Pe. Ademir Guedes Azevedo, cp
Toda existência passa por contínuas mudanças. O devir é o princípio (arqué) que explica a origem de todas as coisas, segundo Heráclito de Éfeso. Sua máxima filosófica consagrou-se em toda a história do pensamento filosófico: “Tudo flui” (πάντα ῥεῖ). Sem as transformações, a vida adoece. A história atual sublinha o fluxo de multidões em movimento por todos os continentes, em busca de sobrevivência. Essa mudança é geográfica, mas toca diretamente a existência daqueles que deixam a pátria. Mesmo quando atravessam as fronteiras, continuam a luta por dias melhores. Quando estes irmãos, em suas sofridas lutas, encontram corações abertos e generosos, aquela terrível amargura existencial aos poucos se torna doçura.
A maioria dos impérios construídos com a soberba humana tornou o cotidiano de pessoas uma eterna amargura. Pensemos nas inúmeras perseguições empreendidas pelas potências do Egito, da Babilônia, da Grécia e, sobretudo, pela besta do Apocalipse que sinaliza o peso insuportável dos romanos sobre os ombros da primeira geração de cristãos. Tanta amargura! Mas não precisamos ir tão longe ao passado, vejamos hoje a amargura daqueles que devem atravessar as fronteiras entre Brasil e Venezuela, México e Estados Unidos, os que insistem em entrar através da ilha de Lampedusa na Itália para escapar das guerras, etc. Essa amargura, contudo, pode ser superada com a razão cordial, fundada sobre a doçura, que ver o próximo sem preconceito, que põe a hospitalidade como oitavo sacramento e que aceita o desafio de construir uma nova convivência com os estrangeiros. A doçura, que se manifesta em ações concretas, na verdade se trata de uma leitura atual daquela Palavra que se encontra no Evangelho: “Pois eu tive fome, e vocês me deram de comer; tive sede, e vocês me deram de beber; fui estrangeiro, e vocês me acolheram” (Mt 25,35).
O imperativo da doçura realiza uma virada substancial em nossa sociedade. Cultivar sempre um otimismo realista, lutar em causas humanas que valem a pena, engajar-se em atividades de voluntariado que procuram realizar o bem gratuito, não propagar notícias falsas nas redes sociais, viver em atitude de doação são as grandes colunas de sustentação da doçura. No entanto, cada um de nós é chamado a lançar um olhar sobre si mesmo e avaliar quais são os pontos que nos tornam pessoas amargas conosco e com os outros. Essa experiência é interpretada pelos grandes místicos do cristianismo como primeira conversão; se trata de algo que carregaremos por toda a vida e que muda substancialmente o nosso modo de agir. Vejamos dois exemplos de personagens que passaram por tal conversão. O primeiro é São Francisco de Assis. Jovem vaidoso e tomado pelo ideal de honra, típico das grandes famílias medievais, não era sensível diante da dor dos outros. Mas até que um dia começa a sua aventura em direção a doçura. E isto foi só possível quando ele viu Cristo no leproso. Em seu testamento lê-se: “Foi assim que o Senhor concedeu a mim, Frei Francisco, começar a fazer penitência: como eu estivesse em pecados, parecia-me sobremaneira amargo ver leprosos. E o próprio Senhor me conduziu entre eles, e fiz misericórdia com eles. E afastando-me deles, aquilo que me parecia amargo se me converteu em doçura de alma e de corpo; e, depois demorei só bem pouco e saí do mundo” (Test 1-3). O que era amargo tornou-se doce para Francisco, mas só na medida em que ele começou usar a misericórdia para com o abandonado, encarnado no drama dos leprosos do contexto que vivia.
Outro personagem é São Paulo da Cruz (1694-1775). Depois de confessar-se em uma Igreja dos capuchinhos, fez o sério propósito de seguir a Cristo em penitência. Reconheceu toda a amargura de sua vida e procurou agir de tal modo a ver em Jesus Crucificado a doçura por excelência.
Todos nós somos necessitados de doçura. Como não sentir-se em paz diante da ternura de nossos pais que nos amam sem limites? Como não sentir a leveza da vida ao lado daqueles amigos que nos respeitam e se empenham para nosso crescimento? Imaginemos o cego Bartimeu quando foi tocado pela doçura das mãos de Jesus, uma nova luz o fez enxergar a vida a partir de outra ótica. Vejamos ainda aquele encontro do Homem da Galileia quando usa o perdão para com a adúltera, toda a sua amargura foi dissolvida. Como não deixar de imaginar o olhar penetrante de doçura de Jesus para com Mateus, no momento de seu chamado? Só a doçura nos faz ser realmente humanos e divinos.
Uma criança refugiada, na fronteira entre a Sérvia e Hungria, oferece seu biscoitinho que estava comendo aos soldados ferozes que revistavam com agressão os seus pais. Essa inocência, que é a máxima prova de doçura, fez um daqueles soldados derramar lágrimas de arrependimento. Este humilde gesto transforma a amargura dos violentos em arrependimento que faz ver a vida em modo completamente diferente. O cardeal vietnamita, Van Thuan, durante seus escuros anos no cárcere, todos os dias tentava aproximar-se de seus algozes para dar-lhes uma palavra de esperança e mostrar que é possível cultivar outro tipo de vida. A história nos mostra que, mesmo em meio ao mais duro sofrimento, os que cultivam a doçura serão sempre capazes de superar a amargura que gera as grandes desolações.
Estamos diante de um novo ano. O fluir da vida para ser marcado com dignidade precisa ter a doçura como centro de tudo. Eu desejo que cada um possa ser uma pessoa mais doce, que a amargura não assuma espaço entre nós brasileiros. O caos que assistimos com a violência verbal nas redes sociais pode ser superado se deixarmos aflorar a doçura que está adormecida dentro de nós. Mas precisamos de mais ética, de mais Evangelho, de participação ativa nas alegrias e tristezas das pessoas de hoje. Só assim poderemos construir um devir histórico pautado sobre a verdade que nos liberta. Esforcemo-nos todos para isso.
Feliz 2019 com muita doçura!
Pe. Ademir Guedes Azevedo é missionário passionista e mestrando em teologia fundamental na Pontifícia Universidade Gregoriana.