu vou para junto do Pai, e o Pai é maior do que eu. Disse-vos estas coisas, antes que aconteçam, para que creiais quando acontecerem. Já não falarei muito convosco, porque vem o príncipe deste mundo. Ele não tem nenhum poder sobre mim. Mas o mundo deve saber que eu amo o Pai e faço o que o Pai me ordenou”.
João 20, 19-23
Na tarde do primeiro dia da semana, estando trancadas as portas do lugar onde estavam os discípulos, por medo dos judeus, Jesus chegou e colocou-se no meio deles e disse: “A paz esteja convosco”. Dito isso, mostrou-lhes as mãos e o lado. Os discípulos se alegraram em ver o Senhor. Jesus disse-lhes de novo: “A paz esteja convosco. Como o Pai me enviou, assim também eu vos envio”. Após essas palavras soprou sobre eles e disse: “Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados serão perdoados. A quem não perdoardes os pecados não serão perdoados”.
Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus (Mt 5,9).
São verdadeiramente pacíficos aqueles que, por tudo o que sofrem neste mundo, conservam a paz na alma e no corpo por amor de Nosso Senhor Jesus Cristo ( Adm XV)
Refletindo:
O que mais chama sua atenção nos textos acima?
Refletir sobre o significado do texto de Isaías em que, entre outras afirmações, fala de uma criança com a mão da toca da víbora. O que todo o texto pode bem querer dizer?
Segundo os textos transcritos o que seria a paz? Há pistas de como concretizá-la?
Neste mundo de violência, de guerras, de chacinas, de sequestros, de torturas o que nos dizem estes textos?
Precisões dos termos
(cf. K. Esser, Exortações de Francisco de Assis, Braga, p. 199-209)
O que é a paz?
Os doutores da Igreja sempre afirmaram que a paz é a tranquilidade da ordem. Em última análise, a paz é aquela quietude que se mantém com a conservação e tutela da ordem que Deus nos deu. Mas onde quer que esta ordem entre Deus e o homem for destruída, aí existe a discórdia, a falta de quietude, a angústia e o tormento. Por isso, o pecado é a causa mais profunda da discórdia mais perversa e mortífera. João XXIII, com razão, escrevia em Pacem in terris, 1: “A paz sobre a terra, pela qual têm ansiado os homens de todos os tempos, não pode ser fundada e assegurada senão quando a ordem estabelecida por Deus for conscienciosamente respeitada”. Isso vale, de modo especial no relacionamento entre as pessoas. Onde quer que as pessoas não se preocupem desta ordem aí irrompe a discórdia, entram os litígios e as contendas. O homem se torna lobo para o homem, inimigo do outro, um povo contra o outro.
O que destrói a paz?
Muitas respostas podem ser dadas a esta pergunta. Todas elas, no entanto, têm como origem a mesma raiz: o egoísmo. Pode ser egoísmo individual, como egoísmo de um grupo. Do egoísmo nasce a cobiça. Se origina a ânsia exagerada pelo poder. Essas são consequências do pecado. Quando se quer ter mais do que os outros surgem as querelas e as guerras. Os dois grandes inimigos da paz são a cobiça e ânsia pelo poder.
Quem dá a paz?
Os homens, seguindo os próprios instintos, não podem alcançar a paz. O egoísmo como consequência do pecado original está tão fortemente arraigado nos homens, tão viva e tão profundamente, que não podem dominá-lo. A história da humanidade, desde Caim e Abel, é a história das funestas consequências do pecado do egoísmo. Por isso, foi preciso que o próprio Deus viesse restabelecer de novo a paz entre ele e os homens e a paz entre os próprios homens. Esta maravilha do amor divino realizou-se na Encarnação de Cristo. Por isso, os anjos cantaram no seu nascimento: “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade” (cf Lc 2, 10). Enquanto o egoísmo pecaminoso do homem leva à discórdia e angústia mediante a avareza e à ânsia desordenada pelo poder, o amor desinteressado de Cristo nos traz a paz mediante a pobreza e a humildade. Por isso, a Igreja no Natal fala do Rex Pacificus, rei portador da paz. Ele é nossa paz (Ef 2,14).
Francisco: da violência natural à paz fraterna
Francisco viveu num século de violência. A guerra fazia estragos em todas as camadas da sociedade: entre o Papa e o Imperador, entre a cristandade do ocidente que sonhava reconquistar o reino latino de Jerusalém e o Islão, entre a antiga nobreza e a burguesia nascente, entre as jovens cidades rivais na Itália. Nesse contexto, Francisco não era pessoalmente um homem de paz. Foi mesmo um lutador, um combatente. Em sua juventude sonha com batalhas e conquistas. Seu desejo é fazer brilhante carreira militar. Antes de converter-se me arauto da paz combateu com armas na mão e certamente viveu a experiência das barricadas. Por natureza não foi um pacífico.
Em seus escritos vemos, aos poucos, erguer-se um homem de paz que vai se fazendo pela total desapropriação de si mesmo enraizada no amor de Cristo, capaz de enfrentar provações e sofrimentos sem perder a paz da alma e do corpo. Evidente que tudo isso é fruto de longo trabalho de conversão. Se a guerra nasce do egoísmo, a paz brota da conversão.
As intervenções pessoais e locais de Francisco em favor da paz não podem dissociar-se de um grande movimento fraterno que ele se esforçou em criar. A paz franciscana tem um nome e um rosto: a fraternidade, como portadora de esperança para toda a humanidade. Muitos jovens, milhares mesmo, aderiram a este movimento. Aderiam à vida de pobreza porque vislumbravam no final do caminho a fraternidade.
Desnecessário lembrar que a transformação de Francisco em homem de paz se dá quando consegue se aproximar da miséria do leproso e beijar esse irmão cristão..
Francisco, fraternidade e paz
A ideia de fraternidade vagava no ar no final do século XII e começo do século XIII. Ela havia feito com que o povo simples das cidades, junto com os ricos comerciantes rechaçassem o poder senhorial e o sistema de vassalagem na esperança do surgimento de uma sociedade mais livre e mais fraterna. Os homens da época queriam deixar de serem vassalos e passarem a ser “sócios”, “associados”. Esta grande aspiração popular havia procurado se plasmar em comum. Houve decepção. O dinheiro e o poder trocaram de mãos. A nova classe foi sendo tomada pelo vontade de poder.
O mérito de Francisco consistiu em fazer surgir um novo tipo de comunidade, à luz do Evangelho e respondendo às aspirações de sua época. Não quis copiar o modelo monástico por causa de suas posses e seu modelo feudal. “Depois que o Senhor me deu irmãos – Francisco escreve em seu Testamento – ninguém me mostrou o que eu devia fazer, mas o Altíssimo mesmo me revelou que eu devia viver segundo a forma do Santo Evangelho (Test 15). Francisco cria a fraternidade. Repudia-se a ideia do paternalismo abacial e senhorial. “Nenhum dos irmãos – escreve na Regra de 1221 – tenha poder e domínio e menos ainda entre os irmãos (RNB 5,9). “Ninguém seja chamado de prior” (RNB 6,6). Nem dominadores, nem dominados: todos irmãos e cada um a serviço de todos os demais. Será que há outro fundamento para a paz?
Quando olhamos a violência no mundo atual fica claro que ela tem sua origem na falta de respeito carinhoso para com o irmão, no desejo de posse, de domínio de pessoa sobre pessoa, de grupos sobre grupo: as terríveis guerras mundiais com milhões de mortes, cortejo de dores e dramas, campos de concentração; a opressão dos grandes sobre os pequenos em todos os cantos da terra; a violência no trânsito, no trato entre as pessoas, na falta de respeito pelas diferenças, na tentativa de nivelar tudo a partir das ideias de uns, no fanatismo religioso, na cruel indiferença de uns para com os outros. O amor fraterno é a única fonte de paz entre os homens.
A palavra irmão , recuperada em seu vigor evangélico, se torna nome próprio dos membros da nova comunidade, nome com o qual os seguidores de Francisco se distinguem dos monges e dos cônegos. Francisco e seus irmãos conseguem viver o que as comunas não haviam logrado levar a cabo. Homens de todas as regiões e de todas as condições sociais foram aprendendo a viver juntos, livres de qualquer relação de dominação, fraternalmente associados. Francisco, com a força da fraternidade, escreve página viva do evangelho da paz.
Francisco roga que os irmãos se estimem carinhosamente
Não se trata apenas de uma convivência pacífica entre os irmãos isenta do desejo de dominação. Francisco queria os relacionamentos entre os irmãos fossem calorosos, afetuosos, serviçais e impregnados de familiaridade. “E onde estão e onde quer que se encontrarem os irmãos, mostrem-se mutuamente familiares entre si. E com confiança um manifestem ao outro a sua necessidade, porque, se uma mãe nutre e ama seu filho (cf. 1Ts 2,7) carnal quando mais diligentemente não deve cada um amar e nutrir seu irmão espiritual? “ ( cf. RB 6, 8-9).
Missão de paz
Ainda não eram dez os primeiros irmãos e já Francisco os envia dois a dois para anunciar a paz: “Ide, caríssimos dois a dois, por todas as partes do mundo, anunciando aos homens a paz e a penitência para a remissão dos pecados; sede pacientes na tribulação, confiando que o Senhor vai cumpri o que propôs e prometeu” (1Celano 29).
“O Senhor revelou-me que disséssemos a seguinte saudação: O Senhor te dê a paz” (Testamento 23). Francisco imagina sua missão e de seus irmãos como uma vasta campanha de paz. “Em todas as pregações, antes de propor aos ouvintes a palavra de Deus, invocava a paz dizendo: “O Senhor vos dê a paz”. Anunciava-a sempre a homens e mulheres, aos que encontrava e aos que lhe iam ao encontro. Desta forma, muitos que tinham desprezado a paz, como também a salvação, pela cooperação do Senhor abraçaram a paz de todo o coração, fazendo-se também eles filhos da paz, desejosos da salvação eterna” (1Celano 23).
Os irmãos proclamam a paz não somente com um anúncio verbal. Anunciam-na, sobretudo, mediante seu comportamento, através da qualidade de relações mútuas e com as pessoas de fora: “Aconselho, admoesto e exorto a meus irmãos no Senhor Jesus Cristo que, quando vão pelo mundo, não discutam nem alterquem com palavras, nem julguem os outros, mas sejam mansos, pacíficos e modestos, brandos e humildes, falando a todos honestamente como convém” (Regra bulada, 3, 11-12. Na Regra de 1221 já havia escrito: “E guardem-se os irmãos para não se caluniarem nem porfiarem com palavras… Nem briguem entre si nem com os outros mas procurem responder humildemente…E sejam modestos mostrando mansidão” (Regra não bulada 11, 1-3.9).
“Francisco é um homem reconciliado porque soube fazer, quanto foi humanamente possível, a unidade em si; porque soube aceder à simplicidade despojando-se do orgulho, de seu narcisismos, vanglória e preocupações inúteis. Em suas Exortações ele abre o mesmo caminho para seus irmãos. Não tornou-se um homem reconciliado como que magicamente. Foi preciso tempo. Um tal despojamento não pode ser realizado à força de murro. Depois de um longo combate e através de momentos difíceis, foi se entregando a Deus, a seus irmãos e aos acontecimentos. Somente no final de sua vida, no momento da estigmatização e do Cântico das Criaturas, quer dizer, um ou dois anos de morrer que se tornou um homem pacificado e sua morte nua, sobre a terra nua é o símbolo mais forte de tal pacificação” (Antonin Alis, OFMCap).
Fraternizar com todos os homens, com todas as criaturas, tal como fazia Francisco de Assis, é optar, à luz da Reconciliação, por uma visão do mundo em que prevalece a conciliação sobre a divisão; é abrir-se, para além de todas as separações e soledades, a um universo de diálogo e de comunhão num clima de perdão e de reconciliação.
Vale a pena refletir nestas linhas de Antonin Alis, OFMCap, em artigo publicado na Revista Evangile Aujourd’hui, n. 211, p. 34-35: “Antes de morrer Francisco pediu a seus irmãos que o colocassem nu sobre a terra nua. Certamente assim fizera para imitar o Cristo. Podemos, no entanto, ler neste gesto um sinal de que o Poverello estava reconciliado ao mesmo tempo consigo mesmo, particularmente com seu corpo, com a terra, com os outros e, evidentemente com Deus. Nem sempre Francisco conviveu bem com seu corpo. Não demonstrou ternura para com seu “irmão burro”. Levou vida de penitência e de ascese. Sua existência se constituiu num prolongado jejum e suas noites eram antes consagradas à oração do que empregadas para dormir. De fato, o pedido de ser colocado nu sobre a terra nua pode ser interpretado como um último gesto de penitência e ascese. No entanto, creio pessoalmente que também aí se pode ver um gesto de reconciliação com seu corpo. O assunto nos faz pensar no livro do Gênesis, mais precisamente na nudez de Adão e Eva antes do pecado. Francisco não tem mais vergonha deste corpo tantas vezes desprezado. Mostra-se nu não por exibicionismo mas para significar que o homem é belo em sua nudez. Foi a vergonha que fez com que Adão e Eva se cobrissem com folhas de parreira. Antes do pecado não tinham vergonha de seu corpo. Da mesma forma, no momento de sua morte, Francisco sente-se ligado ao primeiro homem e à primeira mulher em sua inocência original. Coloca-se nu sobre a terra nua. A terra, irmã nossa mãe a terra que nos sustenta e alimenta, canta Francisco no Cântico do Irmão Sol. Volta novamente ao relato da criação: o homem modelado por Deus da terra, o homem tirado por Deus da terra. Somos seres queridos por Deus desta maneira. Nu sobre a terra nua Francisco declara que assume suas origens e que está plenamente reconciliado com elas”.
Michel Hubaut (Chemins d’intériorité avec saint François, Ed. Franciscaines 2012): “Francisco acredita na contagiante irradiação dos corações “pacificados”. Para ele é sempre grande vergonha guardar silêncio quando a paz é ameaçada. Calar-se-ia ele hoje diante de tantos conflitos? Certamente que não! Haveria de escrever a todos os responsáveis em todos os escalões. Iria bater à porta do poder sem receio de ser despedido como um sonhador. A seu modo haveria de apoiar os não-violentos e todos os pacifistas. Francisco se alegraria em ver cada vez mais os irmãos cristãos romperem um silêncio de cumplicidade e se engajarem nesta missão de paz (Anistia internacional, Franciscanos internacional, movimentos locais), escrevendo a deputados, sensíveis aos votos de seus eleitores (…). Nossa vergonha, diria Francisco, é nosso silêncio indiferente. A paz se tornou missão urgente para se construir a fraternidade universal, para realizar o projeto de Deus em nossa terra” (p. 215).
Questões:
Nossa experiência concreta de vida franciscana fala que estamos construindo a paz? Para dentro e para fora?
Como situar neste contexto, arrependimento, necessidade de perdão e sacramento da reconciliação?
Quem seria realmente pessoa reconciliada
Meu Senhor e meu Deus,
Pai de infinita misericórdia,
Tu que com ternura e delicadeza
nos guardas em tuas entranhas
e nos dás a Paz:
Dá-nos a graça de acolher tua Paz,
de reconhecer em meu coração
essa luz infinita
de amar meus irmãos de verdade,
em minha família, no trabalho,
no metrô e na rua,
de acolher cada um
e de descobrir um bem-amado filho teu.
Dá-me est louca confiança de pedir
pelo advento de tua Paz.
Que, ao longo do caminho, minha oração se uma
às preces desses que ficaram firmes na Esperança,
quando o horror dos campos de concentração
quase os enlouquecia.
Que reine a paz em meu coração e nos corações
e que toda barreira caia como os muros de Jericó.
Dá-me a força de trabalhar
com coração ardoroso
para o advento de tua Paz.
Possa eu ser um aguerrido
e alegre operário de tua Paz
travando a cada dia
o combate para tua maior glória.
Assim, creio que todos juntos,
com o coração exultando de alegria,
um como Tu e teu Filho são um,
subiremos rumo à Jerusalém celeste
e viveremos em tua presença.
Irmã Clara-Maria
Prier n. 17
Dezembro de 1992
Dezembro
QUANDO O CÉU DECIDE CONVERSAR COM A TERRA
Um recém-nascido envolvido em faixas e deitado numa manjedoura
Nosso Retiro Mensal de dezembro aborda o tema do Natal de Deus na terra dos homens. Cada vez que somos convidados a refletir sobre este tema corremos o risco de repetir frases e expressões mais do que batidas e gastas. Decidimos transcrever alguns textos que podem nos levar a dizer que estamos profundamente reconhecidos com a decisão do Altíssimo de vir ter conosco. Esse momento de reflexão e de retiro pretende ser contemplação e admiração diante de Deus que quer conversar com a terra. Tudo se concentra numa criança envolvida em panos e que precisa de todos os cuidados possíveis e imagináveis.
Frei Almir Ribeiro Guimarães
freialmir@gmail.com
DEUS VEM À PROCURA DE QUEM O BUSCA
Vem, Senhor Jesus,
busca teu servo,
pastor, busca tua ovelha exaurida,
deixa as outras e procura a única que se perdeu.
Vem em meu encalço, eu que espreito a incursão dos lobos;
procura-me porque já ando te buscando.
Procura-me, encontra-me, acolhe-me, carrega-me.
Podes encontrar quem procuras,
digna-te acolher aquele que tu encontras,
coloca sobre teus ombros aquele que acolheste.
Um fardo de piedade não é peso para ti.
Uma carga justa para ti não consiste em peso.
Vem, pois, Senhor procurar tua ovelha,
vem tu mesmo.
Coloca-me na tua cruz
que é salutar para os errantes,
repousante para os que estão cansados.
Santo Ambrósio de Milão (340-397)
Se não tivesses vindo…
Súplica pela vinda do Senhor? Alegria pela sua chegada?
Eu estaria morto para a eternidade
se tu não tivesses nascido no tempo.
Nunca teria eu sido libertado da carne do pecado,
se não tivesses tomado a semelhança do pecado.
Seria vítima de miséria sem fim,
se não tivesses manifestado na misericórdia.
Eu não teria recobrado a vida
se tivesses deparado com a morte.
Eu teria sucumbido, se não me tivesses socorrido.
Estaria morto se não tivesses vindo.
Santo Agostinho
Homilia para o Natal ano 420
Quem nos leva à festa do Natal?
Viver em estado de advento!
Senhor “por amor aos homens vem de novo a esta terra!” Este é o apelo que domina o tempo do Advento. Deus estaria ausente? Não, sabemos que ele se faz presente em nossa vida e em nossa história. Nós é que tomamos distância dele. Deixamos nos envolver com nossas preocupações e nos prender em nossos trabalhos. Esquecemo-nos dele.
A maioria dos textos que lemos no tempo do Advento constitui uma pedagogia viva cuja finalidade é despertar nosso coração adormecido de seu torpor espiritual. O Senhor quer fazer de cada um de nós “vigias da aurora”, sentinelas do amor.
Estamos sempre voltando para o Senhor. Preocupados com muitos detalhes e obrigados a nos “distrair” do essencial não temos mais consciência que nossa vida pessoal e coletiva se inscreve no dinamismo de uma esplendorosa Aliança de amor, uma longa história de salvação.
Durante o tempo do Advento pedimos que o Senhor, ainda uma vez, rasgue a espessura de nossas trevas, dilate nossos horizontes acanhados e venha morar em nosso coração e em nossa terra.
Três grandes personagens serão nossos guias nesse despertar espiritual: o profeta Isaías, o precursor Joao Batista e Maria, a mulher da fé.
Isaías haverá de nos ajudar a enraizar nossa esperança na espera multissecular de nossos antepassados, na fé de Abraão e no êxodo de Moisés. O profeta vai reavivar em nós “as promessas messiânicas” que fizeram do povo de Israel um povo de peregrinos e que fazem ainda da Igreja do Cristo um povo de caminhantes que se orientam para a plenitude do Reino do Amor.
Isaías nos convida a nos deixar sermos modelados pelo Criador, oleiro amoroso de sua criação que, dia após dia, toma a argila de que somos feitos para nos dar rosto de eternidade e fazer de nossa terra a matéria de seu Reino.
João Batista nos convidará, por sua vez, a fazer com que borbulhe novamente em nós a água de nosso batismo, gritando de uma voz forte: “Convertei-vos! Mudai a direção de vossos pensamentos. Abri os olhos, e sede vigilantes porque, em vosso meio, está Alguém que não conheceis! Ele já se fez presente! Abri-lhe as portas de vosso coração de vossas comunidades. Preparai-lhe um caminho para que ele possa chegar ao mais íntimo de vosso ser”.
Maria nos associará à sua própria fé disponível a fim de que possamos, nós também, acolher as imprevisíveis visitas de Deus. Ela intercederá junto ao Senhor para que o Espírito “nos cubra com sua sombra” a fim de possamos encarnar o Amor no cotidiano e assim dar à luz uma terra nova.
Ela, a Virgem do “sim” fará de nós homens do Advento, enraizados na fidelidade ao Senhor, capazes de perceber sua presença amorosa e atuante em nosso presente e acelerar o advento da glória do Senhor.
Michel Hubaut
Revista Prier, dez. 1990
Uma frágil criança…
Natal; festa da criança, festa da infância, Deus se torna uma frágil criança…
Uma criança frágil, que não fala, que não tem condições de exprimir sua vontade. Assim Deus vem à humanidade. Não como um conquistador ou um dominador, mas através de um presente que nos é feito. A pobreza desse nascimento tem tudo a ver com sua paixão dolorida. Um Deus que se desapropria, como que a dizer que o amor que salva é sempre desapropriação. Natal é a revelação de um Deus de humildade que não vem obrigar o homem a reconhecê-lo por medo. Quando chega à plenitude dos tempos e o momento das revelações ficamos pasmos em ver a fragilidade de Deus criança. Talvez estranhássemos menos se o Senhor tivesse tomado corpo num adulto de belo porte, num homem robusto. A criança, pelo contrário, é a figura da humanidade dependente que precisa ser alimentada, vestida, assistida em todos os momentos. Têm os olhos voltados para aqueles que têm a força, o ter e o poder. Necessita aprender. Aquele que é o Verbo, a Palavra precisa aprender a falar, esse Verbo que vai de um extremo a outro da terra. Terá que aprender não somente a falar, mas a andar, a calcular, a sonhar, a ler os sinais dos tempos. Deus perde sua onipotência. Um Deus que se torna criança.
Natal: acontecimento crucial da história…
O Evangelho da Natividade não é apenas uma simpática e reconfortante história de uma Virgem Mãe e de um gracioso bebê deitado na manjedoura, uma história que comove nossos corações e nos conduz de volta, uma vez por ano, à nossa própria infância perdida. É uma proclamação solene de um acontecimento que é o ponto crucial de toda a historia: a vinda do Messias, o rei ungido e Filho de Deus, a Palavra-feita-carne, armando sua tenda entre nós, não apenas para buscar e salvar o que estava perdido, mas para estabelecer o seu Reino, o Reino escatológico, a manifestação da plenitude dos tempos e o remate da história. É o anuncio de um acontecimento escatológico decisivo.. a libertação de todas as formas religiosas fragmentárias e incompletas (…). Quando, porém, chegou a plenitude do tempo, enviou Deus o seu Filho, nascido de uma mulher, nascido sob a lei, para remir os que estavam sob a Lei, a fim de que recebêssemos a adoção filial” Gl 4, 4-5).
Thomas Merton
Assim fala Francisco, deslumbrado diante do Menino
O mistério da piedade
Éloi Leclerc, franciscano francês, passou a vida escrevendo e refletindo sobre Francisco e a vida franciscana. No final do livro “Desterro e Ternura” (Editorial Franciscana , Braga, 1974), ele coloca Francisco diante da cena do presépio de Greccio, falando aos irmãos sobre o mistério do nascimento do Menino. Vale a pena transcrever estas linhas do inspirado franciscano.
Acabara de nevar. A noite era bela e suave, o céu de um verde quase translúcido. Ia soar a meia-noite. Luzes surgiram no flanco da montanha. Avançando lentamente na neve, desapareciam por momentos, ocultas pela folhagem, Outras luzes se lhe seguiam. Acudindo de várias direções, de cima, de baixo, todas convergiam num ponto único. A montanha agora era um mar de estrelas. Aqui e além cintilavam blocos de neve. Nem o mais leve ruído subia do vale. Nem a mais pequena aragem agitava a floresta. No silêncio cochichavam vozes, tamancos martelavam secamente as pedras dos caminhos. Em pequenos grupos, os montanheses demandavam à gruta para a missa da meia-noite. Era Natal.
Empunhando archotes e lanternas, acorriam todos, homens, mulheres e crianças. Metendo pelos barrocais do monte, rumo ao sítio onde se reconcavavam formando abrigo, seu primeiro olhar, ao chegarem, era para o boi e o jumentinho reclinados a um canto e para a manjedoura, cheia de palha fresca. Tudo havia sido preparado, graças aos cuidados do senhor João Velita. Francisco acolheu uns e outros com simplicidade e cortesia. Amorosamente, ingenuamente, quisera ele este presépio ao vivo, para tornar palpável de alguma maneira, o grande acontecimento de Belém. Os animais estavam presentes não só porque haviam de recordar o jumentinho que transportara a Virgem Mãe e aquecera o Menino, mas também porque o nascimento do Salvador, pensava ele, interessava igualmente a toda a criação. Nessa noite santa, o universo receberia o seu Senhor e a sua consagração. Era, portanto, necessário que todas as criaturas se sentissem envolvidas no grande mistério da piedade.
À medida que iam chegando, todos se comprimiam uns contra os outros, dado que o local era exíguo. As crianças, furando as primeiras filas, estacavam de olhos esbugalhados. Tudo, naquele singular ajuntamento noturno, era para elas motivo de maravilhamento e espanto: as luzes, os animais, a abóboda de pedra amarela, escavada e boleada onde se movimentavam sobras fantásticas de pessoas e animais, e, no meio da gruta, sobre uma mesa de pedra branca, o cálice do sacrifício aberto como grande flor dourada.
Meia noite. Uma sineta tilintou. Ia começar a missa. Celebrava frei Leão. Francisco revestido com a dalmática branca dos diáconos, assistia-o. A ele coube cantar o Evangelho que anuncia ao mundo a feliz nova:
Aconteceu que, naqueles dias, César Augusto, publicou um decreto ordenando o recenseamento de toda a terra. Esse primeiro recenseamento foi feito quando Quirino era governador da Síria. Todos iam registrar-se, cada um em sua cidade natal. Por ser da família e da descendência de Davi, José subiu da cidade de Nazaré, na Galileia, até a cidade de Davi, chamada Belém, na Judeia, para registrar-se com Maria, sua esposa, que estava grávida. Enquanto estavam em Belém, completaram-se os dias para o parto e Maria deu à luz seu filho primogênito. Ela o enfaixou e o colocou na manjedoura, pois não havia lugar para eles na hospedaria. Naquela região havia pastores que passavam a noite nos campos, tomando conta de seu rebanho. Um anjo do Senhor apareceu aos pastores, a glória do Senhor os envolveu em luz e eles ficaram com muito medo. O anjo, porém, disse aos pastores: “Não tenhais medo! Eu vos anuncio uma grande alegria, que o será para todo o povo: hoje, na cidade de Davi, nasceu para vós um salvador, que é o Cristo Senhor. Isto vos servirá de sinal: encontrareis um recém-nascido envolvido em faixas e deitado numa manjedoura”. E, de repente, juntou-se ao anjo uma multidão da coorte celeste. Cantavam louvores a Deus dizendo: “Glória a Deus no mais alto dos céus, e paz na terra aos homens por ele amados” (Lc 2, 1-14).
Francisco tomou a palavra:
Meus amigos, ouvistes bem? – exclamou em transportes de júbilo. Havereis de reconhecê-lo por este sinal: é um recém-nascido reclinado num presépio. O Senhor da glória, reconhecido por este sinal: uma frágil criancinha digna de comiseração como todos os recém-nascidos, reclinada sobre a palha como o mais pobre dos pobres, como o mais obscuro dos filhos dos homens! Vede a humildade de Deus. Nesta noite, o Deus da majestade fez-se irmão nosso. Ele, o maior de todos quer ser o mais pequeno, o último. Aproximou-se de nós sob o signo da fragilidade e da ternura.
Foi assim que Deus nos revelou a profundeza de seu ser. Nele não há só poder, soberania, ciência e majestade; há também inocência, infância e ternura infinita. Sim, meus amigos, Deus é infância e ternura. Por que ele é pai, infinitamente pai.
Os homens não sabiam até que ponto Deus é pai. Nem o podiam saber. Necessário se tornava que Deus lhes mostrasse seu Filho. Mas, ai, os homens não tardaram em esquecê-lo. Aos homens de coração duro não se lhes dá a humanidade de Deus nem da sua ternura. Servir-lhes-ia de recriminação. Não as entenderiam. E nem se quer as veriam. Imaginam que a grandeza se estriba unicamente no poder e no domínio. Pobres homens! A verdadeira grandeza, a única verdadeira grandeza, irmãos meus, consiste em amar o Pai com todas a veras e ser como ele.
Neste mundo, tal grandeza encontra-se ameaçada. Desde que o reino de Deus nos foi apresentado na pessoa dum inocente, todo fragilidade, está sempre ameaçado, exposto à perseguição e à morte. Os lacaios de Herodes já se agitam na noite da Natividade. O Reino é ameaçado dentro e fora de nós. Em cada um de nós renasce continuamente o velho desejo animal, a vontade de dominar e de devorar, de ser o mais forte, o mais poderoso.
Mas já não temos que temer. O Anjo do Senhor, assim no-lo pede. Este Menino é o salvador do mundo. Salvador! Estamos salvos, irmãos. Já não estaremos mais sós, abandonados às nossas faltas, às nossas desvergonhas, aos nossos desesperos. Já nada poderá nos separar da ternura do Pai.
Ah, certamente este mistério nós o celebramos envoltos ainda na escuridão da noite, no rude inverno da natureza e dos homens. Há ainda frio na terra. Mas esta noite, esta longa noite, bem o sabemos, é uma noite de Natal, um longo Natal que ainda perdura e no qual tomamos parte. É a noite do nascimento do homem para a vida de Deus. E nesta noite brilha a luz: a luz deste Menino que é o penhor duma ternura infinita que se nos dá para sempre. Todas as vezes que um coração humano se deixa penetrar desta ternura há um pouco mais de luz na escuridão da noite. Há sempre mais luz, porque então o rosto do Menino se torna mais visível à humanidade e porque floresce no coração dos homens o paraíso da infância.
E Eloi Leclerc, depois de ter colocado esta belas palavras nos lábios de Francisco, concluiu:
Depois desta alocução, a missa prosseguiu entre cânticos. Cada um dos presentes sentia-se penetrado duma extraordinária doçura. No momento da comunhão, quando Francisco recebeu a sagrada partícula, o senhor João Velita, maravilhado, viu despertar e sorrir entre os braços do grande amigo, um menino de estranha beleza. Todos se aperceberam que um singular mistério acabava de se cumprir: sobre a terra voltava a florir o paraíso da infância. “Greccio, onde o servo de Deus voltou à infância…”, faz notar uma crônica uma velha crônica. Naquela bendita noite de 1223, num recanto humilde da terra, no silêncio da natureza coberta de neve, a doce piedade de Deus abrira novamente caminho para o coração dos pobres. Enleados, voltavam a descobrir a humildade e a ternura de Deus. Aquele presépio vivo, não era, a seus olhos, um fato simplesmente simpático. Saído do coração de um santo, num mundo cheio de violência, representava o retorno à fonte escondida da infância e da ternura, era a expressão sensível, eloquente, duma aproximação de Deus pelos caminhos do amor e da infância reencontrada.
Éloi Leclerc
Desterro e Ternura
Editorial Franciscana, Braga, p. 229-235
Glória a Deus no mais alto dos céus
Que haveremos de te oferecer, ó Cristo,
porque por nós apareceste
nesta terra como homem?
Cada criatura de ti saída
te apresenta um testemunho de gratidão:
os anjos, seu canto;
os céus a estrela;
os Magos, seus dons;
os Pastores, sua admiração;
a Terra, a gruta;
o deserto, o presépio;
e nós, homens, uma Mãe virgem.
Deus de todos os tempos,
tem piedade de nós.
Céu e terra se unem hoje,
quando Cristo nasce.
Neste dia Deus veio à terra
e o homem subiu aos céus.
Hoje é contemplado na carne
aquele que por natureza é invisível
e tudo isso por causa do homem.
Nós te glorificamos e fazemos chegar até ti nosso canto:
Glória a Deus no mais alto dos céus e paz na terra.
Tua vinda confirma teu amor.
Glória a ti, nosso Salvador!
Oração das Igrejas de rito bizantino
Para fazer um bom retiro;
Reserva uma manhã ou uma tarde para este retiro.
Procurem colocar-se na presença de Deus.
Façam um exame de consciência para fazer surgir no coração um sentimento de contrição. Deus não despreza um coração arrependido.