Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Da amargura à doçura: uma estrada a ser percorrida

05/01/2019

 

                                                                                                                Imagem: Acnur (Agência da ONU para refugiados)

Pe. Ademir Guedes Azevedo, cp

Toda existência passa por contínuas mudanças. O devir é o princípio (arqué) que explica a origem de todas as coisas, segundo Heráclito de Éfeso. Sua máxima filosófica consagrou-se em toda a história do pensamento filosófico: “Tudo flui” (πάντα ῥεῖ). Sem as transformações, a vida adoece. A história atual sublinha o fluxo de multidões em movimento por todos os continentes, em busca de sobrevivência. Essa mudança é geográfica, mas toca diretamente a existência daqueles que deixam a pátria. Mesmo quando atravessam as fronteiras, continuam a luta por dias melhores. Quando estes irmãos, em suas sofridas lutas, encontram corações abertos e generosos, aquela terrível amargura existencial aos poucos se torna doçura.

A maioria dos impérios construídos com a soberba humana tornou o cotidiano de pessoas uma eterna amargura. Pensemos nas inúmeras perseguições empreendidas pelas potências do Egito, da Babilônia, da Grécia e, sobretudo, pela besta do Apocalipse que sinaliza o peso insuportável dos romanos sobre os ombros da primeira geração de cristãos. Tanta amargura! Mas não precisamos ir tão longe ao passado, vejamos hoje a amargura daqueles que devem atravessar as fronteiras entre Brasil e Venezuela, México e Estados Unidos, os que insistem em entrar através da ilha de Lampedusa na Itália para escapar das guerras, etc. Essa amargura, contudo, pode ser superada com a razão cordial, fundada sobre a doçura, que ver o próximo sem preconceito, que põe a hospitalidade como oitavo sacramento e que aceita o desafio de construir uma nova convivência com os estrangeiros. A doçura, que se manifesta em ações concretas, na verdade se trata de uma leitura atual daquela Palavra que se encontra no Evangelho: “Pois eu tive fome, e vocês me deram de comer; tive sede, e vocês me deram de beber; fui estrangeiro, e vocês me acolheram” (Mt 25,35).

O imperativo da doçura realiza uma virada substancial em nossa sociedade. Cultivar sempre um otimismo realista, lutar em causas humanas que valem a pena, engajar-se em atividades de voluntariado que procuram realizar o bem gratuito, não propagar notícias falsas nas redes sociais, viver em atitude de doação são as grandes colunas de sustentação da doçura. No entanto, cada um de nós é chamado a lançar um olhar sobre si mesmo e avaliar quais são os pontos que nos tornam pessoas amargas conosco e com os outros. Essa experiência é interpretada pelos grandes místicos do cristianismo como primeira conversão; se trata de algo que carregaremos por toda a vida e que muda substancialmente o nosso modo de agir. Vejamos dois exemplos de personagens que passaram por tal conversão. O primeiro é São Francisco de Assis. Jovem vaidoso e tomado pelo ideal de honra, típico das grandes famílias medievais, não era sensível diante da dor dos outros. Mas até que um dia começa a sua aventura em direção a doçura. E isto foi só possível quando ele viu Cristo no leproso. Em seu testamento lê-se: “Foi assim que o Senhor concedeu a mim, Frei Francisco, começar a fazer penitência: como eu estivesse em pecados, parecia-me sobremaneira amargo ver leprosos. E o próprio Senhor me conduziu entre eles, e fiz misericórdia com eles. E afastando-me deles, aquilo que me parecia amargo se me converteu em doçura de alma e de corpo; e, depois demorei só bem pouco e saí do mundo” (Test 1-3). O que era amargo tornou-se doce para Francisco, mas só na medida em que ele começou usar a misericórdia para com o abandonado, encarnado no drama dos leprosos do contexto que vivia.

Outro personagem é São Paulo da Cruz (1694-1775). Depois de confessar-se em uma Igreja dos capuchinhos, fez o sério propósito de seguir a Cristo em penitência. Reconheceu toda a amargura de sua vida e procurou agir de tal modo a ver em Jesus Crucificado a doçura por excelência.

Todos nós somos necessitados de doçura. Como não sentir-se em paz diante da ternura de nossos pais que nos amam sem limites? Como não sentir a leveza da vida ao lado daqueles amigos que nos respeitam e se empenham para nosso crescimento? Imaginemos o cego Bartimeu quando foi tocado pela doçura das mãos de Jesus, uma nova luz o fez enxergar a vida a partir de outra ótica. Vejamos ainda aquele encontro do Homem da Galileia quando usa o perdão para com a adúltera, toda a sua amargura foi dissolvida. Como não deixar de imaginar o olhar penetrante de doçura de Jesus para com Mateus, no momento de seu chamado? Só a doçura nos faz ser realmente humanos e divinos.

Uma criança refugiada, na fronteira entre a Sérvia e Hungria, oferece seu biscoitinho que estava comendo aos soldados ferozes que revistavam com agressão os seus pais. Essa inocência, que é a máxima prova de doçura, fez um daqueles soldados derramar lágrimas de arrependimento. Este humilde gesto transforma a amargura dos violentos em arrependimento que faz ver a vida em modo completamente diferente. O cardeal vietnamita, Van Thuan, durante seus escuros anos no cárcere, todos os dias tentava aproximar-se de seus algozes para dar-lhes uma palavra de esperança e mostrar que é possível cultivar outro tipo de vida. A história nos mostra que, mesmo em meio ao mais duro sofrimento, os que cultivam a doçura serão sempre capazes de superar a amargura que gera as grandes desolações.

Estamos diante de um novo ano. O fluir da vida para ser marcado com dignidade precisa ter a doçura como centro de tudo. Eu desejo que cada um possa ser uma pessoa mais doce, que a amargura não assuma espaço entre nós brasileiros. O caos que assistimos com a violência verbal nas redes sociais pode ser superado se deixarmos aflorar a doçura que está adormecida dentro de nós. Mas precisamos de mais ética, de mais Evangelho, de participação ativa nas alegrias e tristezas das pessoas de hoje. Só assim poderemos construir um devir histórico pautado sobre a verdade que nos liberta. Esforcemo-nos todos para isso.

Feliz 2019 com muita doçura!


Pe. Ademir Guedes Azevedo é missionário passionista e mestrando em teologia fundamental na Pontifícia Universidade Gregoriana.

Download Best WordPress Themes Free Download
Download WordPress Themes Free
Download WordPress Themes Free
Download WordPress Themes
free download udemy paid course
download samsung firmware
Download Best WordPress Themes Free Download
ZG93bmxvYWQgbHluZGEgY291cnNlIGZyZWU=

Conteúdo Relacionado