Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Quaresma, tempo de conversão

Quaresma, tempo de conversão

Ter-se-á sempre em vista que a Quaresma constituía preparação para o Tríduo Pascal da Paixão-Morte, Sepultura e Ressurreição do Senhor Jesus, celebrado de quinta-feira à noite até o domingo da Ressurreição.

A Quarta-feira de Cinzas abre este tempo de conversão e de penitência, fazendo a proposta da observância quaresmal da oração, do jejum e da esmola.

Seguem todos os anos os dois domingos com temática fixa, variando apenas conforme os Evangelistas do ano. No 1º  Domingo da Quaresma: As tentações de Jesus no deserto; 2º  Domingo: a transfiguração do Senhor.

Jesus é o modelo da vida de penitência dos cristãos. O Jesus que jejua, o Jesus que se dedica à oração, deve ser visto à luz do Cristo transfigurado. Toda a caminhada da conversão dos cristãos só tem sentido à luz da ressurreição pregustada no Tabor.

A partir do 3º Domingo temos uma diversificação, conforme os ciclos do Ano A, B e C.

O Ano A apresenta a temática batismal. O Batismo será revivido no Tríduo pascal e especialmente na Vigília.

Se isso é verdade todos os anos, vem tematizado no Ano A. Utilizam-se os Evangelhos de São João. No 3º  Domingo: o poço da samaritana; no 4º  Domingo: o cego de nascença junto à piscina de Siloé. No 5º  Domingo: a ressurreição de Lázaro. As leituras do Antigo Testamento, em harmonia com os evangelhos, apresentam os grandes lances da história da salvação. As leituras do Apóstolo realçam também a temática batismal.

No Ano B, de Marcos, sobressai o mistério da renovação da pessoa humana em Cristo e por Cristo, através da penitência. Seguindo o Cristo no mistério da cruz, o cristão participará de sua ressurreição. Os evangelhos são novamente de João: a restauração do Templo (o corpo de Cristo), Jo 21,13-25; o Cristo exaltado na cruz para a salvação do mundo, Jo 3,14-21; o grão de trigo que precisa morrer para produzir fruto, Jo 12, 20-33. As leituras apresentam tópicos da aliança de Deus com seu povo.

O Ano C, de Lucas, é perpassado pelo tema da necessidade da penitência e da misericórdia de Deus para com a humanidade em Cristo Jesus. A necessidade da conversão (Lc 13,1-9) no 3º  Domingo; o filho pródigo (Lc 15,1-3.11-32) no 4º  Domingo e a mulher adúltera (Jo 8,1-11) no 5º  Domingo. As leituras apresentam experiências pascais do Povo de Deus na história da salvação.

Tudo isso pode acontecer cada ano com o Povo de Deus, a Igreja, no Tríduo Pascal. As condições são a conversão, a renovação da aliança batismal em Cristo Jesus.

Texto de “Viver o Ano Litúrgico – Reflexões para os domingos e solenidades”, de Frei Alberto Beckhauser, Editora Vozes.


Imagem no alto:  Imagem ilustrativa: Canva (www.canva.com/pt_br/modelos)

Mensagem do Papa Francisco para a Quaresma 2024

Através do deserto, Deus guia-nos para a liberdade

 

Queridos irmãos e irmãs!

Quando o nosso Deus Se revela, comunica liberdade: «Eu sou o Senhor, teu Deus, que te fiz sair da terra do Egipto, da casa da servidão» (Ex 20, 2). Assim inicia o Decálogo dado a Moisés no Monte Sinai. O povo sabe bem de que êxodo Deus está a falar: traz ainda gravada na sua carne a experiência da escravidão. Recebe as «dez palavras» no deserto como caminho de liberdade. Nós chamamos-lhes «mandamentos», fazendo ressaltar a força amorosa com que Deus educa o seu povo; mas, de facto, a chamada para a liberdade constitui um vigoroso apelo. Não se reduz a um mero acontecimento, mas amadurece ao longo dum caminho. Como Israel no deserto tinha ainda dentro de si o Egito (vemo-lo muitas vezes lamentar a falta do passado e murmurar contra o céu e contra Moisés), também hoje o povo de Deus traz dentro de si vínculos opressivos que deve optar por abandonar. Damo-nos conta disto, quando nos falta a esperança e vagueamos na vida como em terra desolada, sem uma terra prometida para a qual tendermos juntos. A Quaresma é o tempo de graça em que o deserto volta a ser – como anuncia o profeta Oseias – o lugar do primeiro amor (cf. Os 2, 16-17). Deus educa o seu povo, para que saia das suas escravidões e experimente a passagem da morte à vida. Como um esposo, atrai-nos novamente a Si e sussurra ao nosso coração palavras de amor.

O êxodo da escravidão para a liberdade não é um caminho abstrato. A fim de ser concreta também a nossa Quaresma, o primeiro passo é querer ver a realidade. Quando o Senhor, da sarça ardente, atraiu Moisés e lhe falou, revelou-Se logo como um Deus que vê e sobretudo escuta: «Eu bem vi a opressão do meu povo que está no Egito, e ouvi o seu clamor diante dos seus inspetores; conheço, na verdade, os seus sofrimentos. Desci a fim de o libertar das mãos dos egípcios e de o fazer subir desta terra para uma terra boa e espaçosa, para uma terra que mana leite e mel» (Ex 3, 7-8). Também hoje o grito de tantos irmãos e irmãs oprimidos chega ao céu. Perguntemo-nos: E chega também a nós? Mexe conosco? Comove-nos? Há muitos fatores que nos afastam uns dos outros, negando a fraternidade que originariamente nos une.

Na minha viagem a Lampedusa, à globalização da indiferença contrapus duas perguntas, que se tornam cada vez mais atuais: «Onde estás?» (Gn 3, 9) e «Onde está o teu irmão?» (Gn 4, 9). O caminho quaresmal será concreto, se, voltando a ouvir tais perguntas, confessarmos que hoje ainda estamos sob o domínio do Faraó. É um domínio que nos deixa exaustos e insensíveis. É um modelo de crescimento que nos divide e nos rouba o futuro. A terra, o ar e a água estão poluídos por ele, mas as próprias almas acabam contaminadas por tal domínio. De facto, embora a nossa libertação tenha começado com o Batismo, permanece em nós uma inexplicável nostalgia da escravatura. É como uma atração para a segurança das coisas já vistas, em detrimento da liberdade.

Quero apontar-vos, na narração do Êxodo, um detalhe de não pequena importância: é Deus que vê, que Se comove e que liberta, não é Israel que o pede. Com efeito, o Faraó extingue também os sonhos, rouba o céu, faz parecer imutável um mundo onde a dignidade é espezinhada e os vínculos autênticos são negados. Por outras palavras, o Faraó consegue vincular-nos a ele. Perguntemo-nos: Desejo um mundo novo? E estou disposto a desligar-me dos compromissos com o velho? O testemunho de muitos irmãos bispos e dum grande número de agentes de paz e justiça convence-me cada vez mais de que aquilo que é preciso denunciar é um défice de esperança. Trata-se de um impedimento a sonhar, um grito mudo que chega ao céu e comove o coração de Deus. Assemelha-se àquela nostalgia da escravidão que paralisa Israel no deserto, impedindo-o de avançar. O êxodo pode ser interrompido: não se explicaria doutro modo porque é que tendo uma humanidade chegado ao limiar da fraternidade universal e a níveis de progresso científico, técnico, cultural e jurídico capazes de garantir a todos a dignidade, tateie ainda na escuridão das desigualdades e dos conflitos.

Deus não Se cansou de nós. Acolhamos a Quaresma como o tempo forte em que a sua Palavra nos é novamente dirigida: «Eu sou o Senhor, teu Deus, que te fiz sair da terra do Egito, da casa da servidão» (Ex 20, 2). É tempo de conversão, tempo de liberdade. O próprio Jesus, como recordamos anualmente no primeiro domingo da Quaresma, foi impelido pelo Espírito para o deserto a fim de ser posto à prova na sua liberdade. Durante quarenta dias, tê-Lo-emos diante dos nossos olhos e conosco: é o Filho encarnado. Ao contrário do Faraó, Deus não quer súbditos, mas filhos. O deserto é o espaço onde a nossa liberdade pode amadurecer numa decisão pessoal de não voltar a cair na escravidão. Na Quaresma, encontramos novos critérios de juízo e uma comunidade com a qual avançar por um caminho nunca percorrido.

Isto comporta uma luta: assim no-lo dizem claramente o livro do Êxodo e as tentações de Jesus no deserto. Com efeito, à voz de Deus, que diz «Tu és o meu Filho amado» (Mc 1, 11) e «não haverá para ti outros deuses na minha presença» (Ex 20, 3), contrapõem-se as mentiras do inimigo. Mais temíveis que o Faraó são os ídolos: poderíamos considerá-los como a voz do inimigo dentro de nós. Poder tudo, ser louvado por todos, levar a melhor sobre todos: todo o ser humano sente dentro de si a sedução desta mentira. É uma velha estrada. Assim podemos apegar-nos ao dinheiro, a certos projetos, ideias, objetivos, à nossa posição, a uma tradição, até mesmo a algumas pessoas. Em vez de nos pôr em movimento, paralisar-nos-ão. Em vez de nos fazer encontrar, contrapor-nos-ão. Mas existe uma nova humanidade, o povo dos pequeninos e humildes que não cedeu ao fascínio da mentira. Enquanto os ídolos tornam mudos, cegos, surdos, imóveis aqueles que os servem (cf. Sal 115, 4-8), os pobres em espírito estão imediatamente disponíveis e prontos: uma força silenciosa de bem que cuida e sustenta o mundo.

É tempo de agir e, na Quaresma, agir é também parar: parar em oração, para acolher a Palavra de Deus, e parar como o Samaritano em presença do irmão ferido. O amor de Deus e o do próximo formam um único amor. Não ter outros deuses é parar na presença de Deus, junto da carne do próximo. Por isso, oração, esmola e jejum não são três exercícios independentes, mas um único movimento de abertura, de esvaziamento: lancemos fora os ídolos que nos tornam pesados, fora os apegos que nos aprisionam. Então o coração atrofiado e isolado despertará. Para isso há que diminuir a velocidade e parar. Assim a dimensão contemplativa da vida, que a Quaresma nos fará reencontrar, mobilizará novas energias. Na presença de Deus, tornamo-nos irmãs e irmãos, sentimos os outros com nova intensidade: em vez de ameaças e de inimigos encontramos companheiras e companheiros de viagem. Tal é o sonho de Deus, a terra prometida para a qual tendemos, quando saímos da escravidão.

A forma sinodal da Igreja, que estamos a redescobrir e cultivar nestes anos, sugere que a Quaresma seja também tempo de decisões comunitárias, de pequenas e grandes opções contracorrente, capazes de modificar a vida quotidiana das pessoas e a vida de toda uma coletividade: os hábitos nas compras, o cuidado com a criação, a inclusão de quem não é visto ou é desprezado. Convido toda a comunidade cristã a fazer isto: oferecer aos seus fiéis momentos para repensarem os estilos de vida; reservar um tempo para verificarem a sua presença no território e o contributo que oferecem para o tornar melhor. Ai se a penitência cristã fosse como aquela que deixou Jesus triste! Também a nós diz Ele: «Não mostreis um ar sombrio, como os hipócritas, que desfiguram o rosto para que os outros vejam que eles jejuam» (Mt 6, 16). Pelo contrário, veja-se a alegria nos rostos, sinta-se o perfume da liberdade, irradie aquele amor que faz novas todas as coisas, a começar das mais pequenas e próximas. Isto pode acontecer em toda a comunidade cristã.

Na medida em que esta Quaresma for de conversão, a humanidade extraviada sentirá um estremeção de criatividade: o lampejar duma nova esperança. Quero dizer-vos, como aos jovens que encontrei em Lisboa no verão passado: «Procurai e arriscai; sim, procurai e arriscai. Neste momento histórico, os desafios são enormes, os gemidos dolorosos: estamos a viver uma terceira guerra mundial feita aos pedaços. Mas abracemos o risco de pensar que não estamos numa agonia, mas num parto; não no fim, mas no início dum grande espetáculo. E é preciso coragem para pensar assim» ( Discurso aos estudantes universitários, 03/VIII/2023). É a coragem da conversão, da saída da escravidão. A fé e a caridade guiam pela mão esta esperança menina. Ensinam-na a caminhar e, ao mesmo tempo, ela puxa-as para a frente. [1]

Abençoo-vos a todos vós e ao vosso caminho quaresmal.

Roma – São João de Latrão, no I Domingo do Advento, 3 de dezembro de 2023.

FRANCISCO

 


[1] Cf. Charles Péguy, Il portico del mistero della seconda virtù, Milão 1978, 17-19.

As linhas-força da Quaresma

A Quaresma recebe toda a sua força de inspiração da Vigília pascal, desdobrada no Tríduo Pascal da Paixão-Morte, Sepultura e Ressurreição de Jesus Cristo.

Trata-se da preparação para a Festa da Páscoa do Cristo total, isto é, de Jesus Cristo e dos cristãos. Esta vida nova em Cristo é que chamamos de mistério pascal.

A páscoa-fato, celebrada pela Igreja, movimenta-se em três níveis: a páscoa-fonte, a Paixão-Morte, Sepultura e Ressurreição de Jesus Cristo; a páscoa participada pelos cristãos, acontecida no batismo; e a renovação da páscoa dos cristãos em Cristo no hoje pela renovação de vida, na conversão ou penitência e no compromisso renovado.

Tudo isso torna-se sacramental na páscoa-rito, na celebração da Vigília maior, desdobrada no Tríduo Pascal.

Compreendemos que a celebração da Páscoa é essencialmente uma festa batismal. Dela brotam duas linhas-força:

A primeira: A dimensão batismal. Nesta dimensão podemos realçar dois aspectos. A Páscoa é a festa da celebração do batismo daqueles e daquelas que se prepararam durante a Quaresma. Hoje, esta realidade está tornando-se sempre mais presente.

Os catecúmenos caminharam com a Igreja; a comunidade tornou-se catecúmena com os que se preparam para o batismo.

A Igreja gera novos filhos na fé. Mas enquanto ela se toma catecúmena, os cristãos se preparam para renovar os compromissos do próprio batismo. Assim, estamos na segunda linha-força da Quaresma: a penitência ou a prática da conversão para viver o batismo ou para renovar as promessas do batismo.

Os cristãos já batizados têm consciência de que ainda não estão na plenitude do ideal cristão, que é o próprio Cristo Jesus. Todo cristão, mesmo batizado, sabe que o processo de sua conversão não chegou ao fim. Ele é um caminhante, consciente do já presente do ainda não. Embora justificado e santificado pelo batismo e pela fé, encontra-se ainda a caminho. Além disso, ele tem consciência de que muitas vezes se torna infiel à aliança batismal, à morte libertadora de Jesus Cristo, afastando-se ou negando totalmente sua vocação e missão de batizado. Ou, então, torna-se infiel aos compromissos batismais, não correspondendo devidamente à proposta do amor de Deus em Jesus Cristo. Daí o sentido da penitência quaresmal para todos. Será preparação para retomar os compromissos do batismo ou para fortificá-los. Esta experiência de reconciliação oferecida pela misericórdia de Deus em Cristo Jesus constitui, por sua vez, outra experiência pascal celebrada sacramentalmente na Páscoa.

Texto de “Viver o Ano Litúrgico – Reflexões para os domingos e solenidades”, de Frei Alberto Beckhauser, Editora Vozes.

Quaresma, conversão à Fraternidade e à Amizade Social

Quaresma, conversão à Fraternidade e à Amizade Social

“Todos vós sois irmãos e irmãs”

A Campanha da Fraternidade deste ano coloca em evidência a importância da “Fraternidade e Amizade Social”, assim como nos vem apresentado pelo Papa Francisco na Encíclica Fratelli Tutti. Fraternidade e amizade social é um sonho, uma provocação e convite à conversão quando nos deparamos com tantos males que afetam a paz da humanidade e a harmonia de toda a criação.

Sabemos que todas as formas de discriminação e exclusão, de dominação e sede de poder, de autorreferencialidade e autossuficiência, de competição e meritocracia, de construção de muros e ódios etnorraciais, de descarte e cultura de armas, de bullying e abusos, etc., atentam contra o dom mais precioso que é a fraternidade e a amizade social, vistas como harmonia perfeita das criaturas com o Criador e das criaturas entre si, da forma como a Criação foi concebida na sua originalidade: “Deus viu tudo quanto havia feito e achou que estava muito bom” (Gn 1,31).

Jesus, ao anunciar o Reino de Deus, também se depara com gritantes desigualdades e exclusões como, por exemplo, a arrogância autoritária dos escribas e fariseus. Na sua missão evangelizadora, numa breve sentença que resume um ideal de vida, Jesus apresenta aos discípulos um comportamento novo, centrado na autoridade do único Pai, Mestre e Guia, e convida a humanidade a recriar novas relações fraternas: “Todos vós sois irmãos” (Mt 23,8). Assim, de diferentes modos, principalmente nas imagens e parábolas dos banquetes, perpassa a concepção da inclusão fraterna de todas as pessoas.

A resposta e pergunta cruel de Caim, ao ser interrogado por Deus acerca do irmão por ele assassinado, “por acaso sou o guarda do meu irmão?” (Gn 4,9), se repete no tempo de Jesus na dureza de coração do doutor da Lei ao justificar-se diante das exigências radicais do mandamento do amor que o interpelavam a ir para além do “próximo” do seu cercadinho: “E quem é o meu próximo?” (Lc 10,29). Por isso, o

paradigma do Bom Samaritano, na parábola de Jesus, evoca atitudes e disposições permanentes para se construir a verdadeira Fraternidade e Amizade Social: ver, sentir compaixão, cuidar…Assim, “amar o teu próximo como a ti mesmo” (Lc 10,27) só é possível quando a humanidade passa a acreditar que “todos somos irmãos e irmãs”.

São Francisco de Assis, na Idade Média, também experimentou o oposto da fraternidade e da amizade social, a começar pela guerra entre Assis e Perusa da qual participou e, ao ser derrotado, experimentou a amargura do cárcere. Ele não estava isento dos conflitos sociais existentes entre nobres e plebeus. Armou-se fortemente para guerrear na Apúlia. Resistiu e teve aversão àqueles que lhe causavam amargor e medo: os leprosos. Acompanhou e viu de perto o ódio recíproco de uma “guerra santa” entre cristãos e muçulmanos. Ouviu relatos acerca do desprezo, preconceito, ódio e o martírio que os frades sofreram ao atravessarem as fronteiras da Itália para ir em missão em terras estrangeiras (Alemanha, Hungria e Marrocos). Viu e ouviu a prepotência dos soldados que abusavam do poder. Condenou a ganância humana pelo poder, inclusive dentro da Igreja, repropondo o exemplo de Cristo no lava-pés.

Por outro lado, depois de experimentar em si a presença amorosa e misericordiosa de Deus, o Pobre de Assis passou a contemplar a vida com o ocular da ternura e do afeto, tornando-se o arauto do Grande Rei e do amor humano, onde a fraternidade passa a ser o valor mais precioso a ser construído. Os qualificativos dados a Frei Bernardo na sua chegada e acolhida na Ordem (cf. 1Cel 24,8), vale para Clara de Assis, Frei Leão, Inês de Assis, Frei Elias, Fra Jacoba, Luquesio e Buonadona e demais companheiros e companheiras. Cada pessoa, por ser irmão e irmã, é pessoa de grande valor – “tão grande homem” – porque feita à imagem e semelhança de Deus; é “companheiro necessário” porque “juntos se constroem os sonhos enquanto sozinhos corremos o risco de ter miragens, de ver aquilo que não existe”, nos lembra o Papa Francisco (Fratelli Tutti 8); é “amigo fiel” porque na amizade aprimoramos e plenificamos a riqueza dos nossos relacionamentos humanos.

A fraternidade sonhada e querida por São Francisco é antes de tudo a acolhida do amor de Deus e a restituição desse amor por parte de toda a Criação: “Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas” (Cnt 2). Por isso, em suas orações, no ritmo do salmista bíblico, ele não se cansa em convidar a Criação inteira a louvar

o Criador: “Obras todas do Senhor, bendizei o Senhor Deus. E louvemo-lo e superexaltemo-lo pelos séculos” (LD 5). Da mesma forma, quando o Santo de Assis nos convida a refletir acerca da grandeza da nossa condição de criaturas feitas à imagem e semelhança de Deus, não ignora que o pecado do orgulho nos desloca do sonho divino de sermos irmãos, amigos e fraternos entre nós e com toda a criação: “Todas as criaturas que há sob o céu, à sua maneira, servem, reconhecem e obedecem ao seu Criador melhor do que tu” (Ad 5,1-2). O servir, reconhecer e obedecer a Deus só são verdadeiros quando os mesmos verbos são conjugados no cotidiano das nossas relações fraternas, e com a mesma intensidade e atitudes do samaritano em relação ao seu próximo: ver, sentir compaixão e cuidar.

O texto-base da Campanha da Fraternidade, no III Capítulo, ao propor a ação (agir), busca a inspiração no profeta Isaías: “Alarga o espaço da tua tenda” (Is 54,2-4). Não é aqui o lugar de repetir as ações propostas a cada pessoa (minha tenda), grupos, comunidades e instituições (nossa tenda). Quero simplesmente concluir esta meditação e convidá-lo a abraçar as mesmas ações e aprofundá-las. Alargar o espaço da nossa tenda faz parte da dinâmica da nossa vocação e missão:

  • Alargar o espaço da tenda na proposta missionária: “Ide,caríssimos, dois a dois, pelas diversas partes do mundo, anunciando aos homens a paz e a penitência para a remissão dos pecados” (Cf. 1Cel 29,3).
  • Alargar o espaço da tenda pobre e ampla: quando interpelados pela Senhora Pobreza a terem coragem de mostrar o sem-limite da nossa clausura, São Francisco e companheiros, “conduzindo-a a uma colina, mostraram-lhe todo o orbe que podiam ver, dizendo: ‘Senhora. Este é o nosso claustro’” (Al 30,25).
  • Alargar o espaço da tenda na nossa identidade: porque identificados como “pobres do Crucificado” que peregrinam pelas cidades e aldeias, percorrendo a “amplidão de tão espaçoso claustro” que “não convém aos fracos e imperfeitos” (J. Vitry, Ordem e pregação dos Frades Menores).
  • Alargar o espaço da tenda na nossa linguajem: “Nas pregações que fazem, seja a linguagem examinada e casta, para a utilidade e edificação do povo” (RB 9).
  • Alargar o espaço da tenda de pobres peregrinos: “Como peregrinos e forasteiros nesse mundo… mostrem-se mutuamente familiares entre si” (RB 6).
  • Alargar o espaço da tenda no alegre acolhimento de todos: “E devem alegrar-se quando conviverem entre pessoas insignificantes e desprezadas, entre pobres, fracos, enfermos e leprosos e os que mendigam pela rua” (RnB 9,2).
  • Alargar o espaço da tenda da fraternidade: “Devem acautelar-se para não se irar ou se perturbar por causa do pecado de alguém, porque a ira e a perturbação impedem a caridade em si e nos outros” (RB 7,4).
  • Alargar o espaço da tenda da amizade: “Não briguem entre si nem com os outros, mas procurem responder humildemente, dizendo: sou servo inútil… E amem-se uns aos outros, como diz o Senhor: Este é o meu mandamento… E mostrem por obras o amor que têm uns aos outros… Não murmurem nem difamem os outros… Não julguem, não condenem” (cf. RnB 11).

O alargado espaço da tenda da fraternidade e da amizade, poderia contemplar esta belíssima descrição de Frei Tomás de Celano: “Quando se reuniam em algum lugar, ou quando se encontravam na estrada, reacendia-se o fogo do amor espiritual, espargindo suas sementes de amizade verdadeira sobre todo o amor. E como? Com castos abraços, com terno afeto, com ósculos santos, uma conversa amiga, sorrisos modestos, semblante alegre, olhar simples, ânimo suplicante, língua moderada, respostas afáveis, o mesmo desejo, pronto obséquio e disponibilidade incansável” (1Cel 38).

Para o louvor de Cristo, amém!

São Paulo, Quaresma de 2024.


Frei Fidêncio Vanboemmel, OFM

Moderador da Formação Permanente

A observância Quaresmal

Poderíamos falar também de exercícios da Quaresma ou exercícios de conversão. Trata-se de três exercícios de culto a Deus, já conhecidos no Antigo Testamento e abordados por Jesus no Evangelho de São Mateus (6,1-18): a oração, o jejum e a esmola.

Jesus não condenou estas práticas de culto. Quis, sim, purificá-las da hipocrisia. Muito cedo, a Igreja acolheu esses exercícios como prática de conversão, sobretudo na Quaresma. São Leão Magno, o grande papa do século V, mostra como essas três práticas atingem de modo profundo os três principais relacionamentos do homem:
com Deus, pela oração; com a natureza criada, pelo jejum e com o próximo, pela esmola. Por isso, esse evangelho é proclamado na Quarta-feira de Cinzas, abertura da Quaresma, como um verdadeiro programa de exercício de conversão para os cristãos.

Na virtude da fé, o homem volta-se diretamente a Deus pela oração. Louva-o e o adora. Reconhece-o como Criador, Senhor e Pai e a si mesmo como criatura e filho. Realiza-se uma conversão, pois pela oração o homem se situa no seu lugar, na sua vocação em relação a Deus.

E temos mais: quando, na Quaresma, a Igreja intensifica a oração, ela celebra o Cristo orante em profunda comunhão com o Pai.

Na virtude da esperança, o homem já participa do Bem Supremo que é Deus. Então, os bens deste mundo não o escravizam.

Faz uso deles para o bem próprio e do próximo e neles degusta o Bem, que é Deus. Mas muitas vezes acaba escravizando-se aos bens materiais. Aparece, então, o sentido do jejum religioso. Jejuar significa abster-se de alimento, tomar uma atitude de respeito e de liberdade diante das coisas, fazer espaço para os outros e para Deus, confiar na providência de Deus. Por este gesto, que é um rito, a Igreja comemora o Cristo, Senhor da criação e a vocação do homem como senhor da criação. Constitui um ato de conversão a Deus através das coisas. Importa, então, viver em atitude de jejum. De quantas coisas podemos jejuar!

Na virtude da caridade, o homem é chamado a ser profeta, revelando Deus, que é amor e apontando para ele. E chamado a viver como irmão. Num gesto ou rito de generosidade, a esmola, ele celebra sua capacidade de doar, de amar, de partilhar, segundo Deus. Celebra a generosidade do Deus Criador e do Deus Salvador. É o sentido mais profundo da esmola: dar de graça, dar sem querer retribuição, dar em solidariedade, partilhar com o próximo. Importa, então, viver em atitude de esmola: ser esmola, ser generoso, ser dom para o próximo, partilhar com os irmãos os seus bens, a exemplo do Deus Criador e de Jesus Cristo, dando sua vida por todos.

Texto de “Viver o Ano Litúrgico – Reflexões para os domingos e solenidades”, de Frei Alberto Beckhauser, Editora Vozes.

Campanha da Fraternidade, uma ajuda à Quaresma

A Campanha da Fraternidade (CF), que se realiza na Igreja do Brasil durante a Quaresma desde 1964, pretende ser uma ajuda para vivê-la mais intensamente.

Para tanto, ela deve preencher algumas suposições. A primeira e mais importante: ela deseja ser um momento forte de evangelização. Isso traz consigo algumas conseqüências. A CF situa-se mais no campo do anúncio da Palavra de Deus, ou seja, da evangelização e da catequese prolongada na Escola da fé, concretizada nos encontros, círculos de estudos, grupos de reflexão etc. Portanto, não em primeiro lugar na Liturgia, pois a dimensão celebrativa supõe comunidades evangelizadas e catequizadas. Devemos reconhecer que a Liturgia também tem uma dimensão evangelizadora. Se esta ação evangelizadora e catequética for intensa, repercutirá decisivamente na Liturgia quaresmal.

A CF deve respeitar as grandes linhas-força da Quaresma. Estas linhas-força são, sobretudo, a observância quaresmal da oração, do jejum e da esmola no seu sentido mais profundo, e a temática que se expressa na Palavra de Deus nos Anos A, B e C da Quaresma.

Fundamentalmente, a renovação das promessas batismais, no Ano A, a participação no mistério pascal de Cristo pela conversão, no Ano B, e a necessidade da conversão e penitência para participar da misericórdia de Deus, no Ano C. Isso, sem perder de vista a Palavra de Deus do 1° e 2° domingos, respectivamente, as tentações de Jesus e sua transfiguração.

Nesta perspectiva, a Campanha da Fraternidade, com seu tema e lema, poderá servir de pano de fundo da pregação homilética. Ela poderá inspirar o Ato penitencia], sem transformá-lo em “Celebração penitencial”. Algumas preces poderão brotar da ação concreta desenvolvida pela CF, sem se esquecerem as grandes lições da Igreja e do mundo, bem como a dinâmica quaresmal.

Cada ano, a Igreja no Brasil está oferecendo cantos para a Missa. É discutível se todas as partes deveriam ser sobre o tema da Campanha. Em todo caso, faz-se um sincero esforço para que esses respeitem a temática da Quaresma e das leituras bíblicas de Domingo.

Desta forma, a CF leva a Igreja no Brasil a fazer uma experiência na vivência da fraternidade. Esta experiência de fraternidade transforma-se em celebração no Tríduo Pascal, numa linguagem menos cósmica do que no hemisfério norte e mais histórica, bem dentro da caminhada libertadora promovida pela Igreja.

Texto de “Viver o Ano Litúrgico – Reflexões para os domingos e solenidades”, de Frei Alberto Beckhauser, Editora Vozes.

Quarta-feira de Cinzas – Ressuscitar das Cinzas

Quarenta dias antes da Páscoa, a Igreja abre solenemente o tempo de penitência, chamado Quaresma, em preparação para a celebração da Páscoa. É a Quarta-feira de Cinzas, entre nós bastante prejudicada pelo carnaval.

Neste dia, após a Liturgia da Palavra, em que se proclama o trecho do Evangelho em que Cristo recomenda a oração, o jejum e a esmola como exercícios de conversão (cf. Mt 6,1-18), realiza-se o rito da imposição das cinzas. Elas são sinal de penitência, no sentido de conversão. A conversão consiste, sobretudo, no reconhecimento de nossa condição de criaturas limitadas, mortais e pecadoras. No gesto de imposição das cinzas sobre a cabeça das pessoas, o sacerdote ou o ministro diz: “Convertei-vos e crede no Evangelho”. A conversão consiste em crer no Evangelho. Crer é aderir a ele, viver segundo os ensinamentos do Senhor Jesus. Pode-se usar também a fórmula tradicional: “Lembra-te que és pó e ao pó hás de voltar”. Numa das orações de bênção das cinzas se diz: “Reconhecendo que somos pó e que ao pó voltaremos, consigamos, pela observância da Quaresma, obter o perdão dos pecados e viver uma vida nova, à semelhança do Cristo ressuscitado”.

A origem das cinzas usadas tem seu significado. Elas são preparadas pela queima de palmas usadas na procissão de Ramos do ano anterior. Lembram, portanto, o Cristo vitorioso sobre a morte. A palma é símbolo de vitória e de triunfo. Assim, se os cristãos aceitam reconhecer sua condição de criaturas mortais, e transformar-se em pó, ou seja, passar pela experiência da morte, a exemplo de Cristo, pela renúncia de si mesmos, participarão também da vida que ressurge das cinzas.

Aqui vale a pena lembrar uma lenda egípcia. Fênix era uma ave fabulosa que durava muitos séculos e, queimada, renascia das próprias cinzas. Foi fácil perceber que ela é símbolo da ressurreição de Cristo e dos que aceitam viver na atitude de Cristo.

Certamente não é fácil aceitar ser cinza. Contudo, a fé em Jesus Cristo ressuscitado faz com que a vida renasça das cinzas. Jesus Cristo faz brotar a vida, onde o ser humano reconhece sua condição de criatura necessitada da ação de Deus. É entrar na atitude pascal.

Esta páscoa se vive na conversão, através dos exercícios da oração, do jejum e da esmola.
A imposição das cinzas não constitui um mero rito a ser repetido a cada ano. É celebração da vocação do ser humano, chamado à imortalidade feliz, contanto que realize o mistério pascal de morte e vida em sua vida fraterna.

Texto de “Viver o Ano Litúrgico – Reflexões para os domingos e solenidades”, de Frei Alberto Beckhauser, Editora Vozes.

Liturgia para a Quarta-feira de Cinzas

Acesse neste link o Especial de Quarta-feira de Cinzas

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