Frei Ludovico Garmus
O Papa Francisco, em sua fala aos bispos e cardeais, reunidos no Rio de Janeiro para a Jornada Mundial da Juventude, pedia que largassem posturas principescas e se colocassem junto do povo pobre das periferias de nossas cidades. Ainda como Arcebispo de Buenos Aires, ele mesmo, se dirigia aos bairros pobres para atender aos mais necessitados e pedia o mesmo dos seus sacerdotes. O pastor tem que ter o cheiro das ovelhas, diz o Papa. Um dos primeiros gestos do seu pontificado, que até causou escândalo em certos setores católicos, foi o lava-pés da Quinta-feira Santa feito numa prisão, incluindo entre os ‘apóstolos’ duas mulheres, uma delas muçulmana. Outro gesto significativo foi sua primeira visita pastoral fora de Roma aos imigrantes e refugiados do Norte da África, na ilha de Lampedusa.
Na primeira Carta Encíclica do Sumo Pontífice Francisco, Lumen Fidei, sobre a fé (n. 29-31), o Papa fala da fé como escuta e visão. Deus estabelece uma relação de amor com o ser humano pela Palavra e esta se relaciona com a escuta, como lembra Paulo: “A fé vem da escuta” (Rm 10,17). No Antigo Testamento, porém, a escuta da Palavra está ligada ao “desejo de ver o seu rosto”. O evangelho de João é o que melhor estabelece a relação entre o ver e o ouvir, “como órgãos do conhecimento da fé”. A escuta da fé, como lembra o Papa, é “a forma de conhecimento própria do amor”. As ovelhas se acostumam a escutar a voz do seu pastor, por isso, pela sua voz o reconhecem (cf. Jo 10,3-5) e o seguem. A escuta tem como consequência o seguimento. Assim aconteceu com os dois primeiros discípulos de Jesus que, ouvindo João Batista dizer: “Eis o Cordeiro de Deus”, imediatamente o seguiram (Jo 1,37). A fé também está ligada à visão, como acontece com os judeus que, depois da ressurreição de Lázaro, “ao verem o que Jesus fez, creram nele” (Jo 11,45). Em Jo 12,44-45, acrescenta o Papa, o acreditar e o ver se cruzam: “Quem crê em mim (…) crê naquele que me enviou; e quem vê a mim, vê aquele que me enviou”. João evangelista, na manhã da Páscoa, entrando no túmulo vazio, “viu e creu” que Jesus havia ressuscitado. Maria Madalena ouviu Jesus perguntando: “Mulher, por que choras? A quem procuras?” Mas só reconheceu que era Jesus quando ouviu sua voz, chamando-a pelo nome: “Maria” (Jo 20,11-18).
Nestes exemplos bíblicos, citados pelo Papa Francisco, percebe-se que a fé surge do encontro entre quem procura a Cristo e do Cristo que se deixa encontrar por quem o procura. No buscar a Deus e no “deixar-se surpreender por Deus”, na expressão do Papa ao falar aos jovens na Jornada Mundial da Juventude. Continuando a reflexão do Papa Francisco, poderíamos lembrar a parábola do bom samaritano. Vemos isso na parábola do bom samaritano contada por Jesus. O sacerdote e o levita, foram procurar a Deus, através dos serviços que prestavam no templo de Jerusalém. Eram homens de fé, sem dúvida. Mas tiveram um encontro pessoal com Deus? Parece que não, porque foram incapazes de ligar a fé com a vida prática. No homem caído à beira da estrada não viram o próximo, nem se aproximaram dele para socorrê-lo. O samaritano, porém, mesmo preocupado com seus negócios, foi capaz de ver o homem caído, aproximou-se dele e o socorreu. Viu o próximo quando dele se aproximou (Lc 10,36), quando teve misericórdia dele. Misericórdia, compaixão, é o que nos pede Tiago: “A religião pura e imaculada diante de Deus e Pai é esta, assistir os órfãos e as viúvas em suas aflições e conservar-se sem mancha neste mundo” (Tg 1,27). E acrescenta: “Mostra-me a tua fé sem obras, e eu te mostrarei a fé por minhas obras” (2,18).
Ir para as periferias envolve não só um deslocamento físico, mas inclui a capacidade de aproximar-se das pessoas, de ver o sofrimento dos mais pobres e ouvi-los. Tal atitude, sem dúvida, vai transformar nossa fé em práticas concretas de amor e misericórdia.
No último dia de sua visita ao Brasil, falando aos bispos responsáveis do CELAM (2011-2015), o Papa Francisco fez um exame de consciência à luz dos princípios pastorais, delineados no Documento de Aparecida. Entre a dezena de questionamentos feitos na ocasião, destaco uma pergunta, válida para todos os pastores: “Promovemos espaços e ocasiões para manifestar a misericórdia de Deus?” Em seguida, traça algumas linhas mestras, tiradas das orientações de Aparecida, para que isso aconteça:
1. Um paradigma para o discípulo missionário é “o encontro com o Mestre (que nos unge discípulos) e o encontro com os homens que esperam o anúncio”.
2. Recomendação de ir às periferias: “Por isso, gosto de dizer que a posição do discípulo missionário não é uma posição de centro, mas de periferias…, incluindo as da eternidade no encontro com Jesus Cristo (…) O discípulo missionário é um descentrado: o centro é Jesus Cristo, que convoca e envia. O discípulo é enviado para as periferias”.
3. A proximidade e o encontro: “… encontro com Jesus Cristo, encontro com os irmãos”.
4. A homilia: “Uma pedra de toque para aferir a profundidade e a capacidade do encontro de uma pastoral é a homilia. Como são as nossas homilias?”
5. Na lista de qualidades de um bom bispo (e também pastor), como primeira qualidade, o Papa Francisco coloca: “grande mansidão: (ser) pacientes e misericordiosos”.
Para concluir, lembro um fato exemplar durante a visita do Papa Francisco a uma favela do Rio, contado pelo Frei José Alamiro. O Papa desejava visitar uma prisão. Como no planejamento não pôde ser incluída tal visita, a pastoral carcerária da Arquidiocese do Rio escolheu alguns jovens encarcerados para virem ao encontro do Papa. Entre eles havia uma jovem de 18 anos, a Natália, presa por tráfico de drogas. Por sinal, é paroquiana nossa, da Paróquia Nossa Senhora da Conceição de Paty do Alferes (RJ). Foi ela a escolhida para falar ao Papa em nome dos outros presos. Declamou uma poesia ao Papa e num pôster com seu retrato recebeu uma dedicatória, bem pessoal, além de um carinhoso beijo. Eis um exemplo concreto do pastor que vai às periferias da existência humana: Natália era uma dessas pessoas excluídas pela nossa sociedade; quando nasceu, foi rejeitada pela própria mãe, abandonada no cemitério e, agora, presa por envolvimento nas drogas. O bom pastor deixa as 99 ovelhas que estão bem e vai resgatar aquela desgarrada, “perdida e machucada”. Para Deus nada está perdido, nenhuma pessoa humana é descartável e irrecuperável.
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