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Fr. José Carlos Corrêa Pedroso, OFMCap
“Observemos, portanto, as palavras, a vida e a doutrina, o Santo Evangelho daquele que se dignou rogar por nós a seu Pai e manifestar-nos o seu nome”. (RnB 22,41)
Francisco descobre o Pai ouvindo Jesus
São Francisco viveu uma profunda experiência espiritual de Deus Pai porque, acima de tudo, viveu Jesus Cristo. No seu tempo, era comum as pessoas chamarem a Deus de Pai, mas pensando na figura de Jesus Cristo. O que havia era uma idéia ampla de Deus, chamado de Pai, mas reconhecido na figura de Jesus (1).
No relativamente demorado processo de conversão de Francisco, são fatos marcantes o desencanto com as carreiras de comerciante e cavaleiro e, como ele mesmo afirma no Testamento, o encontro com os leprosos, de onde saiu transformado.
A experiência dos leprosos
Parece-me fundamental notar que a transformação que aconteceu na experiência com os leprosos está ligada a uma experiência de Deus Pai. Francisco disse que “com eles fiz misericórdia e, por isso, o que antes para mim era amargo, tornou-se doce” (Test 3). Misericórdia, a ”hesed hahamin” da Bíblia, é o amor que só Deus tem. No Novo Testamento, Jesus a atribui ao Pai. São Francisco amou os leprosos com o amor que é de Deus, foi transformado pela presença do Pai. E a presença sensível do Pai é sempre a pessoa do Filho. E não acontece sem a presença abrasadora do Espírito Santo, que é o amor entre o Pai e o Filho. Foi por esta razão que Francisco disse: “Assim, o Senhor me deu de começar a fazer penitência”; ele começou a mudar, a se transformar, a ter consciência da ação da Trindade nele quando se abriu para servir os leprosos.
A partir do encontro com os leprosos, Francisco sabe que tem que fazer um “nostos”, um caminho de volta para o Pai. Sua vida de conversão é iluminada pela parábola de conversão do Filho Pródigo, em que Jesus mostra o que aconteceu e o que ainda deve acontecer conosco. Saímos de casa, pensando que o importante era só levar o dinheiro do Pai, porque o mundo tinha tudo de bom com que poderíamos sonhar.
Voltamos, porque percebemos que o importante é estar com o Pai. Mais ainda: o importante é continuar o caminho que o Pai está fazendo, porque ele não terminou a criação. Ainda tem uma parte enorme, a ser feita conosco.
Faço notar que a linguagem neotestamentária e patrística nos habituou a falar em Deus “Pai”. Na sensibilidade de hoje, poderíamos dizer, como João Paulo I, que é “Deus Mãe”. O que importa é que toda a nossa vida flui a partir de Deus, Pai ou Mãe, pois é quem gera Jesus, o Filho.
A experiência da cripta de São Damião
É interessante observar que tanto a Primeira Vida de Celano quanto a Legenda dos Três Companheiros colocam logo em seguida à experiência com os leprosos um fato que me parece notável para toda a sua experiência posterior da Santíssima Trindade. Contam que ele convenceu um rapaz de sua idade de que tinha encontrado um tesouro. Dizem que os dois iam com freqüência a uma caverna, que o rapaz ficava esperando fora, mas Francisco entrava e orava profundamente. Cito do texto da Legenda dos Três Companheiros:
“Francisco o levava muitas vezes a uma caverna perto de Assis, e, entrando sozinho, deixava do lado de fora o companheiro, desejoso de possuir o tesouro; e assim, tomado de novo e singular espírito, orava ao Pai, às escondidas, cuidando que ninguém soubesse o que estava fazendo lá dentro a não ser Deus” (LTC 12). O texto correspondente de Celano diz: “O homem de Deus, que já estava santificado pelo santo propósito, entrava na gruta enquanto o companheiro ficava esperando do lado de fora e, tomado pelo novo e especial espírito, orava a seu Pai na solidão” (1Cel 6).
Em primeiro lugar, gostaria de chamar a atenção do leitor para uma observação de Frei Marino Bigaroni(2) de que, em latim, tanto o texto de 1Cel quanto o da LTC não falam em caverna ou gruta, mas em uma “crypta”. É verdade que foi dessa palavra grega (que quer dizer “lugar escondido”) que veio a nossa “gruta”, mas o termo é usado há muito tempo para designar um espaço subterrâneo reservado para sepultar os mortos nas igrejas. Bigaroni argumenta que este local era a cripta que ficava embaixo do altar da Igreja de São Damião antes da grande reforma que Francisco nela fez para preparar o Mosteiro de Santa Clara.
Mais importante é lembrar que o texto é uma evidente lembrança da passagem bíblica: “Ao contrário, quando você rezar, entre no seu quarto, feche a porta, e reze ao seu Pai ocultamente; o seu Pai, que vê no escondido, recompensará você” (Mt 6,6).
Ressalto, então, que Francisco estava aprendendo a tratar com o Pai revelado por Jesus Cristo e que era levado a isso pela intervenção do Espírito Santo, sem a qual ninguém é capaz de rezar, ninguém é capaz de reconhecer o Senhor.
Também chamo a atenção para o fato de que, se a oração era feita na cripta de São Damião, Francisco já tinha tido o seu famoso encontro com Jesus Crucificado, que foi omitido na Primeira Vida de Celano, certamente porque se tratava de um segredo até então só conhecido por Santa Clara ou Frei Leão. Talvez seja melhor pensar que os encontros foram múltiplos, seguidos, constantes, produzindo aos poucos a oração mais antiga de Francisco que chegou a nós:
“Altíssimo e glorioso Deus, iluminai as trevas do meu coração e dai-me uma fé direita, esperança certa, caridade perfeita, bom senso e conhecimento, Senhor, para que faça vosso santo e verdadeiro mandamento. Amém”.
Com muitos dos autores mais recentes, podemos ver nesta oração um dos pontos fundamentais da espiritualidade de São Francisco: ele quer cumprir o mandamento, isto é, obedecer a Deus Pai como Jesus crucificado obedeceu. Ora, fazer a vontade do Pai, que é “todo o Bem”, implica tanto uma volta para Deus quanto um comprometimento com a construção da utopia.
Deve ter sido nesses incontáveis tempos de oração em São Damião, na cripta ou diante do Crucifixo, que Francisco aprendeu a rezar como a Igreja sempre tinha feito em sua liturgia desde os primeiros séculos: dirigindo-se ao Pai através da Palavra de Jesus Cristo, com o qual podemos nos unir graças à atuação do Espírito Santo. Uma oração exemplar, nesse sentido, é a que São Francisco colocou no fim de sua Carta a toda Ordem:
“Onipotente, eterno, justo e misericordioso Deus, dai a nós, miseráveis, fazer, por vós mesmo, o que sabemos que vós quereis, e sempre querer o que vos apraz, para que, interiormente purificados, interiormente iluminados e acesos no fogo do santo espírito, possamos seguir os vestígios do vosso dileto Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, e chegar só por vossa graça a vós, Altíssimo, que na Trindade perfeita e na Unidade simples viveis e reinais e sois glorificado, Deus onipotente, por todos os séculos dos séculos. Amém”.
A experiência do Pai-nosso
Os primeiros biógrafos viram em Francisco um outro Cristo. Uma das coisas que mais os impressionou foi o fato de Francisco ter os estigmas, como Jesus crucificado. Na realidade, os estigmas foram apenas um sinal exterior: Francisco foi um outro Cristo porque realizou profundamente a sua vocação humana e porque ouviu Jesus para rezar com ele. Foi ouvindo Jesus Cristo que ele aprendeu a conhecer o Pai.
Em todas as suas orações, ele procura rezar ao Pai com Jesus Cristo. Ele tenta entrar na oração de Jesus. Vamos tomar como um ponto alto o seu “Comentário ao Pai-nosso”. Fazemos notar que a oração, ensinada por Jesus, é toda dirigida ao Pai criador. Ora, Deus Pai não foi criador, ele é, continua a ser criador. Ainda está construindo o seu Reino. Nós estamos fora desse processo de criação pelo pecado e precisamos voltar para a casa paterna se quisermos ter parte na construção do Reino. Mas Jesus, em sua oração, fala primeiro do Reino, que é a nossa esperança, para depois falar da volta, que está baseada na memória do nosso pecado e na memória da misericórdia de Deus.
Nosso trabalho
Vamos desenvolver este nosso estudo sobre a experiência de Deus Pai vivida por Francisco dividindo-o em duas grandes partes. Na primeira, que tem o subtítulo ”Venha a nós o vosso Reino”, vamos falar da incessante obra criadora de Deus Pai, que continua a ser feita. Poder tomar parte nela é a nossa grandeza e é também o nosso sonho. Vamos ver como Jesus a ensinou e como Francisco a viveu. Na segunda, que tem o subtítulo “Perdoai as nossas ofensas”, vamos considerar que deixamos de tomar parte na obra criadora do Pai porque nos afastamos dele. Como o filho pródigo, temos que voltar para o Pai.
1. “Venha a nós o vosso Reino”
Viver a Bíblia como um povo é caminhar no sentido da Esperança. Esta parte é um aprofundamento da “esperança” que marca a meta da história. Acredito que Jesus nos inculcou profundamente o seu sentido quando nos ensinou a primeira parte do Pai-nosso. Francisco demonstra ter compreendido muito bem a lição, como podemos ler no seu “Comentário ao Pai-nosso”, como podemos considerar em toda a sua vida de oração e no seu sonho de ver Deus, com uma clareza cada vez maior.
Quando chegamos a viver Deus Pai, somos criadores com Ele e como Ele. Nossa criatividade encontra seu verdadeiro sentido e nos traz a mais profunda realização como pessoas e como povo.
Francisco inverte a nossa posição de céu
Pensamos, habitualmente, no céu como um lugar imenso, a casa de Deus, onde vamos todos estar com Ele. No seu Comentário, Francisco diz:
“Que estais nos céus: nos anjos e nos santos, iluminando-os para o conhecimento, porque vós, Senhor, sois luz: inflamando-os para o amor, porque vós, Senhor, sois amor; morando neles e plenificando-os para a bem-aventurança, porque vós, Senhor, sois o sumo Bem, eterno Bem, do qual nos vem todo bem, sem o qual não há nenhum bem”.
Não estamos dentro do céu, mas o céu estará dentro de nós na medida em que descobrirmos Deus em nós.
Deus Pai é essencialmente criador. Nunca deixa de ser criador
O atributo de Deus Pai é a criação. Ele é sempre criador e isso se manifesta em nossa criatividade. Já usamos muito mal a criatividade no mundo que estamos construindo através dos séculos. Temos que aprender a usá-la construindo o Reino de Deus.
Deus Pai está construindo a nossa utopia: o seu Reino
O Reino de Deus não é o mundo que criamos à nossa imagem e semelhança trabalhando segundo o “espírito da carne”. É o mundo que criamos com Deus quando trabalhamos segundo o “espírito do Senhor”.
É impossível compreender as posições concretas de Francisco se não percebermos que todas se fundamentam nessa opção pelo “espírito do Senhor” e não pelo “espírito da carne”. Ele repete isso muitas vezes e de muitas formas, mas acredito que o texto fundamental é o que está no capítulo 17 da Regra não-bulada, que afirma:
“Guardemo-nos da sabedoria deste mundo e da prudência da carne. Pois o espírito da carne tem grande interesse em fazer muito em palavras e pouco em obras, nem procura a piedade e santidade interior de espírito, mas antes visa e deseja uma piedade e santidade que apareça por fora diante dos homens … Porém, o espírito do Senhor exige que a nossa carne seja mortificada e desprezada, vil, abjeta e desprezível; e ele procura a humildade e a paciência e a pura, simples e verdadeira paz do espírito; e acima de tudo deseja sempre o temor de Deus, a sabedoria de Deus e o divino amor do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (RnB 17,11-16).
O “espírito da carne”, expressão já usada por São João e São Paulo, mas fundamentada no uso clássico da palavra “corpo” ou “carne” na literatura grega, expressa o que nós somos sem Deus ou por oposição a Deus: isto é, refere-se ao nosso egoísmo e ao mundo que construímos à nossa imagem e semelhança depois de nos termos afastado de Deus. Conseqüentemente, o “espírito do Senhor” é aquele impulso interior que nos faz enxergar as coisas como Deus enxerga e realizá-las como Deus as realiza. Quem tem o “espírito do Senhor” não fica em palavras e exterioridades e também não constrói castelos de areia, porque é criador com Deus Pai.
No seu Reino, estamos no “não lugar” e no “não tempo”
Se nós passamos para o Reino de Deus, saímos do nosso lugar. Francisco disse que “saiu do século”. Ele ficou no mundo (do pecado) sem ser do mundo. Ficou como um agente do mundo de Deus no “mundo dos homens”. Sair do século, além de nos libertar do “nosso” espaço fazendo-nos estar no espaço de Deus, liberta-nos do “nosso” tempo, fazendo-nos entrar, desde agora, no “tempo” de Deus, que é a eternidade.
A palavra “utopia”, usada por S. Tomás More, é altamente significativa. Quer dizer “não-lugar”. E a situação em que fica, diante do mundo criado pelos homens à sua imagem e semelhança, quem passa para o mundo criado por Deus à imagem e semelhança de Deus.
Quem já reconheceu Deus como Pai passa a ser um contemplativo. Isto é, é capaz de enxergar com nitidez, no meio de tantas obras dos homens sem Deus, o que foi feito por Deus, sozinho ou com os humanos.
O seu reino não terá fim
Continuando a sua “Paráfrase ao Pai-nosso”, Francisco deseja que o Nome de Deus seja santificado. Nosso desejo mais profundo é conhecer Deus. É vê-lo face a face. É isso que Deus continua a criar.
A expressão “nome” é devida ao respeito que o povo judeu sempre teve por Deus. Até hoje, eles não dizem “Bendito seja Deus!”, mas “Bendito seja o nome!”, a fim de “não tomar o nome de Deus em vão”.
Pedir que o “nome” de Deus seja santificado é pedir que compreendamos e vivamos tudo o que for possível da santidade de Deus. Francisco disse:
“Santificado seja o vosso nome: fique clara em nós a vossa notícia, para que conheçamos qual é a largura de vossos benefícios, a extensão de vossas promessas, a sublimidade da majestade e a profundidade dos juízos” (EPN 4).
Francisco parece ter gostado da maneira de falar de São Paulo: “Vocês se tornarão capazes de compreender, com todos os cristãos, qual é a largura e o comprimento, a altura e a profundidade … para que fiquem repletos de toda plenitude de Deus” (Ef 3,18-19). Mas ainda falou em: a) largura dos benefícios, b) extensão das promessas, c) sublimidade da majestade e d) profundidade dos juízos. Ele quis mostrar que Deus não tem fim em nenhuma direção. Projetou uma figura infinita em todos os sentidos para dar-nos uma idéia do Reino que ainda podemos construir unindo nossa criatividade a todo o poder do Pai criador pelos séculos sem fim.
Orar com Jesus, pedindo que o Reino venha
Em seu sentido mais freqüente, as orações que Francisco faz para rezar com Jesus acompanham a primeira parte do Pai-nosso e pedem que o Reino venha. Mas eu vou destacar, aqui, dois pontos principais: as orações de ação de graças e o uso da oração sacerdotal do evangelista João (cap. 17).
a) São Francisco e a ação de graças
A maior parte das orações de São Francisco que chegaram até nós tem um profundo sentido de ação de graças. São “eucarísticas”. É fácil perceber que ele está sempre dando graças ao Pai por tudo o que vai descobrindo, porque aprendeu a rezar com Jesus que disse: “Pai, eu vos dou graças porque escondestes estas coisas aos sábios e aos prudentes e as revelastes aos pequeninos” (Lc 10,21).
Chamo a atenção para o Cântico de Frei Sol, mas também para algumas outras orações, como a Exortação ao Louvor de Deus, os Louvores a serem ditos em todas as Horas, os Louvores a Deus Altíssimo e mesmo a Saudação às Virtudes e a Saudação à Bem-Aventurada Virgem Maria, que podem ser vistas como preparações para o Cântico de Frei Sol. Mas um destaque especial merece a Oração a Deus Pai Criador que está no capítulo 23 da Regra não-Bulada. É um capítulo que deveríamos rezar com freqüência, embora não me seja dado, aqui, mais do que citar o começo:
“Onipotente, altíssimo, santíssimo e sumo Deus, Pai santo e justo, Senhor e Rei dos céus e da terra, damo-vos graças por causa de vós mesmo, porque por vossa santa vontade e pelo vosso único filho criastes do Espírito Santo todos os seres espirituais e corporais, nos fizestes à vossa imagem e semelhança e nos colocastes no paraíso … ” (RnB 23,1-3).
Creio que é fundamental percebermos o seu sentido profundo: ao dar graças, Francisco está pedindo ao Pai que o seu Reino venha. Ele está descobrindo com os seus “olhos do espírito” como o Pai constrói o seu mundo e, reconhecido, louva como se estivesse aplaudindo ou “animando” Deus Pai a continuar essa obra tão maravilhosa.
Francisco, que iniciou suas orações pedindo a iluminação das trevas interiores, sempre procurou a luz, porque viu na luz o maior símbolo de Deus. Jesus é luz porque veio revelar a luz que é o Pai. Francisco tem a maior celebração da luz no Cântico de Frei Sol, quando, cego nos olhos do corpo, só enxerga com os “olhos do espírito”.
b) São Francisco e a oração sacerdotal
Francisco reza ao Pai com Jesus três vezes seguindo a “oração sacerdotal”, que encontramos no capítulo 17 do Evangelho de São João. Nas três vezes, ele a usa livremente, selecionando trechos, saltando e mudando a ordem. Na Carta aos Fiéis (lCtFi e 2CtFi) é mais curto do que na Regra não-Bulada (22,39-50). Alguns trechos coincidem. Tudo isso demonstra que ele deve ter rezado muitas vezes essa oração de Jesus de cor, adaptando-a às circunstâncias. Também podemos ver, especialmente nestas duas passagens de seus escritos, possíveis trechos de sermões que ele costumava fazer ao povo.
Mas o mais importante é que essa e outras orações de Jesus foram formando Francisco como um filho verdadeiro do Pai eterno.
Nessa grande oração do final de sua vida, Jesus fala com o Pai sobre a glória a que todos nós estamos destinados. Nós precisamos estar com Ele onde Ele estiver, isto é, junto do Pai e do Espírito Santo. Não somos tirados do mundo, mas já não somos do mundo. Só ficamos nele para ajudar o Pai a continuar a sua obra criadora.
Francisco colocou os frades e os irmãos penitentes nessa mesma perspectiva trinitária em que já tinha colocado as clarissas quando lhes deu a Forma de Vida para Santa Clara. Algo que ele lembrava pelo menos quatorze vezes por dia ao rezar a Antífona a Nossa Senhora que está no Ofício da Paixão.
É claro que, para Francisco, nós estamos fazendo a vontade de Deus aqui na terra como vamos fazê-la um dia com todos lá no céu. Nós somos criadores com o Pai.
2. Perdoai as nossas ofensas
Viver a Bíblia como um povo é também ter uma ampla memória histórica. Esta seção do nosso trabalho é um aprofundamento da “memória” como ponto de partida da história. Jesus deixou-a para a segunda parte do seu Pai-nosso e nos deu uma excelente lição quando contou a parábola do filho pródigo. Francisco viveu isso tudo na sua penitência e na sua oração, ensinando-nos a nos libertar do pecado que nos deixou órfãos do Pai.
Temos que fazer um “nostos” – somos o filho pródigo
Jesus nos deixou um parâmetro para esta parte do Pai-nosso quando contou a parábola do filho pródigo. Nós somos pecadores e estamos sempre na volta para a casa do Pai. É interessante observar, na literatura universal, como a humanidade sempre sentiu um desejo profundo e inexplicável de voltar. Mesmo sem saber direito para onde tinha que voltar. Foi Jesus que veio mostrar com clareza que nossa volta é para os braços do Pai.
Em português, temos uma palavra nossa muito característica e original: “saudades”. A nossa lírica sempre encontrou um de seus grandes temas nas saudades. Ora, essa palavra é substituída nas outras línguas ocidentais por “nostalgia”, e em todas as línguas por alguma expressão semelhante. Em grego, ao pé da letra, “nostalgia” quer dizer “dor da volta”. “Nostos” é volta, e “algos” é dor. Quem não sentiu esta dor profunda com o desejo de voltar: voltar a algum lugar, a uma situação, aos braços de alguma pessoa?
A segunda parte do Pai-nosso é dominada por essa dor da volta. Temos que voltar ao paraíso, quando o Pai ainda passeava amigavelmente conosco naquelas tardes gostosas, porque não tínhamos resolvido sair de casa para construir o nosso mundo, um mundo em que pudéssemos ser deuses sem nos lembrar de que há um outro Deus tão grande.
Na realidade, como lembra São Francisco, nós nos tornamos tantas vezes “miseráveis” ou míseros, isto é, pessoas que precisam da compaixão que só Deus pode ter, porque só Ele sabe o que é a “hesed hahamim”, a misericórdia, pois só Ele tem aquelas entranhas maternas capazes de sentir e de fazer voltar os filhos ausentes.
Como fazer misericórdia
Na sua Paráfrase ao Pai-nosso, Francisco diz:
“E perdoai-nos as nossas ofensas por vossa inefável misericórdia, pela força da Paixão de vosso dileto Filho e pelos méritos e intercessão da beatíssima Virgem Maria e de todos os vossos eleitos. Assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido: e o que nós não perdoamos totalmente, fazei vós, ó Senhor, que perdoemos plenamente, para que por vós amemos de verdade os nossos inimigos e intercedamos por eles devotamente diante de vós, a ninguém pagando o mal com o mal e em tudo procuremos ser proveitosos em vós” (EPN 9-10).
Para nos reconhecermos filhos do Pai eterno, é fundamental reconhecermos: a) que somos pecadores, b) que somos perdoados e c) que também temos que perdoar.
a) Somos pecadores. São João diz muito claramente: “Se dizemos que não temos pecado, enganamos a nós mesmos, e a verdade não está em nós. Se reconhecemos os nossos pecados, Deus que é fiel e justo perdoará nossos pecados e nos purificará de toda injustiça. Se dizemos que nunca pecamos, estaremos afirmando que Deus é mentiroso e a sua palavra não estará em nós” (lJo 1,8-10).
b) Somos perdoados. Em vez de ser uma pessoa triste e desconsolada porque não está conseguindo ter tantas coisas que desejaria, todo cristão deveria ser uma fonte transbordante de alegria por saber que foi perdoado: que estava longe e foi recebido em festa na casa paterna. Era essa a alegria constante de Francisco. Ele sabia que, para ele, já tinham sido movidas a “inefável misericórdia do Pai”, a “força da Paixão do Filho”, os “méritos e a intercessão da beatíssima Virgem Maria e de todos os eleitos”.
Nós estamos muito mal acostumados a pensar que todas as nossas grosserias podem ser lavadas com um simples pedido de desculpas e não compreendemos que, para podermos fazer o caminho de volta à casa do Pai, foi preciso que se movimentasse tudo isso, inclusive que o Filho de Deus se encarnasse e morresse na cruz.
Precisamos gritar ao mundo: “Nós somos perdoados”. Já deveria ser uma razão mais do que suficiente para movimentarmos todos os povos para que se convertessem à boa-nova do Evangelho.
c) Temos que perdoar, como o Pai perdoa. Segundo o testemunho de São Lucas, Jesus ensinou: “Sede misericordiosos, como também vosso Pai é misericordioso. Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados: perdoai e sereis perdoados” (Lc 6,36-37). No Evangelho de São Mateus, Jesus disse algo até mais incisivo: “Porque, se perdoardes aos homens as suas ofensas, vosso Pai celeste também vos perdoará. Mas se não perdoardes aos homens, tampouco vosso Pai vos perdoará” (Mt 6,14-15). A “hesed hahamin” é característica do Deus do Antigo Testamento, revelado por Jesus, como o Pai.
Na Carta a um Ministro, São Francisco deu uma das melhores demonstrações de como entendia a prática da misericórdia:
“E nisto reconhecerei que amas realmente o Senhor e a mim, servo dele e teu, se fizeres o seguinte: não haja irmão no mundo, mesmo que tenha pecado a não poder mais, que, após ver os teus olhos, se sinta obrigado a sair de tua presença sem obter misericórdia, se misericórdia buscou. E se não buscar misericórdia, pergunta-lhe se não a quer. E se, depois disso, ele se apresentar ainda mil vezes diante de teus olhos, ama-o mais do que a mim, procurando conquistá-lo para o Senhor. E tem sempre piedade de tais irmãos” (CtMi 5-7).
Francisco devia estar muito consciente de toda a misericórdia que já tinha recebido pessoalmente de Deus quando teve a oportunidade de partilhá-la com os outros. Por isso, quando ele “fez misericórdia” com os leprosos, sua vida mudou. Ele até precisou “sair do mundo”. Na Carta a um Ministro, ele também disse que tudo o que acontece conosco é graça: Deus está nos ajudando a voltar para a casa do Pai.
Por isso, acredito que o fato de Francisco e Clara terem mandado seus irmãos e irmãs rezarem tantos Pai-nossos como um Ofício alternativo não deve ser devido só a um costume que já existia antes deles e em outros grupos religiosos. Eles tinham consciência de que era preciso estar recordando o dia inteiro que o Pai é misericordioso e nós temos que ser misericordiosos com Ele (3).
Orar com Jesus pedindo misericórdia – o Ofício da Paixão
Francisco já reconheceu que precisava da misericórdia do Pai quando rezou diante do Crucifixo de São Damião pedindo que o Senhor “iluminasse as trevas do seu coração”, e soube reconhecê-lo até o fim, quando insistiu na oração que conclui a Carta a toda Ordem: ” … misericordioso Deus, … dai a nós, miseráveis … “. Aliás, ele sempre esteve querendo sair das trevas do pecado para a luz da misericórdia do Pai.
No Ofício da Paixão, temos o melhor exemplo de como São Francisco procurava rezar com Jesus Cristo ao Pai, pedindo misericórdia ou celebrando o fato de ter recebido misericórdia. Ele compôs todos os seus salmos como se estivessem sendo rezados pelo próprio Jesus: com orações do Antigo Testamento, entremeadas por expressões que só o Filho de Deus veio revelar no Novo Testamento. Creio que é importante examinar os passos mais significativos dessa oração ao Pai que Francisco e Clara rezavam todos os dias.
Na Antífona de Nossa Senhora, o Pai é chamado de “Altíssimo sumo Rei Pai Celeste, e Nossa Senhora é saudada como sua “filha e serva”.
No Salmo 1, versículo 5, Francisco e Jesus rezam assim: “Santo Pai meu, rei do céu e da terra, não vos afasteis de mim porque a tribulação está perto e não há quem me ajude”. E no versículo 9 insistem: “Pai santo, não afasteis de mim o vosso auxílio; Deus meu, vinde me socorrer”.
No Salmo 2, versículos 11 e 12, rezam assim: “Vós sois o meu Pai santíssimo, meu Rei e Deus meu. Vinde em meu auxílio, Senhor Deus de minha salvação”. O Salmo 3, que começa pedindo: ”Tende compaixão de mim, ó Deus, tende compaixão … “, continua no versículo 3: “Clamarei ao meu santíssimo Pai altíssimo; ao Senhor 1ue me encheu de benefícios”.
No Salmo 4, versículo 9, rezam assim: “Pai santo, não afasteis de mim a vossa ajuda, cuidai da minha defesa”. No Salmo 5 , reconhecem-se na posição de pecadores quando, no versículo 9, dizem: “Pai santo, o zelo de vossa casa me devorou, e os insultos dos que vos ofendem caíram em cima de mim … “. E mais à frente, nos versículos 15 e 16, vão completar: ”Vós sois o meu Pai santíssimo, meu Rei e meu Deus. Vinde depressa me ajudar, Senhor Deus de minha salvação”.
No Salmo 6, depois de reconhecer que “reduziram-me ao pó da morte, e aumentaram a dor de minhas chagas” (v. 10), voltam-se com confiança para dizer ao Pai: “Fui dormir e me levantei, e meu Pai santíssimo me recebeu com glória. Pai santo, vós me tomastes pela mão direita e me guiastes em vossa vontade e me acolhestes com honra” (vv. 11-12).
O Salmo 7 reconhece o pecado de toda a terra, mas proclama: “Porque o santíssimo Pai do céu, nosso Rei antes do começo do mundo, enviou lá do alto seu Filho amado e realizou a salvação em toda a terra” (v. 3). No tempo da Ascensão, Francisco acrescentava: “Subiu aos céus e está sentado à direita do santíssimo Pai celestial” (v. 10).
O Salmo 9 é cheio de alegria pela ressurreição de Jesus, mas lembra que foi preciso sacrificar o Filho de Deus: “A seu Filho amado sacrificou a sua destra e seu santo braço” (v. 2).
O Salmo 11 canta a misericórdia de Deus diante dos pecadores, pois celebra: “Agora, eu reconheci que o Senhor enviou Jesus Cristo, seu Filho, e ele julgará o universo com justiça” (v. 6).
O Salmo 14 já reza assim no primeiro versículo: “Eu vos dou graças, Senhor, Pai santíssimo, Rei do céu e da terra, porque me consolastes”. E, finalmente, o Salmo 15, que celebra o Natal, proclama no versículo 3: “Pois o santíssimo Pai do céu, Rei nosso antes de todos os séculos, mandou do alto seu amado Filho e nasceu da bem-aventurada Virgem Santa Maria”, concluindo no versículo 5: “Naquele dia concedeu o Senhor a sua misericórdia”.
É fácil perceber que todo o Ofício da Paixão é um pedido de misericórdia feito ao Pai e cheio de esperança-certeza.
Conclusões
Clara, que a família francisclariana está começando a redescobrir, ilumina fortemente a espiritualidade que partilhou com Francisco, porque sabe expressá-la de uma maneira quase sempre muito original e muito livre. É interessante observarmos, mais do que ela diz sobre Deus Pai, sua práxis constante de viver com Jesus no caminho que leva ao Pai.
Celano apresentou Francisco como um “homem novo”, justamente porque o viu como alguém que retornara à casa do Pai e estava colaborando com a nova criação, já tinha observado isso quando afirmou, na Legenda de Santa Clara:
“Quando ouviu falar do então famoso Francisco que, como homem novo, renovava com novas virtudes o caminho da perfeição, tão apagado no mundo, quis logo vê-lo e ouvi-lo, movido pelo Pai dos espíritos, de quem um e outra, embora de modo diferente, tinham recebido os primeiros impulsos” (LSC 5).
É claro que foi esse “Pai dos espíritos” que se tornou a meta de Clara na sua vocação, que ela mesma descreve como um dos maiores benefícios recebidos do Pai, que nos dá Jesus como o caminho e o espelho para chegar até ele:
“Entre outros benefícios que temos recebido e ainda recebemos diariamente da generosidade do Pai de toda a misericórdia e pelos quais temos que agradecer ao glorioso Pai de Cristo, está a nossa vocação que, quanto maior e mais perfeita, mais a Ele é devida” (TestC 2-4).
É empolgante ler o Processo de Canonização e ir percebendo como Clara conseguiu passar para suas irmãs a sua convicção viva de que toda a nossa vida é um constante voltar para a casa paterna e um empenhativo compromisso de continuar com o Pai a obra da criação até a consumação dos séculos.
Quem tem um Pai no céu é pobre
Uma das primeiras conclusões práticas que podemos tirar da descoberta de Deus como Pai é que podemos ser pobres e livres. As próprias pessoas divinas são essencialmente pobres porque dão tudo de si sem precisar segurar nada. Têm a liberdade de dar tudo sem precisar guardar nada para nenhuma eventualidade, pois não pode acontecer nenhum imprevisto para quem só vive o Amor. Tudo o que pode acontecer é só um dar-se sem restrições.
Por isso, Clara e Francisco só podiam ser pobres e livres. Quem está vivendo o Pai-nosso só pode ser pobre e livre porque não precisa se apropriar de nada, não precisa mandar em ninguém e não precisa ter importância reconhecida pelos outros.
Quem é filho de Deus sempre vai ter tudo o que precisar, sempre vai ter o melhor relacionamento possível com todas as pessoas sem ter que coagi-Ias a nada, sempre vai ter o melhor reconhecimento possível por parte de quem melhor sabe fazê-lo: Deus.
Estamos seguindo os passos de Jesus crucificado
Outra conclusão prática e concreta é que não precisamos nos preocupar com nada. Sabemos que, no fim da caminhada, o que vamos encontrar é a plenitude do que estamos descobrindo aos pouquinhos cada dia: o Pai. Para isso, Francisco ensinou que basta “seguir os passos de Jesus crucificado”. Podemos ir até como cegos que deram a mão e confiam no seu guia.
Quando lemos os jornais ou escutamos os noticiários, somos invadidos pelo terrível sofrimento do mundo. De um mundo de órfãos que, não reconhecendo que têm um Pai nos céus, têm que passar a vida brigando por coisinhas e se matando por idéias que são mais efêmeras do que as moscas. Será que este mundo não está precisando da segurança que deveria brotar e jorrar de nossa confiança viva no Pai?
Vivemos a esperança da utopia
Mas os filhos do Pai das misericórdias não são omissos. Estão na luta da construção do Reino, e o Reino é uma utopia que só virá com muito trabalho. Muita gente já trabalhou por ele no passado, muita gente ainda vai trabalhar no futuro, e nós somos os trabalhadores do presente. Jesus disse que até o Pai trabalha e que ele também não pára de trabalhar.
Francisco falou na “graça do trabalho”. É a graça de poder transformar o sonho em realidade. Homem que “tinha sido transformado na própria oração”, ele insiste muito mais na necessidade de agir. Achava que não era verdadeira oração de quem não tornava realidade as obras do Pai.
Só consegue transformar o sonho em realidade quem vive cultivando o sonho do Pai, quem tem toda a força dele para transportar montanhas. Foi isso que o pobrezinho Francisco aprendeu com Jesus e nos ensinou.
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1. Sobre isso, nada melhor que ler a primeira parte do livro de Nguyen Van Kahnah, Gesu Cristo nel pensiero di San Francesco secondo i suoi scritti.
2. “San Damiano – Assisi: La prima Chiesa di San Francesco”, em Atti Accademia Properziana del Subasio, ser. VI, 7 (1983) 49-87.
3. Sobre o perdão em São Francisco e Santa Clara, há um capítulo interessante no livro de Adriano Parenti, La scuola di preghiera da Francesco e Chiara d’Assisi, p. 85-89
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Fr. José Carlos Corrêa Pedroso, OFMCap é diretor do Centro Franciscano de Espiritualidade de Piracicaba. É autor de vários livros de espiritualidade e franciscanismo. É historiador e pesquisador na área fransciscana, profundo conhecedor da vida e obra de São Francisco de Assis e Santa Clara.
Este texto foi publicado nos “Cadernos Franciscanos”, da FFB e Editora Vozes.