Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

“Amizade é, antes de tudo, experiência de encontro”

17/07/2018

 

                                                      Imagem ilustrativa: Canva (www.canva.com/pt_br/modelos)

20 de julho, o Dia Internacional da Amizade.

 Vamos conversar sobre um tema belo e delicado: amigos, amizade. “Há palavras que fazem viver”, diz o poeta Paul Eluard. A palavra amizade é precisamente uma delas. Ela não se confunde com a camaradagem que une os companheiros de trabalho. Verdade, que pode começar por aí. É diferente dos laços amorosos que unem um homem e uma mulher no estreitamente dos corpos e dos corações. Isto não quer dizer que os casados não possam usufruir das benesses da amizade. André Comte-Sponville diz lembrar-se com emoção da afirmação de uma mulher referindo-se ao marido ao dizer: ‘É meu melhor amigo”.

♦ Difícil discorrer sobre a amizade: “Difícil falar de amizade sem cair na banalidade, ser taxado de idealismo ou quem ignora seus desvios. A amizade, como a música, é questão de justeza, de precisão; a amizade não tolera notas falsas; uma execução desequilibrada quebra a harmonia. Não é como uma troca de ideias agradável e mundana entre pessoas frequentando boa companhia, não se confunde com a experiência de camaradagem que une companheiros de trabalho ou de esporte, nem com a paixão amorosa. Há mil matizes na amizade, segundo as estações da vida mas sempre um “não sei o que” a caracteriza, um sabor único ao coração e que o coração reconhece” (Marie-Thérèse Abgrall, Saveurs d’amitié, Christus 209, p.8).

 Tentemos ir adiante. Há tantas amizades: aquela que vivem os colegas da escola ou de um clube esportivo; os que viveram juntos a experiência de excursões; os homens e mulheres maduros que gostam de se encontrar simplesmente pela alegria do encontro, em torno de um copo. Camaradagem? Amizade?

♦ Triste ouvir alguém dizer: “Não tenho mais amigos. Todos me abandonaram”. Uma tal constatação pode levar alguém ao mais profundo abismo, acelerar a destruição de um ser diante dos fracassos amorosos e profissionais ou simplesmente existenciais. Somente um amigo verdadeiro pode ser buscado para curar as feridas sem machucar mais ainda.

♦ O amigo não faz discursos, não precisa se preocupar com demonstrações, isto é, provas de amizade. A amizade é fortemente ancorada pela confiança colocada em alguém. Os dois caminham juntos, mas abertos. Os que se estimam como amigos evitam de manchar o relacionamento com qualquer sorte de paixão e pretensão de posse egoísta.

♦ No começo, sim, pode existir uma camaradagem. As crianças, os que frequentam jogos, os trabalhadores de uma fábrica são colegas e camaradas. Para que daí brote a amizade será preciso fazer vibrar uma outra corda, descobrir outra dimensão, ou seja, da interioridade. O momento em que costumam nascer amizades é no tempo da adolescência. Começa-se a estimar pessoas que estão fora do circuito familiar. Há um jogo de profunda estima entre dois que até então nada mais eram do que dois.

♦ A amizade é, antes de tudo, experiência de encontro, presença de um na vida do outro, um reconhece o outro com seu mistério e sua riqueza. No começo tudo parece depender uma “química”. No nascedouro da amizade há alegria de se reencontrar, prazer de estarem juntos, facilidade de comunicação. Os amigos se sentem bem um perto do outro, não somente pelo interesse da conversa nem por participarem de atividades em comum. Há uma espécie de acordo de fundo que se traduz por certos índices: uma claridade no semblante, olhares que se cruzam com certa conivência ou cumplicidade, vivacidade, gestos de cordialidade.

♦ Mais do que prazer, a amizade faz nascer alegria nos amigos, quer dizer um sentimento de crescimento da vida. Spinoza diz que na amizade vive-se a passagem para uma maior perfeição. Diante do amigo com ele descubro-me mais rico interiormente do que pensava. Parece que o amigo faz brotar o melhor de mim mesmo, sempre sem desejo de posse. Que riqueza!

♦ A amizade é a experiência de um acordo, de uma concórdia, de uma paz mais do que uma semelhança. Os amigos podem discordar um do outro, sem que nada se perca do acordo essencial entre os dois.

♦ Os amigos conversam, se comunicam. Mas as palavras não constituem o todo. Um dos charmes da amizade vem de uma “liga”, de uma feliz alternância entre silêncio e palavra. Se a palavra é essencial, ela não é indispensável Um relacionamento se torna efetivamente amistoso quando suporta o silêncio.

♦ Há muitas e belas páginas escritas sobre a caminhada e a amizade. Quantas amizades não foram nutridas ou alimentadas por longas horas ou dias de caminhada, passeio, competições, caminhadas em que se está lado a lado, próximos um do outro, mas levados pelo movimento e pelo ritmo. Cada caminhando com seu próprio passo, mas no mesmo ritmo. Não é o face a face. O olhar dos dois se dirige para o horizonte que é comum e livremente percorrido por um e pelo outro. Fala e silêncio, conversa e momentos sem fala. Estar perto, mas também viver em silêncio e separados. A amizade é como uma caminhada comum com pausas, retomadas. A concórdia interior supõe ou exige uma abertura a uma maior. A amizade é inseparável de uma busca, de um ideal, de uma comum aspiração.

♦ A amizade começa com a experiência de um encontro. Esse encontro, porém, só se tornará amizade se confirmado por um segundo, terceiro, e depois, por uma série de encontros. Se depois do segundo e em seguida acontecer decepção e vazio, o elã do começo nada mais terá sido que uma simpatia que costumamos conhecer em nossa vida. A amizade nasce e se alimenta de muitos encontros.


 

EM TORNO DA AMIZADE

Textos antigos

Teofraste ( 379-287 a.C.)

♦ Quando se dizia: “Ele é amigo deste homem”. Teofraste observava: “Então, por que ele é pobre e o outro rico? Quem não partilha os bens não pode ser chamado de amigo!”.

♦ Quando lhe perguntavam: “Quem são teus amigos?” Teofraste respondia: “Como é que vou saber? Sou rico, quer dizer, tenho muito dinheiro e poucos amigos”.

Epicuro (341-270 a.C.)

♦ A amizade deverá sempre procurada por ela mesma, embora tenha sua origem numa necessidade de ajuda.

♦ O que vale na amizade não é tanto a ajuda que os amigos podem nos dar mas nossa confiança em tal ajuda.

Cícero (106-43 a.C.)

♦ Que existe de mais delicioso do que ter alguém a quem nos dirigirmos como se fosse a nós mesmos? Que adiantaria a riqueza nos sorrir se não tivéssemos com quem partilhar e usufruir dela como nós? Ou então, quando miseráveis e pobres, que dor não ter alguém que se sinta tocado por nossa desventura?

♦ De todos os bens que recebi por sorte ou pela natureza não há nenhum que possa comparar-se à amizade com Cipião. Concordância de pensamento em termos de política, sábios conselhos a respeito de negócios particulares, momentos de descanso charmosos… essa amizade tinha tudo isso. Não tenho nenhuma ideia de um dia ter ferido Cipião fosse com que fosse. Nunca ouvi dele uma palavra que me desse tristeza. Sua casa era minha, nosso modo de viver o mesmo, tudo era comum entre nós, não somente servimos às armas juntos, como viajamos juntos e juntos passamos um tempo no campo. Que direi de nosso gosto comum pelo estudo e da vontade comum de crescer no saber?

Um eco do Novo Testamento

Na cristologia contemporânea percebe-se hoje um deslocamento para dois títulos, ambos de origem neotestamentária e que, talvez, respondam melhor à experiência atual: Cristo Amigo e Mestre. O título de “Amigo” aparece no Evangelho de João e sublinha a relação amistosa e confiante que Jesus estabelece com os crentes: “Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz seu senhor; chamo-vos amigos, porque tudo o que ouvi de meu Pai vos dei a conhecer (Jo 15,15). Cristo não é só Senhor que salva, mas o Amigo próximo que compreende e acompanha. A teologia atual sublinha a importância de um Cristo amigo numa época em que não poucos experimentam a solidão existencial.
José Antonio Pagola, “O caminho aberto por Jesus – Mateus”, p. 160

Dois amigos

Encontrávamo-nos em Atenas. Como o curso de um rio, que partindo de uma única fonte se divide em muitos braços, Basílio e eu nos tínhamos separado para buscar a sabedoria em diferentes regiões. Mas voltamos a nos reunir como se tivéssemos posto de acordo, sem dúvida porque Deus assim quis.
Nessa ocasião, eu não apenas admirava meu grande amigo Basílio vendo-lhe a seriedade dos costumes e a maturidade e prudência de suas palavras, mas ainda tratava de persuadir os outros que não o conheciam tão bem a fazerem o mesmo. Logo começou a ser considerado por muitos que já conheciam sua reputação.
Que aconteceu então? Ele foi quase que o único entre todos os que iam estudar em Atenas a ser dispensado da lei comum; e parecia ter alcançado maior estima do que comportava sua condição de novato. Este foi o prelúdio da nossa amizade, a centelha que fez surgir nossa intimidade; assim fomos tocados pelo amor mútuo.
Com o passar do tempo, confessamos um ao outro nosso desejo: a filosofia era o que almejávamos. Desde então éramos tudo um para o outro; morávamos juntos, fazíamos as refeições à mesma mesa, estávamos sempre de acordo aspirando os mesmos ideais e cultivando cada vez mais estreita e firmemente nossa amizade.
Gregório de Nazianzeno e Basílio Magno, Liturgia das Horas I, p. 1111-1112

Frei Almir Guimarães

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