Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

“Entender para crer, Crer para entender”

01/07/2012

artigo

Santo Aurélio Agostinho
Bispo de Hipona (+ 430) 

Por Frei Ronaldo Fiuza Lima

1. Aos 11 de outubro de 2012, o Papa Bento XVI, agora emérito, convocou a Igreja para um ano de reflexão sobre a fé. Naquela data, ele promulgou, no Vaticano, a Carta apostólica sob a forma de Motu Proprio, intitulada “Porta Fidei”. Duas motivações/pretextos originaram a redação pontifícia: a) Os 50 anos da primeira sessão do Concílio Vaticano II; e b) Os 20 anos do Catecismo da Igreja Católica. Ambas eram celebradas exatamente no dia em que o Ano da Fé foi promulgado.

O documento recorda, ainda, as balizas cronológicas dessa celebração da fé. Ela inicia-se aos 11 de outubro de 2012. Seu término está marcado para a Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo, no domingo, 24 de novembro de 2013.

2. Sem dúvidas, o documento emanado pela Sé Apostólica pode ser lido e interpretado a partir de óticas e perspectivas muito diferentes. Algumas das diferentes leituras podem ser constatadas através das reflexões do Boletim Comunicações da Província deste ano: professores do Instituto Teológico Franciscano propõem, a partir de suas especialidades, caminhos para melhor compreender e vivenciar o Ano da Fé.

E sob a ótica patrística, o que pode ser dito sobre o documento Porta Fidei?  Qual a contribuição que o pensamento dos Pais da Igreja fornecem para a compreensão e celebração do Ano da Fé?

3. O documento pontifício poderia ser lido, numa perspectiva mais ampla, à luz da encíclica Fides et Ratio (Fé e Razão), promulgada pelo Beato João Paulo II, no dia 14 de setembro de 1998.

Antes de qualquer crítica, não se trata de explicar um documento pelo outro. Não é proposta uma reflexão sem referências à Sagrada Escritura ou à Patrística. Longe disso!

Ocorre, porém, que o documento Porta Fidei é muito breve: são apenas 17 parágrafos e 22 notas. A encíclica Fides et Ratio possui um teor mais extenso e melhor aprofundado: são 108 parágrafos acompanhados por 132 notas explicativas.

É óbvio que os textos são muito diferentes entre si, seja em seu contexto, em sua forma de abordagem, objetivos, características etc.

Tal constatação –  exterior, superficial e aparentemente sem importância – mostra que a encíclica Fides et Ratio traz muito mais elementos para compreender a perspectiva patrística sobre a fé do que a mais recente. E mais: o próprio título apresenta a grande temática, a maior contribuição que os Pais da Igreja fornecem para o conhecimento da problemática da fé.

Os primeiros séculos do cristianismo foram marcados pela contínua tensão entre fé e razão. Deslocar o eixo da reflexão apenas para a problemática da fé é minimizar a contribuição patrística.

4. Realmente, os autores dos primórdios cristãos (três primeiros séculos) não se ativeram à apresentação do que é a fé. Os textos patrísticos não pretendem indicar definições, conceitos, estudos específicos sobre a fé, ou sobre o ato de fé, relatar as características do ato de crer. Eles se preocuparam em apresentar os conteúdos da fé, diante das dificuldades do cristianismo nascente.

5. As dificuldades encontradas pelos primeiros autores eram enormes. O ambiente patrístico é marcado por disputas, dificuldades, problemas e perseguições oriundos de todas as áreas. Dentre as muitas críticas à fé cristã, pode-se elencar:

a) O judaísmo de então criticava a nova religião, em particular a crença dos cristãos no messianismo de Jesus de Nazaré. Para os cristãos, Jesus é o Messias, fato contestado pelos judeus.

b) Os pagãos perseguiam e ridicularizavam a fé cristã. Um exemplo bastante claro disso, ponta de iceberg, é a mais antiga representação do Crucificado. No monte Palatino, em Roma, aparece a figura de alguém ajoelhado diante de um homem crucificado. A cabeça desse homem é de um asno. Embaixo uma inscrição, em grego, zombava dizendo: “Alexandre adora o seu Deus”.

c) Os intelectuais criticavam, entre outras coisas, o fideísmo ingênuo, crédulo e fanático dos cristãos. Exemplo é a atividade do filósofo platônico eclético Celso. Por volta de 178, ele escreve um texto em que, implacavelmente, zomba da fé cristã, seus ritos, usos, personagens, práticas e costumes. Foram necessários 70 anos para que Orígenes, em 248, rebatesse tais críticas, na sua conhecida obra Contra Celso.

d) O povo, a gente comum e os não-batizados criticavam os cristãos: incesto, orgia, misantropia, canibalismo, infanticídio eram algumas das críticas feitas. O pequeno tratado “Octavius”, de Minúcio Félix, escrito por volta de 190, apresenta a opinião daqueles que, não conhecendo o cristianismo, o ridicularizavam.

e) Para o Estado Romano, os cristãos eram insubordinados, subversivos. Eles não se adequavam à máxima administrativo-política romana: Divide et Impera. A organização eclesial não se atinha aos limites impostos pelos governantes imperiais. Além disso, os cristãos eram também criticados por outros motivos: impiedade e ateísmo.

Realmente, os cristãos não criam nas divindades pagãs nem no “genius” do Imperador. Por não cultuar os deuses, eles eram acusados como motivo de derrotas das legiões, catástrofes, intempéries, carestias… Os cristãos teriam irritado os deuses. Eles se vingavam infligindo desgraças aos romanos. Para aplacar a ira dos deuses, os cristãos eram então sacrificados no Circo Máximo ou no Coliseu.

f) A gnose e os diferentes gnosticismos geravam igualmente muitas aflições aos cristãos. Era prática gnóstica – que vivia no seio da comunidade católica – disseminar heresias, também por meio de evangelhos apócrifos, um conhecimento salvífico a que apenas poucos eleitos poderiam ter acesso.

6. Não obstante tais problemáticas, agravadas pelo derramamento de sangue (mártires) ou pelas torturas (confessores) sofridas pelos cristãos, houve o embrionário desenvolvimento da teologia.

Remontam ao período patrístico as primeiras formulações, ainda incoativas, dos conteúdos da fé cristã.

Surge na atividade dos pais apostólicos e, posteriormente na dos apologistas e das gerações seguintes, o desenvolvimento em primeiríssimo lugar, da cristologia.

Foi missão dos primeiros cristãos apresentar a fé em Jesus Cristo, no combate ao docetismo, arianismo, apolinarismo. Também os Pais da Igreja buscaram as primeiras formulações trinitárias, na trilha da cristologia.

Eles combatem as heresias trinitárias: sabelianismo, modalismo, adocionismo, patripassianismo, subordinacionismo, entre outras.

Além dos aspectos cristológico e trinitário, não obstante as muitas dificuldades, observa-se o surgimento das primeiras reflexões teológicas: escatologia, eclesiologia, pneumatologia, mariologia.

Também é preocupação patrística a reflexão sobre outros conteúdos da fé cristã, tais como a exegese, a espiritualidade, a doutrina moral, os aspectos jurídicos, litúrgicos, pastorais, catequéticos  e de evangelização do cristianismo. Além disso, datam dos primeiros séculos as primeiras formulações da fé (credo atanasiano, nicenoconstantinopolitano, calcedonense e outros), além do Símbolo dos Apóstolos.

7. Diante do exposto, resulta clara a dificuldade dos cristãos em fazer um discurso mais bem elaborado sobre o ato de fé. Repete-se: o período patrístico, em particular o preniceno, está voltado à explanação dos conteúdos mesmos da fé, não acerca do que significa crer.

8. Enfim, além do conturbado contexto no qual os Padres da Igreja estavam inseridos, havia também discussões de diferentes opiniões no seio do próprio cristianismo a respeito da fé e da razão.

Os exemplos poderiam ser muitos. Para simplificar, são apresentados apenas dois, que indicam o posicionamento antagônico dos primeiros autores:

De um lado, Tertuliano (+ 200-220). Em sua obra “De praescriptione haereticorum” 7, pergunta: “Que há de comum entre Atenas e Jerusalém, e entre a Academia e a Igreja?” Aqui ele se faz eco de outros autores, como por ex., Taciano, o Sírio, discípulo de S. Justino Mártir, cuja data de morte é ignorada. Tais autores defendem uma radical separação, nítida ruptura entre fé e razão, entre cristianismo e filosofia.

Contrários ao radicalismo fundamentalista de Taciano e Tertuliano encontram-se –  ainda bem! – numerosos outros autores. Dentre eles pode-se indicar S. Justino Mártir (+165), Clemente de Alexandria (+215), Orígenes, (+ 254), S. Basílio Magno (+ 379), Gregório de Nissa (+ 395), S. Agostinho de Hipona (+ 430), entre muitos outros.

Clemente de Alexandria, por outro lado, é um exemplo paradigmático de diálogo e tolerância para com a Filosofia e a Razão. Ele insere-se na perspectiva de S. Justino Mártir e de seu mestre em Alexandria, Panteno (+ 200). Clemente de Alexandria, em sua obra O Pedagogo (3, 11, 78,1) questiona duramente alguém que relutava em estudar a fé:“Como és crente? Como amas a Deus e ao próximo se não filosofas?”.

Para Clemente, assim como para os demais autores acima indicados, o amor a Deus, a fé, o conhecimento passa necessariamente pelo trabalho de amar a sabedoria. A fé não é apenas um ato movido pela “efervescência” espiritual. Ela é o resultado de um trabalho sério de estudo e de conhecimento da Verdade, que é o Logos de Deus encarnado: Jesus, Pedagogo da Humanidade.

9.  Concluindo, vê-se que o pensamento patrístico aborda uma temática cara tanto à Fides et Ratio, como também à Porta Fidei: fé e razão são inseparáveis.

A partir da indissociabilidade entre fé e razão, poderiam decorrer as seguintes conclusões:

a) Passar pela “Porta Fidei” representa um desafio interpelador para um aprofundamento nos estudos teológicos. “Celebrar a fé” significa estudá-la zelosamente e transformá-la numa prática de conversão e construção do Reino de Deus.

b) Celebrar o Ano da Fé significaria, para os Pais da Igreja, um renovado ânimo de aprofundamento das razões de nossa fé, estabelecendo um vínculo cada vez mais firme entre Fé e Razão.

c) Enfim, dentre as muitas possibilidades de desdobramentos, respondo a questão acima formulada. Parece que há uma valiosa contribuição dos Pais da Igreja para a vivência e celebração do Ano da Fé. Talvez, se eles pudessem se dirigir aos cristãos do séc. XXI, na distância de 15 séculos que nos separam, eles proporiam o aprofundamento da fé pelo estudo. De modo particular, pode-se – sem moralismos! – perguntar: há quanto tempo lemos e estudamos, pela última vez, os documentos do Concílio Vaticano II? Já lemos e estudamos a versão integral do Novo Catecismo da Igreja Católica? Se não o tivermos feito, talvez fosse uma boa provocação fazê-lo nesses meses conclusivos do Ano da Fé: ler e estudar – individualmente ou em grupos, comunidade – ambos documentos.

d) Enfim, poder-se-ia tomar como lema patrístico para o Ano da Fé o célebre axioma de Santo Agostinho, formulado magistralmente no Comentário aos Salmos, 118, XVIII, 3 (Coleção Patrística, ed. Paulus, vol. 9/3, p. 457-458): “Intellige ut credas” (entende para que creias), complementado por “Crede ut intelligas” (crê para que entendas).

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