Pe. Ademir Guedes Azevedo, cp.
A cruz deve ser interpretada só a partir da vida de Jesus. Na verdade, ela é a síntese de sua missão. Durante séculos, criou-se a tendência de encará-la como um evento separado do seu ministério. O biblista passionista Donald Senior (1940-2022) esforçou-se por denunciar esta falsa análise que individualiza a cruz como um evento independente, sem qualquer relação com a atuação profética de Jesus. Nesta meditação, tentaremos mostrar que a Cruz está estreitamente ligada com o agir messiânico de Jesus, com a sua singularidade de viver a fé, sua relação com a religião e a política de Israel, ou seja, a Cruz é a máxima expressão da liberdade de Jesus diante da vida, tornando-se o resultado de suas decisões que condicionam o desfecho final de sua existência.
A liberdade de Jesus reside na sua autenticidade. Diante das várias circunstâncias da vida, Jesus é livre para escolher percorrer o seu próprio caminho, exatamente aquele marcado pela cruz. Esta sua decisão lhe fornece todo o sentido de seus gestos. No entanto, não faltaram outras propostas que poderiam desviá-lo ou até mesmo encurtar o caminho de sua meta (em Israel existiam vários movimentos messiânicos que aqui encaramos como propostas de vida). Se Jesus tivesse aderido à proposta de Pedro, aquela que recusa o tomar a própria cruz, certamente ele teria perdido toda a sua liberdade e autenticidade.
Pensemos um pouco mais sobre a estreita relação entre a cruz e a liberdade. Na cruz, mesmo que Jesus sofra fisicamente e experimenta o total abandono, ele permanece livre e feliz, visto que se dá conta de ter perseverado em seu propósito. É evidente que Ele sofre, mas com autenticidade porque não se desviou de seu projeto de vida. Em outras palavras: uma vez que Jesus tinha claro para si mesmo o porquê de sua existência, então as circunstâncias que lhe faziam sofrer tornaram-se um elemento secundário.
A partir deste horizonte de compreensão, ou seja, se para levarmos a cabo o nosso projeto de vida temos que caminhar com a consciência de um porquê que traz todo o sentido, então não nos resta senão aceitarmos que a liberdade autêntica não renuncia jamais ao caminho da cruz. Isto significa que uma liberdade que renuncia a experiência da cruz, será sempre falsa e inautêntica.
Dou um exemplo clássico desta visão cristã da vida. Cito Santo Agostinho de Hipona (354-430). No sermão 75 ele diz o seguinte: “Portanto, é necessário estarmos no navio, ou seja, sermos transportados pela madeira de um lenho, para poder atravessar o mar. O madeiro que carrega a nossa fraqueza é a cruz de nosso Senhor, da qual trazemos o sinal em nossa fronte, e que nos impede de ser engolidos pelo mundo. Sofremos as agitações das ondas, mas é o Senhor que nos transporta”. A existência só se atravessa com segurança se, em nossa liberdade, não renunciamos a cruz.
Quem é livre possui um autoconhecimento de si mesmo, ou seja, é alguém que alcançou a maturidade humana. Jesus também é assim, pois ele percorre as etapas do desenvolvimento de uma personalidade sadia, aprende a discernir e a tomar decisões, assumindo as consequências. Para tanto, ele cresceu no caminho da Graça à medida que orientava todas as suas decisões para a vontade de Deus. Justo por isso, no episódio do Getsêmani a sua natureza humana entrou completamente na lógica da vontade divina e, a partir daquele momento, a vontade dele tornou-se uma só naquela do Pai. O Getsêmani foi a escolha decisiva para a liberdade que culminou no evento da cruz.
Pe. Ademir Guedes Azevedo, cp, é missionário passionista e mestre em Teologia Fundamental na Pontifícia Universidade Gregoriana. Atualmente, faz o doutorado em Teologia Fundamental nesta Universidade.