Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Como se sente um bispo aposentado (Emérito) morando junto aos hansenianos?

19/04/2008

Depoimento de D. Pascásio Rettler, OFM – publicado na Revista Grande Sinal, vol.49, 1995, pp. 677-684.

Introdução

“Sou Frade franciscano por opção e Bispo por imposição”. Estas palavras já são suficientes para dar uma resposta à pergunta que do Redator da Revista “Grande Sinal”, Frei Nilo Agostini dirigiu a mim. Mesmo assim disponho-me a falar um pouco de meu trabalho e de minha experiência junto aos hansenianos.

De antemão devo dizer que nada há de especial ou extraordinário no serviço aos irmãos hansenianos. É simplesmente conseqüência natural, depois de 22 anos de serviço, como bispo franciscano, aos irmãos lavradores e mais pobres do Maranhão. Sou considerado bispo aposentado e “emérito”. Gosto, porém, ao assinar cartas ou relatórios de fazer entender que sou “bispo sem mérito”, pois o mérito é todo e somente Dele.

É conhecido de todos que São Francisco, no início de sua caminhada, se converteu, principalmente, no momento de seu encontro com o irmão leproso (hanseniano). Espero que até o fim de minha caminhada terrestre possa alcançar também minha conversão…
Motivo de minha decisão de servir aos hansenianos

Ao completar 75 anos, todo bispo deve pedir ao Santo Padre a renúncia à administração e cuidado de sua diocese. Meio ano antes de chegar aos 75, fiz meu pedido, por meio do Sr. Núncio Apostólico. Disse-me, na ocasião que não devia ter pressa e que era conveniente esperar mais um tempo. Alertou-me também que tal espera é, muitas vezes, longa. Insisti, porém, dizendo que já havia providenciado um trabalho pastoral “novo”. A isso o Núncio se comoveu e se prontificou a ajudar, junto ao Santo Padre para que rapidamente eu recebesse a autorização da renúncia. A resposta veio no dia em que completei 75 anos (26 de janeiro de 1990).

E porque me adiantei em providenciar um “lugarzinho” para os dias de minha “aposentadoria”? Em julho de 1989 falecera o Confrade Frei Alípio Both, que por mais de 30 anos, ele mesmo portador da hanseníase, servira como capelão no meio dos hansenianos, no Hospital de Pirapitingüí, SP. Só fiquei sabendo da morte do confrade quando, numa ocasião, conversei por telefone com o Ministro Provincial, Frei Estevão Ottenbreit. A ele fiz a pergunta imediatamente: “Quem vai substituir a Frei Alípio?” Respondeu-me ele: “No momento, não temos nenhum Frade que possa substituir o confrade falecido”. No mesmo instante pedi-lhe que segurasse o lugar para mim.

Este pedido abalou-me, posteriormente, um pouco, pois comecei a pensar no que pedira. Mas também não era conveniente dar para trás.

Quando, tempos depois, fui a São Paulo conversar com o Ministro Provincial, interrompeu-nos Frei Pedro Pinheiro, que desejava mostrar um grande e belo quadro que pintara: São Francisco e o Leproso. Concluí, logo que Deus estava querendo mesmo me “empurrar” para o meio dos leprosos (hansenianos).

No dia seguinte, viajei para Jundiaí para falar com Dom Roberto Pinarelli, bispo diocesano a cuja diocese pertence a área do hospital de Pirapitingüi. O Sr. bispo estava numa reunião com o Clero de sua Diocese. Logo me atendeu, porém, e quis saber do motivo da visita. Ao torná-lo informado do meu desejo de ser capelão no hospital, disse-me que era justamente este o assunto em pauta na reunião. E lamentava que estava tendo dificuldades em encontrar um sacerdote que se dispusesse a prestar este serviço. Com alegria, pois, me aceitou como capelão.

Três acontecimentos me faziam ver que a minha primeira decisão deveria ser confirmada: a conversa com o Ministro Provincial, o quadro artístico de São Francisco com o leproso e o encontro com Dom Roberto. Era o “empurrão” do Espírito Santo para que um bispo aposentado pudesse servir aos irmãos e irmãos hansenianos.

Ao me despedir dos irmãos e colaboradores de Bacabal, MA, meu sempre eficiente Vigário Geral, Frei Heriberto Rembecki, Ofm, me deu, com “ar malandrinho” um consolo: se pegasse a lepra, esta se iria manifestar somente após 10 anos, quando já estaria morto. Alguns, realmente, me diziam que era horrível cuidar dos hansenianos e me incentivavam a desistir do propósito…

Parti de Bacabal com saudade dos colaboradores e da Diocese. Comecei, porém, com alegria, em fevereiro de 1990, meu novo trabalho pastoral no Hospital “Dr. Francisco Ribeiro Arantes”, como é conhecido em Pirapitingüi, Município de Itu e Diocese de Jundiaí, SP.

No dia 18 de fevereiro de 1990, celebrei minha primeira missa na Vila dos hansenianos, recebendo a “posse” pelo bispo Dom Roberto. Muitos doentes participaram da missa. Fiquei, naturalmente, um pouco chocado, ao celebrar, com tantos doentes a Eucaristia. E mais me chamou a atenção o modo como esses doentes fracos e pobres, com alegria, recebiam seu capelão. Senti que estavam felizes, sobretudo, por terem de novo um sacerdote no meio deles para oferecer-lhes os Sacramentos e celebrar a Eucaristia, sua fonte principal de consolo e força. Ao mesmo tempo, senti-me muito envergonhado: nos rostos deles, muitos desfigurados, marcados pela dor, havia uma alegria que se irradiava pela longa salva de palmas ao lhes ser apresentado. Raras vezes senti, durante minha vida sacerdotal, tamanha alegria interior, como esta “Primeira Eucaristia”.

Não tenho dúvidas de que até agora fui mais enriquecido pelos irmãos doentes do que eu pude dar a eles. Sei também que os anos de bispo no meio dos irmãos de Bacabal, que muito me marcaram, prepararam-me para poder assumir minha nova tarefa pastoral no meio de irmãos tão sofredores e, sem dúvida, por causa da doença, marginalizados e excluídos.

Problemas e dificuldades para uma pessoa de saúde morar no meio dos hansenianos

Desde minha primeira visita ao hospital, havia decidido morar no meio dos doentes. A casa que servira de moradia para o falecido Frei Alípio estava ocupada por um doente. Não havia mais, portanto, uma residência própria para o capelão. Como “Westfaliano” (dizem que são teimosos) não desanimei e morei por 5 meses na sacristia da capela. Faltava, contudo, a licença para morar no hospital. Há uma lei que proíbe isto. Falei com o administrador do hospital, Dr. Décio, e com a Diretora, Dra. Ediléia, tentando conseguir a licença.

O próprio Supervisor da Saúde, de Sorocaba, Dr. Ganini, me prometera que se interessaria junto ao Secretário de Saúde de São Paulo. Uma vez que a tramitação demorava, decidi ir pessoalmente a São Paulo para conversar com Dr. Pinotti. Frei Constâncio Nogara, também já havia falado com ele sobre o assunto. Feliz coincidência: o recepcionista da Secretaria era natural de Pedreiras, diocese de Bacabal. Por intermédio dele, consegui logo, uma audiência com o Secretário. Outra coincidência: na mesma oportunidade, Dr. Ganini chegava. E a resposta veio clara: “Existe a lei, mas a caridade passa por cima. O Senhor pode morar dentro do hospital”. Mas, morar onde ?

Na sacristia ainda havia lugar para uma cama e resolvi morar lá até que pudesse ficar pronta uma casa que podia ser construída perto da Igreja. Rapidamente ficou pronta: 3 cômodos, cozinha, sala-de-estar, escritório e quarto, com biblioteca. À casa dei o nome de “Betânia”, como lembrança da Vila Betânia que os pistoleiros de Bacabal queimaram, em sinal de protesto contra nossa pastoral em favor dos lavradores. Espero que esta Nova Betânia seja uma casa em que os hansenianos possam ser atendidos e animados em sua caminhada de sofrimento e possam encontrar, ao mesmo tempo o consolo que Jesus levou à casa de Lázaro e suas irmãs Marta e Maria. Graças a Deus, sinto-me muito bem nesta casa que também serve para a reunião de grupos e ensaio de cantos para um coral dos doentes.

O trabalho pastoral no meio dos irmãos hansenianos

Nas pequenas casas, nos pavilhões e enfermarias que compõem o hospital moram 870 doentes. Mais de 100 doentes moram na Psiquiatria. Toda manhã, pelas 08h00, viajo num pequeno Fiat, pelas ruas da Vila, visitando os doentes, procurando conversar com eles sobre seus problemas e necessidades. O supermercado é o lugar em que encontro sempre um grupo de doentes. Ali paro por uma meia hora. É um lugar estratégico.

As enfermeiras sempre me avisam quando um doente deseja ou precisa receber os Santos Sacramentos. Geralmente, alguns Ministros da Eucaristia de Itu, levam a Eucaristia aos doentes e me ajudam, aos domingos, nas celebrações eucarísticas.

Cada domingo, celebro às 08h00 na Igreja do hospital que foi toda renovada. Encontrava-se em estado deplorável. Às 10h00 celebro na Capela de São Francisco, igualmente, dentro da área do hospital. Esta capela foi construída com a ajuda de parentes e amigos da Alemanha. Serve, especialmente, aos doentes que, por causa de seus pés deformados, não podem caminhar até a Igreja. Nela se pode entrar, facilmente, com cadeiras de rodas. É louvável a boa participação dos doentes nas duas celebrações. E, em muitos domingos, participam da missa Grupos de Solidariedade que querem se unir aos doentes para a celebração da Eucaristia. Em muitos domingos, celebro uma terceira missa numa das paróquias de Itu. Durante a semana, celebro às 18 horas, em casa, com um grupo de doentes.

Além disso, uma vez por mês dou assistência religiosa a um grupo de Cursilhistas de Itu. Prego diversos retiros para Fraternidades da OFS e retiros mensais, no próprio hospital. Nesses retiros mensais, faço uma reflexão sobre o hanseniano no tempo de Cristo, de São Francisco e nos dias de hoje. Depois, os participantes visitam os doentes. Ao voltar, fazemos uma reflexão sobre seus encontros com os enfermos. Termino sempre com a Santa Missa. Por três anos fui assistente espiritual da Fraternidade da OFS, em Sorocaba, na Paróquia Santa Rita. Muitas vezes, ainda, sou solicitado para pregações nas festas de padroeiro das paróquias de Itu e cidades vizinhas.

Nas festas litúrgicas, aproveito sempre para animar os doentes. Comovente é a Semana Santa, com o Lava-pés dos doentes, a Procissão de Nosso Senhor Morto, a Mãe das Dores, etc. Também na festa do Corpo de Deus não falta a procissão, da qual os doentes participam, mesmo que isto custe muito sacrifício. No Natal, construímos um grande presépio que abrange todo o presbitério da capela. Por causa do grande número de moradores no bairro em volta do hospital, cerca de trinta mil, sem assistência de um padre, muitos participam da vida eclesial do hospital e ali vão para batizar seus filhos ou celebrar o matrimônio. Outras tantas vezes, pedem visita a seus doentes. Nos três primeiros anos celebrei a missa dominical na Vila Martins, vila dos “egressos”! que são os doentes tratados em casa. Quando tenho que me ausentar, nos fins de semana, substituem-me os frades do Convento São Francisco, em São Paulo, principalmente Frei Atílio Abati.

Assistência social aos hansenianos

Somente palavras bonitas e piedosas não resolvem os problemas dos doentes. De maneiras muito diferentes fui descobrindo como ajudar os doentes por meio de medicamentos, material de curativo, etc. Com a ajuda de parentes e amigos da Alemanha e do Brasil, conseguir arranjar medicamentos especiais para a hanseníase pela Medeor e grupos de solidariedade.

Quando veio a primeira remessa de medicamentos da Alemanha, via aérea, houve muitas dificuldades na alfândega, apesar de toda a documentação estar em ordem. Eu dizia apenas aos funcionários do aeroporto que Deus iria ajudar aos doentes e daria um jeito. Quando cheguei, na manhã seguinte, ao aeroporto para buscar os medicamentos, os responsáveis me disseram: “Frei, leve logo tudo para o hospital porque ontem à noite morreu um dos nossos funcionários. Não queremos morrer aqui”. Certamente, tinham considerado minhas palavras do dia anterior como uma “ameaça” e a morte como um castigo de Deus. Repeti-lhes que não desejava mal a ninguém, mas que também eles não prejudicassem aos doentes…

Também tive que iniciar uma reforma nas enfermarias do hospital. Estavam em péssimo estado. Graças a Deus, a administração do hospital se incumbiu, em seguida, da reforma das outras enfermarias. Nestas enfermarias estão acomodados mais de 100 doentes em estado grave. Parentes e amigos da Obra Kolping, de minha cidade natal, colaboraram na construção e instalação de uma UTI, muito necessária para um atendimento melhor aos doentes. Para muitos doentes atingidos nos pés pela hanseníase, consegui uma Kombi que os levava, todos os dias, para a Fisioterapia. Outro grande problema para muitos doentes era a falta de cadeira de rodas e de próteses. Consegui 40 cadeiras de rodas e muitas próteses.

Certamente, não adianta dizer que tudo isso é obrigação do Estado. O que é certo é que pouco se faz pela saúde, particularmente quando se trata da saúde dos pobres.

Também consegui a instalação de uma Escola de Alfabetização. Anualmente trinta doentes aprendem a ler e escrever. Desta maneira se ocupam melhor. Cuido até de providenciar livros e revistas. Também me encarrego de possibilitar uma terapia ocupacional, favorecendo a aprendizagem de diversas profissões. O que sempre me surpreende é a resposta dos doentes à pergunta: Como vai? Vou bem, respondem. Ensinam a gente a não se queixar de nada.

Destas considerações pode-se perceber que a hanseníase, mais do que um problema médico, é também um problema social que, em geral, acomete as populações que não tem acesso à boa condição de vida. É uma moléstia como outra qualquer, cujo contágio é muito difícil. O que é preciso: combater os preconceitos injustos e infames que, lamentavelmente, ainda pesam sobre o Mal de Hansen.

O doente de Hansen não precisa de compaixão, mas muito de solidariedade e compreensão. Quando cheguei aqui no hospital, logo me confidenciaram: “se quiser ganhar a confiança dos hansenianos, não deve ter medo deles”. Minha convivência e experiência me provam esta afirmação… O hanseniano pode também cuidar dos seus filhos, tratar a sua doença, regularmente. Era costume tirar a criança recém-nascida e levar logo a um “Preventório” (hospital especial, ou melhor, creche para estas crianças). Hoje, graças a Deus, não existe mais este preconceito e já batizei a primeira criança nascida aqui no hospital. A pessoa doente ainda precisa muito do apoio de sua família, da compreensão das pessoas que a cercam. Mais do que pela doença, muitos doentes sofrem pelo abandono da família. “A família não me visita mais”, dizem. Sentem-se, então, realmente excluídos.

É também minha missão de capelão reativar o amor dos familiares com seus entes queridos doentes: pai, mãe, irmãos ou filhos… Para mim, pessoalmente, esta convivência de quase seis anos com os hansenianos é uma aventura a mais, como frade e capelão. Vejo que tudo se torna motivo para melhor louvar o Senhor. O que posso fazer é decorrente da missão que um dia assumi.

Dia-a-dia de um bispo aposentado no meio dos irmãos hansenianos

Pelas 6 horas da manhã preparo meu café, faço a oração da manhã, vejo o noticiário, visito os doentes e cuido da correspondência. Almoço sempre na cozinha de um doente. Às 18 horas celebro a Eucaristia em casa, com a participação de um grupo de doentes. Pelas 20 horas visito a um doente, em sua casa. Ali, costumam se reunir, normalmente, alguns doentes para debater os seus problemas e os do hospital, até às 21 horas. À noite tenho ainda um bom tempo para leitura e estudo.

Mensalmente participo da reunião do Clero da Diocese e quando possível, da reunião dos confrades do Regional de São Paulo. A cada quinze dias, passo um dia no Convento São Francisco, em São Paulo, para não perder o contato com os irmãos da Ordem Franciscana. Anualmente, participo da Assembléia da CNBB, em Itaici. Não considero que alguns bispos me chamem “fraternalmente”, como a todos os bispos aposentados de “bispo excluído”. De fato, não tenho direito a voto. Como bispo aposentado, com mais de 80 anos de idade, posso ainda votar como brasileiro. Isto me basta.

Finalizando estas considerações, posso apenas dizer como bispo aposentado que me sinto muito feliz e realizado. Peço a Deus e aos irmãos que rezem por mim, para poder servir aos irmãos hansenianos até o fim da minha vida.

Cada vez que faço a encomendação de um irmão hanseniano falecido, sinto uma “santa inveja”. Vendo o corpo do falecido, todo deformado no rosto, nas mãos, nas pernas, às vezes, amputadas, lembro-me da alma que esteve no corpo deste irmão, desta irmã. Com quanto merecimento não estará tal irmão ou irmã participando agora da glória do céu, junto com Deus, nosso Senhor e Pai. O enterro de um hanseniano se parece muito a uma procissão de triunfo. Muito já pude aprender destes irmãos doentes vivos e falecidos.

Pirapitingüi, 28 de agosto de 1995, festa de Santo Agostinho.
Frei Pascásio Rettler, Ofm
Capelão

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