Dom Walmor Oliveira de Azevedo
“Amai-vos uns aos outros como eu vos amei,” o princípio do amor cristão está representado neste mandamento maior de Jesus Cristo, ensinado aos seus discípulos. Assim, cultivar a concórdia é um compromisso com esse princípio máximo da fé cristã: o apóstolo Paulo, neste horizonte, faz essa indicação como valor existencial e civilizatório de grande importância para o desenvolvimento integral da comunidade. Ao cultivar a concórdia cabem os dissensos, como processos de avaliação crítica e de juízos, com força construtiva para desenhos de horizontes largos e novos caminhos. Já na contramão da concórdia, corre-se o risco de haver barbáries e torna-se impossível a construção de projetos em comum. Cultivar a concórdia jamais significará, como popularmente se diz, “fazer vista grossa” para incongruências e prejuízos impostos a valores cristãos.
Os dissensos construídos como diálogos civilizados têm propriedades para depurar escolhas e promover os necessários consensos em torno da verdade, do bem, da justiça e da paz. Cultivar a concórdia assenta-se como ato humano e comunitário no compromisso com a verdade, com a vida, a justiça e a paz. Não se pode calar diante de escolhas e silêncios quando se trata da defesa da vida, em todas as suas etapas, isto é, da concepção ao declínio com a morte natural. Concórdia nunca será sinônimo de conivência. O respeito concedido ao outro não negocia as diferenças em termos de princípios e valores. Ora, neste horizonte, se desenham as escolhas, incluindo políticas, considerando-se a impossibilidade de se negociar o inegociável.
A concórdia, como valor evangélico primordial, fermento para o diálogo e relações civilizadas, não relativiza valores. A concórdia como qualidade espiritual e humana, importante no combate a violências e desrespeitos, não perde sua força ao assentar-se em princípios inegociáveis. O cultivo da concórdia propicia o relacionamento civilizado entre diferentes e até opostos, fecundando atos civilizatórios na contramão de barbáries e absurdos que atingem vidas, atrasam processos de desenvolvimento integral, acirram as desigualdades. A concórdia, na propriedade de seu significado, é indispensável no incremento das mudanças civilizatórias urgentes da contemporaneidade. Nunca jamais deve significar relativização de posturas éticas. O cultivo da concórdia permite diálogos entre diferentes, sem conivência de negociações que relativizem valores.
Na mais genuína tradição mística e espiritual do cristianismo, os cristãos sabem que não têm aqui cidade permanente, estão a caminho e, pelo caminho, têm a missão de marcar a sociedade, na qual se inserem e vivenciam a sua cidadania, com o sabor do Evangelho de Jesus Cristo. Por isso, sabe-se não ser o mundo um paraíso, mas caminho para o Reino de Deus. A convicção a respeito dos preceitos do Reino não permite relativizações e negociações espúrias. O bem maior há de valer sempre. E o cristão não foge ao embate do diálogo e do testemunho. A clareza a respeito das contradições no interior da sociedade lhe dá a possibilidade da concórdia e da firmeza, que não deixa espaço para negociações sobre o que é intocável. Um exemplo claro é a força dos valores evangélicos na contramão da ideologia de gênero, que força a entrada nos ambientes educativos e nas práticas culturais, ameaçando famílias. Sem belicosidade, em nome da concórdia que não é conivência ou um pactuar silencioso e omisso, está o exercício de narrativas que afirma as convicções cristãs, engaja-se em defesa dos princípios e, firmemente, faz escolhas de ordenamentos, de nomes na política e de práticas que perpetuem o compromisso com estes mesmos valores.
Cultivar a concórdia é uma urgência num tempo de violências diversificadas e aterrorizantes, como exercício civilizatório indispensável para não se fazer inóspita e beligerante a convivência, aumentando medos e pânicos, impulsionados por agressividades e juízos míopes de situações humanas. Reafirma-se que a concórdia, como bem evangélico e das civilizações, só se alicerça na fidelidade e vivência de um conjunto intocável de valores e princípios que precisam ser ensinados e praticados, narrados e testemunhados como aposta em um tecido cultural consistente e no pluralismo contemporâneo. Antes de se esvair no desatino de opiniões e subjetivismos, urgente é projetar no horizonte do cotidiano humano a reafirmação de princípios que fecundam e geram a força da concórdia.
A concórdia, para além de simples irenismo, é o caminho para a paz, construída na verdade, sem permitir que alguém dela se esquive, fugindo de diálogos esclarecedores. É preciso colocar sobre a mesa opções a serem confrontadas, cotidianamente, sobretudo em se tratando da representatividade popular. É hora de investir na concórdia como sinônimo da verdade e da paz, como ordem a ser respeitada e como compromisso com a justiça a ser promovida. Vale cultivar a concórdia como valor evangélico para fecundar o novo humanismo, esperado e urgido neste tempo.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo é Arcebispo de Belo Horizonte (MG) e presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)