Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

A espiritualidade do trabalho

28/09/2010

Frei Vitório Mazzuco

Cada vez que pensamos a vida nos confrontamos com o seu dinamismo, e o entendemos como um impulso, uma força que move cada ser vivente. A vida não é apenas dada ou prometida, mas participada. Este dinamismo é absorvido na dimensão natural e sobrenatural.

Esta nossa reflexão se mede com duas realidades da vida: a atividade humana concentrada na força transformadora do trabalho, e a motivação interior que ela necessita. Não é algo tranqüilo pensar o sobrenatural presente no mundo do trabalho, sobretudo hoje, mas não podemos negar uma espiritualidade ali presente.

O dinamismo natural do trabalho

Neste ponto não vamos nos alongar, pois qualquer documento de sociologia, de antropologia, de estudos sociais, uma boa análise de conjuntura, nos dão uma visão mais precisa e completa. Porém devemos elencar algumas características da condição atual do trabalho para haver o confronto com o seu significado espiritual.

O que é viver o mundo do trabalho e o mundo construído pelo trabalho? Sabemos que vivemos em plena era da produção, que é preciso uma luta ferrenha para sustentar a própria vida, garantir alimentação, moradia, ter o que vestir e um mínimo necessário de bem-estar. Todo este processo vai elaborando o conceito de trabalho como sinônimo de ganha-pão, sustento, luta, subsistência, que envolve o humano no seu todo e aparece como atividade psicológica, física, intelectual, planejada, técnica e tecnológica. Hoje, quase retomando a idéia dos gregos: “o doloroso preço que os deuses cobram pelos bens da vida”.

Se partirmos desta concepção de trabalho que nos é legada pela modernidade, temos uma ocupação física exigente, dura, desinstaladora, temos “o trabalho como uma atividade física de produção que relaciona o humano com as coisas oferecidas pela natureza e transformadas por ele” (1). É a ação de vender a própria força e a capacidade de trabalhar, e, de um modo geral, nem sempre remunerada justamente por isso. É suar gratuitamente para enriquecer uma instância superior.

Do trabalho depende a economia e a produção de bens de consumo, atendamos o que diz José Comblin: “O trabalho é uma atividade que produz bens destinados a serem consumidos para dar satisfação às necessidades . Está integrado à cadeia: necessidades, produção, consumo” (2).

O mundo do trabalho é o mundo pelo qual a pessoa torna-se ação. Nele ocupa a totalidade de suas horas, investe toda a sua capacidade racional. A ciência e a técnica fazem dele um terreno fértil de investimento. “O mundo do trabalho conquistou a terra toda. Tendeu a englobar o maior número possível de trabalhadores: os antigos camponeses e artesãos, os nômades e os caçadores, as terras conquistadas e transformadas em colônias, os empregados e servidores de todas as espécies, mesmo os soldados, e, em seguida, os indivíduos na mesma condição”(3)

O capitalismo é acusado de ser a grande causa da exclusiva condição trabalhadora da humanidade, que precisa empenhar aí a grande parte de seu tempo. O socialismo acabou entrando pelo mesmo caminho, tudo fruto da modernidade que faz o ser humano totalmente voltado para a produção.

O trabalho deixou de ser artesanato, deixou de ser arte para tornar-se linha de montagem, produção em cadeia. Tudo converge para este campo: educação, cultura, religião, história. Tudo é revolucionado e influenciado por ele, que usa todos os meios para se impor, até a escravidão, a violência etc. O trabalho age sobre as leis e os códigos, cria o seu direito próprio, o direito de ter vagas, de não haver desemprego, de sindicalizar-se. Não existe sindicato mais forte do que o dos trabalhadores.

A ideologia do trabalho é tão forte que se torna padrão de busca: para uma melhor qualificação, melhor colocação, melhor salário, melhores oportunidades. Isto gera uma experiência vital, traz o sentimento de superação, de dignidade, dá status social, contesta a preguiça, aumenta a escala social de valores. Visto por este prisma o trabalho é um fator de libertação.

Todavia há o questionamento: o trabalho traz automaticamente a felicidade e realização a todo ser que trabalha? É realização existencial ou apenas uma satisfação de necessidades imediatas? Por que os menos favorecidos não podem participar dos bens de produção e dos confortos? Os pobres, por exemplo, são excluídos do mundo avançado da informática. Isto tudo provoca uma tensão natural e real. Lembramos mais uma vez as palavras de Comblin: “Na Idade Média cantava-se nos campos e nas oficinas. Hoje, muitos operários consideram seu trabalho como o reino do aborrecimento. Mesmo as classes dirigentes vivem em estado de tensão. Todos se queixam da falta de amor, de calor nas relações humanas, de comunicação entre as pessoas, de solidão (4)

Por isto devemos olhar este sistema com olhos críticos. Lá onde ele maquiniza, embrutece, escraviza e faz do Humano não irmão do cosmos, mas apenas engrenagem de um processo, ali não está sendo um fator de libertação.

O dinamismo sobrenatural do trabalho

Este aspecto da reflexão é que nos remete à Espiritualidade do trabalho. Quando dizemos espiritualidade estamos entendendo Vida segundo o Espírito, e complementamos com a idéia de espiritualidade usada pelo Concílio Vaticano II: Forma de Vida, Gênero de Vida, ou Vida Cristã em suas mais diversas formas.

O trabalho possui a sua espiritualidade própria enquanto Projeto de Vida, enquanto relaciona o Humano ao Deus Criador, entrando assim na dinâmica de construir e fazer nascer o mundo, sustentando a vida e tecendo relações. É “investimento de Espírito na matéria no sentido de transformação desta matéria em paisagem humana e fraterna. A Bíblia considera o trabalho vocação terrestre do Ser Humano (Gn 2,15), desde a criação do mundo homens e mulheres destinam-se ao trabalho. É participação humilde e dolorosa no ato criador de Deus” (5). Trabalhando entra-se mais neste projeto.

Max Weber disse que não existe o Humano se não na ação de transformar o criado. Esta é a causa do desenfreado progresso materialista, entretanto, é a provocação para a retomada de consciência de que todo ser criado é uma responsabilidade comum entre Deus e o Ser Humano. O Ser Humano não é patrão de todo ser criado mas um administrador responsável. Esta concepção mostra a riqueza espiritual e antropológica que o trabalho possui dentro de seus valores. É uma atividade que unifica aspectos estruturantes do ser humano e da sua relação com Deus e com o mundo.

Estar bem no mundo é amar o mundo. Quem ama cuida, transforma, melhora, dá um acabamento íntimo a todas as coisas; esforça-se para aplicar uma energia interna numa realidade externa. Trabalho é encontro de potencialidades interiores com as exteriores; todo trabalho é obra da inteligência e das mãos. É um fazer decisivo para a dinâmica histórica.

Todo este conteúdo ético-espiritual do trabalho leva também a um questionamento: “Os documentos contemporâneos citam com muita complacência os textos do Gênesis que fazem do trabalho uma participação na obra criadora de Deus. O Gênesis entra de fato em concordância com as aspirações das civilizações do trabalho da atualidade: o trabalho transforma o mundo e pela transformação do mundo transforma a própria humanidade. Assim se manifesta o que deveria ser o trabalho. Aquilo é a meta, a utopia que procuram os trabalhadores e que lhes permite ver até que ponto eles estão frustrados como trabalhadores. Acontece até hoje que muitas das tarefas assumidas nada têm de transformadoras nem do mundo nem do humano, e não fornecem nenhuma imagem da obra da criação de Deus (6).

Não se pode falar do trabalho apenas na perspectiva individual, mas sob a implicância de toda sociedade humana que se estrutura e se desenvolve graças à diversidade de atividades; cada uma deve ser considerada não só em si mesma, mas também em relação ao todo. A força de muitos é um vigor vital. “A família humana pouco a pouco se reconhece e se constitui como comunidade do mundo inteiro”(Gaudium et Spes 33).

Melhorar o mundo corresponde ao plano de Deus (GS 34), é serviço prestado à vida. O Concílio reforça este valor ao afirmar que “é de valor maior que as riquezas externas que se podem ajuntar. Tudo o que os homens e mulheres podem fazer para alcançar maior justiça, mais ampla fraternidade e uma organização mais humana nas relações sociais ultrapassa o valor do progresso técnico. Pois estes progressos podem oferecer como que a matéria para a promoção humana, mas por si só não a realizam de modo algum” (GS 35).

Um dos documentos mais importantes para a espiritualidade do trabalho é a Encíclica “Laborem Exercens” que afirma que “o eixo do ensino social é o homem solidário e o seu trabalho. O trabalho “define” o homem, mostra o seu ser, sua natureza como pessoa aberta ao mundo pela inteligência e pela liberdade, mas dentro de uma comunidade de pessoas; deste modo se revela o ser do homem como imagem de Deus” (7)

A “Laborem Exercens” chama a atenção para a contribuição do próprio Cristo como modelo, inspiração e espiritualização do mundo do trabalho, pois Ele mesmo o exerceu silenciosamente no seu espaço familiar e social, usando-o como símbolo e conteúdo de pregação do Reino de Deus, e fazendo do próprio anúncio a sua experiência de trabalho. Também o apóstolo Paulo mantém o espírito de Jesus no seu modo de abordar a comunidade cristã primitiva: trabalho como meio de vida, como condição do exercício da caridade, como partilha e caminho concreto de profunda identificação com o próprio Deus (8).

Os documentos de Medellín e Puebla têm a preocupação de mostrar a primazia da dignidade humana sobre o capital para que o ato de trabalhar seja mais do que uma atividade comum, mas tenha também o caráter celebrativo: “quem trabalha com reta consciência e amor da verdade e da justiça vê no seu trabalho uma doação de sua vida. Cristo nos torna capazes de vivificar pelo amor nossa atividade e transformar nosso trabalho e nossa história em gesto litúrgico”(Puebla, 213)

As Conferências Episcopais não passam indiferentes diante da importância deste assunto. Em seus documentos e declarações mostram que um dos conteúdos fortes do trabalho é ser iluminado a partir da fé e com isto atingir os setores mais humildes. Este é o núcleo da justiça social. É o que dá um novo valor à dimensão espiritual do trabalho: “Não há justiça social sem uma profunda concepção moral e espiritual do trabalho. Mediante o trabalho o Ser Humano muda a sociedade e melhora as relações sociais. É vocação e missão de mudança da situação.

Ilustremos com o que diz a Conferência Episcopal do Chile: “Deus não pode abençoar a realidade de que a pessoa humana vale menos do que o trabalho e que a dignidade humana seja pisoteada. Deus não pode abençoar o fato de uma família viver amontoada em dois cômodos. Deus não pode abençoar uma sociedade onde o dinheiro e o poder valem mais do que os homens. Buscar a ganância às custas da pobreza alheia vai contra toda lei divina, e serão malditos por Deus os que contribuem para criar condições humanas injustas” (9).

Trabalhar é a atividade do Humano Espiritual comprometido com a realidade e pronto para melhorá-la, e completar assim a obra redentora. É mostrar com o suor do próprio rosto qual é o projeto do Reino de Deus agindo no miolo do mundo de produção como um sinal de alerta.

Ontem éramos chamados a harmonizar dentro da própria alma a obra grandiosa de Deus; hoje somos chamados a harmonizar a obra grandiosa de Deus lá onde existe desarmonia, imperfeição, injustiça, desnível social, opressão, sendo assim obrigados a ir além do espaço limitado da nossa piedade pessoal e acomodada. O mundo do trabalho afasta desta acomodação e mostra qual a realidade que precisa ser salva. Não é uma tarefa tranqüila e fácil. A espiritualidade da Cruz fala alto no mundo do trabalho. Quem mais se empenha mais sofre, quem mais sofre porque ama este empenho com paixão e profetismo, mais salva. “A Cruz é o símbolo do trabalho árduo da Evolução”(10).

CONCLUSÃO

Não esgotamos aqui todo o conteúdo da espiritualidade do trabalho. Destacamos apenas alguns aspectos para sugerir uma reflexão mais aprofundada que pode nascer a partir deste texto. O importante é perceber o trabalho como Graça do Senhor, como o dom de ocupar-se, distribuindo vida, vivendo em comunhão com o mundo e com a humanidade. É o modo de restaurar a harmonia da vida trabalhando o espírito e a matéria. Quando trabalhamos realizamos a continuidade da obra criadora de Deus.
O trabalho distingue o humano de todas as criaturas, pois ele realiza no ser humano a liberdade, a razão, e a vocação original para uma ocupação. O humano não existe de um modo estático diante de tudo o que é, mas é no concreto de seu fazer um instrumento de uma Obra Maior.
Almeida Cunha , R. I., Desafios do Mundo do Trabalho à Vida Religiosa: Inserção, Formação, Trabalho, RJ, CRB, 1987, 36.
Comblin, J., O Tempo da Ação, Ensaio sobre o Espírito e a História, Petrópolis, Vozes, 1982, 224.
Idem, 229.
Idem, 235
Boff, L., O Destino do Homem e do Mundo, Petrópolis, Vozes, 1973, 44-45.
Comblin J., Antropologia Cristã, A Libertação na História – III, Petrópolis, Vozes, 1985, 173-181.
Antoncich, R. – M. Sans, J. M, Ensino Social da Igreja, A Igreja, Sacramento de Libertação, IV, Petrópolis, Vozes, 1987, 103-111.
Idem, 112
Idem, 129-134
T. de Chardin, L avie Cosmique, in Écrits du temps de la guerre, Paris, 1965, 6-61. 

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