Frei Jacir de Freitas Faria, OFM[1]
Gn 3,9-24 faz parte da passagem de Gn 2,4b–3,24, o segundo relato da criação, escrito quase 500 anos antes do primeiro, Gn 1,1–2, 4a. Trata-se de um mito, isto é, um modo simbólico de falar sobre a condição humana no paraíso e fora dele, o que nos leva a afirmar que Adão e Eva não existiram como pessoas. Nós somos o Adão (ser humano homem e mulher) e a Eva (mulher, a mãe dos viventes). O texto é uma construção literária para explicar a nossa origem e relacioná-la com Deus, o criador.
Ao longo da história, Gn 2,4b–3,24 foi fonte de inspiração para o judaísmo e o cristianismo. A partir dele, várias conclusões foram tiradas para explicar a origem do sofrimento humano, a punição divina, a submissão da mulher ao homem etc.[2]
Analisemos o texto a partir dos elementos mitológicos do fruto proibido, da árvore do conhecimento do bem e do mal, da nudez e da serpente.
a) Fruto proibido. O texto começa afirmando que Deus chama, e Adão ouve. Ouvir, na visão judaica, é tomar conhecimento, é saber. Até então, Adão e Eva não sabiam de nada. Viviam felizes no paraíso sem responsabilidades e sendo cuidados por Deus. Tinham unicamente a proibição de Deus de não comer o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, pois ele os levaria à morte. O interessante é que Adão e Eva comem, mas não conhecem a morte. Na verdade, trata-se não de uma morte física, mas da capacidade de libertar-se de Deus, tornando-se capazes de conhecer o bem e o mal, o que lhes traria a morte. O fruto mencionado não é a maçã. Essa confusão veio de São Jerônimo que, ao traduzir do hebraico “fruto do bem e do mal” para o latim, escreveu malum para mal. Malum, em latim, é também maçã. A partir daí não foi difícil para os ouvintes imaginarem uma maçã. Ao ser humano, após comer mitologicamente esse fruto, é conferida a faculdade de decidir pelo bem e o mal. Ele terá que pagar com a própria morte a opção feita no paraíso, a de não aceitar a sua condição de criatura. A primeira consequência de tudo isso foi a perda do paraíso. O comer o fruto da árvore da vida representa a nossa vida de criança. Criança pensa que a vida é eterna. Ela não tem consciência da morte. Tendo comido o fruto da árvore do conhecimento do bem e mal, o ser humano se coloca na condição de amadurecer para conhecer a morte.
b) Nudez. Diante de Deus, o ser humano percebe que está nu e tem medo de se expor. Nudez aqui não tem nada a ver com a moral da vergonha ou da sexualidade. Como entender isso? Por terem feito algo errado, era esperado o medo, seja o da morte, seja o de ter que conhecer e assumir responsabilidades. Adão e Eva não têm medo da morte. Nós não temos medo da morte. No mundo antigo, deuses eram representados nus. A nudez coloca o ser humano na condição de fertilidade, doadores da vida, que somente vem de Deus. Adão e Eva se veem como um deus diante de outro Deus mais poderoso, Deus-Javé, e têm medo dele. O medo é da responsabilidade de ter que procriar, o sair da idade pueril do paraíso terrestre e tornar-se adulto, o que exige responsabilidades.
c) Serpente. Começo com duas perguntas: Por que a serpente entra em cena? Qual a sua relação com a mulher e Deus? A serpente repete a fala de Deus, faz promessa, mas deixa a responsabilidade para a mulher. Nisso está o seu modo astuto de proceder. No entanto, nem a serpente, nem a mulher e nem o ser humano foram capazes de assumir a responsabilidade pelos atos praticados. Amadurecer exige responsabilidade, e nem todos estão preparados. A serpente representa a imortalidade. O ser humano, no contato com a serpente, almeja para si a imortalidade que dela emana. Não por menos, serpente, em aramaico jiwya, deriva da raiz jwy, que significa viver ou fazer viver, que se relaciona de forma semântica com o hebraico Jweh, o nome de Deus revelado a Moisés (Ex 3). Javé se traduz por Eu sou aquele que sou, o Deus da Vida que se dá a conhecer. A mulher do início do texto (isha em hebraico) passa a ser chamada de Eva (hevae ou hawwa em hebraico), a mãe dos viventes. Hawwa deriva do verbo hwh do nome de Deus A serpente no mundo antigo tinha vários simbolismos, relacionados, sobretudo, com a vida e o poder opressor de um país. Por isso, no Egito, o faraó tinha uma serpente sobre a sua cabeça, para representar o seu poder, a vida e sua imortalidade. A serpente era símbolo de vida pelo fato de ela viver sobre a terra, a grande mãe e trocar de pele. Na mitologia grega, a vara do deus da medicina possui serpentes enroscadas, o que permanece até hoje como símbolo na área médica. Na Babilônia, a divindade principal, Marduk, era representada por uma serpente-dragão. Em Israel, a partir de Gn, a serpente passou a significar a força do mal e expressão religiosa, uma concorrente de Javé, o Deus de Israel.
Conclusão
Depois desse ocorrido, a mulher passa a ter dores de parto. Assim como a serpente, que representa a fertilidade, a mulher torna-se fecunda, mas com dores. Mulher e serpente são desqualificadas na narrativa mítica[3]. Por outro lado, a mulher também, por causa da ação da serpente, torna-se súdita do homem. Ela terá desejo por ele, que a dominará (3,16). É a terrível sentença de punição para a mulher. Contrário a Gênesis, o livro Cânticos dos Cânticos, no capítulo 7, versículo 17, afirma: “Eu sou do meu amado, seu desejo o traz a mim”. Esse livro faz oposição ao pensamento de Gênesis, propondo que o amor, a relação homem e mulher, não é para gerar filhos, mas para o prazer. A parceria entre a mulher e a serpente resulta em opressão. Pelo fato de o homem ter aceitado a proposta dela, receberá a punição do trabalho exaustivo na terra, que se torna maldito por causa da atitude de desobediência humana (3,17). O poder da serpente leva o homem a viver de suor e fadigas. A serpente, o poder dominador, precisa desse trabalho forçado para sobreviver[4]. O homem se torna pó da terra e morre de tanto trabalhar. O mito explica o sofrimento pelo viés da opressão, que o lavrador conhecia e que perdura no nosso existir: serpente, sofrimento e responsabilidade, responsabilidade, sofrimento e serpente.
[1] Doutor em Teologia Bíblica pela FAJE-BH. Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de exegese bíblica. Membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quatorze. Inscreva-se no nosso canal: https://www.youtube.com/c/FreiJacirdeFreitasFariaB%C3%ADbliaAp%C3%B3crifos
[2] O estudo que iremos apresentar se encontra com mais informações em nosso livro: FARIA, Jacir de Freitas. As mais belas e eternas histórias de nossas origens: mitos e contramitos em Gn 1—11. Petrópolis: Vozes, 2015.
[3] REIMER, Haroldo. A serpente e o monoteísmo. In: Hermenêuticas Bíblicas, Contribuições ao I Congresso Brasileiro de Pesquisa Bíblica, São Leopoldo: Oikos; Goiânia: UCG, p. 119.
[4] SCHWANTES, Milton. Projetos de Esperança. Meditações sobre Gênesis 1-11. Petrópolis: Vozes, 1989, p. 80-81.