O Papa Francisco promulgou sua lei anticorrupção na mesma semana em que na Itália a ministra de Assuntos Regionais Maria Stella Gelmini nomeava chefe da secretaria técnica do ministério Massimo Parisi, condenado em primeira instância a cinco anos pela falência de uma empresa editorial e pelos financiamentos estatais relacionados ao setor editorial. “Confirmo a escolha, sua condenação não é definitiva”, disse a ministra. Na realidade, é a confirmação do nível de total falta de pudor a que chegou uma parcela notável do mundo político italiano. O Azzeccagarbugli (personagem de Os noivos de Manzoni, ndt) é o ícone simbólico quando se trata de abordar a questão da transparência, decência e conflito de interesses na Itália.
A reportagem é de Marco Politi, publicada por Il Fatto Quotidiano, 30-04-2021. A tradução é de Luisa Rabolini (http://www.ihu.unisinos.br).
O paralelo com a nova lei do Vaticano se destaca porque é justamente no parágrafo 1 que o Pontífice estabelece que aqueles que são enquadrados ou vão ser enquadrados em níveis de gestão (incluindo cardeais que dirigem dicastérios ou entes religiosos) devem emitir uma declaração atestando não só que não respondem por condenações definitivas por delitos dolosos no Estado da Cidade do Vaticano ou no exterior, mas também de “não terem se beneficiado em relação aos mesmos de indulto, anistia, perdão e outras providências similares ou terem sido absolvidos dos mesmos mediante prescrição”.
Para total clareza, a providência papal acrescenta que os dirigentes do Vaticano ou candidatos devem declarar que “não estão respondendo a processos pendentes ou, tanto quanto o declarante saiba, a investigações por crimes de participação em uma organização criminosa; corrupção; fraude; terrorismo ou a ligados a atividades terroristas; lavagem de dinheiro proveniente de atividades criminosas; exploração de menores, formas de tráfico ou exploração de seres humanos, evasão ou fraude fiscal”. Ou seja, pesam na nomeação ou permanência no posto tanto a existência de um processo ainda não concluído com a sentença quanto o simples fato da abertura de uma investigação.
Se o motu proprio papal fosse levado para uma sala de aula universitária, significativamente intitulada “Disposições sobre a transparência na gestão das finanças públicas”, se mensuraria imediatamente a diferença entre uma forma rigorosa e transparente de configurar o governo da coisa pública e o chamado “garantismo interesseiro” que na Itália serve para encobrir as piores infrações. Ressalte-se que no exterior não existem contorções linguísticas do tipo “justicialismo” ou “garantismo”. Existem garantias processuais, e só. E existe a aplicação da lei, que os anglo-saxões chamam de “law enforcement”, para dar força à lei, aplicá-la. E nada mais.
O Vaticano não é o reino dos anjos. Precisamente por isso, no conclave de 2013, a maioria dos cardeais eleitores sinalizaram que estava na hora de acabar no Vaticano com os obscuros negócios do IOR, com os escândalos relatados pelo Wikileaks, com as grandes e pequenas histórias de corrupção e tráficos ilícitos. A atitude generalizada de “chega de italianos” podia ser atribuída em grande parte a tal estado da situação.
Jorge Mario Bergoglio manteve a lição em mente. Além de concluir a operação de limpeza do IOR e inaugurar uma relação de colaboração entre o Vaticano e estados estrangeiros para combater os crimes financeiros, o papa argentino intensificou as reformas para a transparência e o uso correto dos fundos. Certamente apoiado nessa tarefa pela chegada do magistrado Giuseppe Pignatone, a quem chamou para presidir ao tribunal vaticano.
Francisco aprovou um código de concorrências públicas, refundou a autoridade de controle financeiro, agora Autoridade para a Supervisão e Informação Financeira (ASIF) para confiar a ela – além do combate à lavagem de dinheiro – também o controle prudencial das operações do IOR. Ele aprovou uma nova lei sobre o ordenamento judiciário do Vaticano, fortalecendo o quadro de funcionários, dando um perfil autônomo ao departamento do Promotor de Justiça (o Ministério Público), garantindo autonomia e independência para o judiciário – embora hierarquicamente o pontífice romano continue sendo o chefe supremo – e atribuindo diretamente aos magistrados a disponibilidade da Polícia Judiciária.
Por fim, revolucionou o sistema financeiro da Cúria. Todos os fundos à disposição das várias administrações vaticanas, inclusive aqueles reservados pela Secretaria de Estado, passam para uma única unidade central: a Apsa, a Administração do Patrimônio da Sé Apostólica. O controle de sua utilização será submetido à Secretaria para a Economia. A Apsa será, portanto, a única instituição curial a gerir e administrar os bens móveis e imóveis da Santa Sé. O objetivo desta centralização, como explica o presidente da Apsa, D. Nunzio Galantino (ex-secretário-geral da CEI), é “definir procedimentos administrativos claros e controláveis”.
A nova lei anticorrupção é minuciosa, parece quase nórdica em sua precisão. Os dirigentes do Vaticano, sempre incluindo os cardeais, devem especificar em sua declaração que não possuem, mesmo por meio de terceiros, dinheiro ou investimentos ou participações em empresas e sociedades em países incluídos na lista negra de paraísos fiscais de lavagem de dinheiro. Por fim, devem garantir que todos os bens móveis e imóveis de sua propriedade ou até mesmo apenas possuídos, incluindo toda remuneração de qualquer tipo recebida, advenham de atividades lícitas. Uma proposta de “declaração preventiva” que seria interessante adotar no ordenamento jurídico italiano.
Neste contexto poderia causar riso a proibição de Francisco de que os cardeais chefes de dicastério recebam presentes superiores a € 40. Basta pensar no halo de mártir de que desfruta na centro-direita italiana Roberto Formigoni, usuário final – entre outras coisas – de férias em que quarenta euros constituíam apenas as despesas para bebidas e café. Enquanto isso, para colocar os pontos nos “i”, o papa decidiu em 30 de abril de 2021 que os cardeais, se necessário, serão processados pelo tribunal normal do Vaticano e não terão mais o privilégio de ir a julgamento perante o Tribunal de Cassação do Estado papal. A era dos “príncipes da igreja” acabou.