Interpretações fundamentalistas da Escritura corroboram teorias da conspiração
Fabrício Veliq*
Se procurarmos com atenção, é possível encontrar quase diariamente alguma notícia que envolva algum movimento negacionista. Negação de que o ser humano tenha pisado na lua, negação de que o planeta teria forma ovalada, negação do aquecimento global ou ainda, mais destacado recentemente, os movimentos antivacinas. Esses são alguns exemplos, mas indicam um aumento considerável desse tipo de teorias conspiratórias, fomentadas por diversos canais no YouTube e fake news compartilhadas pelo Whatsapp.
Que esse tipo de movimento esteja se mostrando como grande ameaçador da sociedade parece evidente. Afinal, quando determinado grupo afirma que não tomará uma vacina por acreditar em alguma teoria conspiratória, ele coloca em risco o restante da população da região em que se encontra, uma vez que é sabido que vacinas só se tornam eficazes se uma quantidade significativa de pessoas a tomam, fazendo com que o vírus perca seu poder de circulação.
Da mesma forma, quando grupos que afirmam ser o aquecimento global uma mentira ocupam as cadeiras decisórias de seus países, isso pode levar ao agravamento da crise ambiental e, consequentemente, causar a morte de grandes populações devido a tsunamis, furacões e outras consequências naturais.
Os movimentos negacionistas são perigosos justamente por irem contra os fatos e dados empiricamente estabelecidos pela comunidade científica, ancorando-se somente em suas opiniões e crenças. Mas, talvez, o leitor e a leitora desse texto possam se perguntar: o que tem a ver a religião ou a teologia com isso?
É justamente esse o ponto fulcral. As religiões e algumas de suas teologias desempenham papel fundamental nesse caldo que engrossa e começa a transbordar em diversos países. No caso especificamente do cristianismo, as leituras fundamentalistas e literalistas do texto bíblico servem de base para alguns negacionismos.
Dentre eles, talvez, a ideia da terra plana seja a que mais salta aos olhos. Ao se ler o texto bíblico de forma literal é fácil afirmar que a Terra é plana, afinal, são diversas as passagens que falam a respeito dos quatro cantos da Terra, aos quais Deus enviou seus anjos e em momento nenhum se afirma que eles deram uma volta pelo globo terrestre. Até mesmo se tomarmos o texto de Jó 1,7, ao afirmar que Satanás chegou de uma “volta na terra”, tal tradução não se mostra a melhor dado o contexto do texto, sendo preferível a ideia de “ir e vir” pela Terra. Em outras palavras, a cosmologia bíblica pressupunha um mundo que era plano e, portanto, pregar sua literalidade implica em dizer isso.
Concomitantemente, também a ideia de não se medicar é presente em diversos discursos fundamentalistas cristãos. A ideia de que se Deus cura não é preciso tomar remédio ainda se faz presente em diversas pregações de pastores e pastoras espalhadas pelo mundo. Ancorando-se numa leitura literal de Mc 16,8 pregam que basta orar e toda enfermidade ou doença será extirpada, sendo, portanto, tarefa do crente expulsá-las de determinado corpo ou, em casos mais empolgados, também de um país inteiro ou do próprio mundo, como é possível perceber em diversas pregações e orações que ocorreram nos Estados Unidos e também no Brasil, sem contar os movimentos estelionatários que ofereciam feijões, óleos etc. para, por exemplo, “curar” alguém da Covid-19.
Esses exemplos podem servir para mostrar a influência que os movimentos religiosos, e no caso, cristãos possuem no fortalecimento de movimentos negacionistas. Nesse sentido, é tarefa teológica e cristã promover um ensino coerente e correto do texto bíblico, sempre mostrando-o e o ensinando dentro do seu contexto específico. Fazer isso, juntamente com a denúncia do mau uso do texto por parte de charlatões da fé é imprescindível para que o texto bíblico possa se tornar Palavra de Deus para a sociedade contemporânea.
Com isso em mente, não é difícil dizer que a teologia tem um papel importante a desenvolver na sociedade contemporânea e que, enquanto teólogos e teólogas, devemos assumir esse compromisso diante da sociedade.
Fabrício Veliq é protestante e teólogo. Doutor em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Belo Horizonte (FAJE), Doctor of Theology pela Katholieke Universiteit Leuven (KU Leuven), Bacharel em Filosofia e Licenciado em Matemática (UFMG). Autor do livro: Teologia no Século 21: novos contextos e fronteiras. Editora Saber Criativo E-mail: fveliq@gmail.com. Site: www.fabricioveliq.com.br.