Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM
A proximidade das solenidades litúrgicas de Pentecostes e Corpus Christi constitui ocasião propícia para refletirmos acerca da íntima relação, segundo Francisco, entre o Espírito Santo e o sacramento da Eucaristia.
Transparece, em seus escritos, a clara consciência de que o Sacramento do Corpo e do Sangue do Senhor constitui mediação privilegiada de encontro com Jesus Cristo no aqui e agora de sua experiência. Ao falar acerca da Eucaristia, ele começa dizendo “ […] porque nada vejo corporalmente neste mundo do mesmo altíssimo Filho de Deus, a não ser o seu santíssimo Corpo e seu santíssimo Sangue…” (Test 10; cf. ainda 1Cl 3 e 2Cl 3).
A primeira das Admoestações que o Poverello dirige aos frades diz respeito justamente ao Corpo do Senhor: a Eucaristia é apresentada ali como uma espécie de prolongamento do mistério da Encarnação do Filho unigênito de Deus.
“Daí, todos os que viram o Senhor Jesus segundo a humanidade e não viram nem creram segundo o espírito e a divindade que ele é o verdadeiro Filho de Deus foram condenados; de igual modo, todos os que vêem o sacramento, que é santificado por meio da palavra do Senhor sobre o altar pelas mãos do sacerdote em forma de pão e de vinho, e não vêem nem crêem segundo o espírito e a divindade que seja verdadeiramente o corpo e o sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, foram condenados, sendo testemunha o próprio Altíssimo que diz: Isto é o meu corpo e o meu sangue da nova aliança [que será derramado por todos] (Mc 14,22.24); e: Quem come minha carne e bebe meu sangue tem a vida eterna (cf. Jo 6,55). […] E assim como ele se manifestou aos santos apóstolos na verdadeira carne, do mesmo modo ele se manifesta a nós no pão sagrado. E assim como eles com a visão do seu corpo só viam a carne dele, mas contemplando-o com olhos espirituais criam que ele é Deus, do mesmo modo também nós, vendo o pão e o vinho com os olhos do corpo, vejamos e creiamos firmemente que é vivo e verdadeiro o seu santíssimo corpo e sangue. E, desta maneira, o Senhor está sempre com seus fiéis, como ele mesmo diz: Eis que estou convosco até o fim dos tempos (cf. Mt 28,20)” (Adm 1, 8-11. 19-22).
Francisco parece individuar uma atitude comum tanto ao mistério da Encarnação quanto ao mistério da Eucaristia: a condescendência divina que se revela num e noutro casos como radical proximidade mediante a experiência de inusitada humilhação. No primeiro caso, o Filho unigênito de Deus se esconde na pequenez de nossa condição humana; no segundo, ele continua se escondendo sob as modestas aparências do pão e do vinho. Ele, aliás, chega a dizer textualmente: “Eis que diariamente ele se humilha (cf. Fl 2,8), como quando veio do trono real (Sb 18,15) ao útero da Virgem; diariamente ele vem a nós em aparência humilde; diariamente ele desce do seio do Pai (cf. Jo 6,38; 1,18) sobre o altar nas mãos do sacerdote” (Adm 1, 16-18).
Diante desta manifestação deveras singular da condescendência divina, Francisco exorta a superar as aparências, em ambos os casos, e a contemplar o mistério da Encarnação e o mistério do Corpo e do Sangue do Senhor com os olhos da fé. Só assim alcançaremos compreender o sentido último deste gesto divino e seremos, então, capazes de nos abrir à sua presença e interpelação. Justamente por ser a expressão privilegiada do mistério da Encarnação do Filho unigênito de Deus que se prolonga no curso da história é que o sacramento da Eucaristia não pode ser reduzido a algo automático e formal.
A presença de Jesus Cristo mediante seu Corpo e Sangue nas espécies do pão e do vinho se realiza por obra e virtude do Espírito Santo. É ele, na verdade, quem propicia que o Cristo continue a se encarnar no aqui e agora de nossas comunidades de fé. É o Espírito Santo quem torna possível a singular experiência de intimidade entre Cristo e nós de tal forma que nos sentimos, de direito e de fato, contemporâneos seus. Fruto desta inaudita intimidade, a contemporaneidade entre Jesus Cristo e nós faz com que acolhamos o gesto de extremo amor de Jesus como uma ação realizada também por nós e para nossa salvação. É ainda esta experiência de nos sentirmos contemporâneos a Cristo que não deixa que nossa Eucaristia se reduza a uma mera recordação de um acontecimento perdido num passado distante.
Ao contrário, é o Espírito Santo quem cria as condições para que nós façamos memória daquele gesto irrepetível, porque singular, mediante o qual Jesus se oferece ao Pai e a nós como expressão de uma solidariedade para além de toda e qualquer expectativa. E fazer memória significa tornar presente aquele evento crucial de nossa experiência de fé. Isso só é possível no vigor do Espírito e graças à sua peculiar eficácia. É Ele quem, mediante sua própria virtude, recupera e resgata a eficácia singular das palavras de Cristo pronunciadas sobre as oferendas do pão e do vinho. Por esta razão, explicitando a estreita relação que existe entre a ação santificadora ou consecratória do Espírito Santo e as palavras de Cristo pronunciadas na última ceia, Francisco afirma em traços firmes e claros: “Por isso, o espírito do Senhor, que habita em seus fiéis, é que recebe o santíssimo corpo e sangue do Senhor. Todos os outros que não têm do mesmo espírito e ousam recebê-lo comem e bebem a própria condenação (cf. 1Cor 11,29)” (Adm 1, 12-13).
Neste sentido, o encontro com Cristo mediante a comunhão nos sagrados mistérios do seu Corpo e Sangue se dá no Espírito Santo e mediante sua força santificadora. Trata-se daquele mesmo Espírito que, derramado no coração dos fiéis, se faz presente no seio da comunidade de fé e atua no âmago da história, encontrando-se também entranhado nas fibras mais íntimas da Criação. Por isso, a comunhão com Jesus só é possível no horizonte maior caracterizado pela experiência do seu seguimento. Isto significa que o comungar com Cristo pressupõe a disponibilidade do fiel em se deixar conduzir pelo Espírito rumo a uma fidelidade cada vez maior ao evangelho de Jesus Cristo. Fora deste ambiente não há experiência de comunhão no Corpo e no Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Por esta razão, segundo Francisco, a Eucaristia é o memorial da obediência perfeita de Jesus. Este foi, afinal, o sinal distintivo, o diferencial da obediência de Jesus: amor irrestrito ao Pai e aos seres humanos mediante uma solidariedade inusitada e insuperável. “Pois, esta é a obediência caritativa (cf. 1Pd 1,22) porque satisfaz a Deus e ao próximo. […] Pois, quem prefere sofrer perseguição a separar-se de seus irmãos permanece verdadeiramente na perfeita obediência, porque expõe a sua vida (cf. Jo 15,13) em favor dos seus irmãos” (Adm 3, 6.9).
Neste contexto, compreende-se por qual motivo Francisco interpreta o pecado original como uma experiência de desobediência. E concebe desobediência como específica experiência de se apropriar indevidamente da própria vontade e de se gloriar dos bens que o Senhor diz e opera em si mesmo. “Podia comer de toda árvore do paraíso, porque, não indo contra a obediência, não pecava. No entanto, come da árvore da ciência do bem aquele que se apropria de sua vontade e se exalta dos bens que o Senhor diz e opera nele” (Adm 2, 2-3).
Interessante notar que Francisco considera o pecado original não como uma genérica transgressão a Deus, mas como uma específica transgressão: ele fala de “transgressão do mandamento” (cf. Adm 2, 4). Ele não compreende o pecado original num sentido linear e cronológico. Ele o concebe, ao contrário, em seu sentido orgânico, vale dizer, enquanto atitude que perpassa toda a complexa trama dos pecados atuais e históricos. Na raiz e, portanto, na origem de todo e qualquer pecado encontramos uma atitude primordial de transgressão do amor a Deus e ao próximo, testemunhado até as últimas conseqüências por Jesus. Neste sentido, Francisco leva às últimas conseqüências a imprescindibilidade da mediação do irmão como verificação da autenticidade do amor a Deus.
Depois de ter individuado a raiz do pecado e de tê-la nomeado como apropriação da própria vontade e dos bens que o Senhor diz e opera em e através de si, Francisco oferece o antídoto adequado contra este mesmo pecado: que ninguém se ensoberbeça, mas se glorie na cruz do Senhor. Na qualidade de agraciados pelo Pai, não devemos nos gloriar de nada, exceto de nossas próprias fraquezas.
“Portanto, a partir de que podes gloriar-te? Pois, se fosses tão sutil e sábio a ponto de teres toda ciência (cf. 1Cor 13,2) e saberes interpretar todos os gêneros de línguas (cf. 1Cor 12,28) e perscrutares com sutileza a respeito das coisas celestes, em nada disso te podes gloriar; […] Igualmente, se fosses mais belo e rico do que todos e também se operasses maravilhas, de maneira a afugentares os demônios, tudo isto te é contrário, e nada te pertence, e em nada dessas coisas podes gloriar-te; mas nisto podemos gloriar-nos, em nossas fraquezas (cf. 2Cor 12,5) e em carregar cada dia a santa cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo (Jo 19,17; Lc 9,23; 14,27)” (Adm 5, 4-5.7-8).
É este o sentido da afirmação lapidária de Francisco: “quanto é o homem diante de Deus, tanto é e não mais” (Adm 19,2). Por esta simples e fundamental razão, somente enquanto nos deixamos conduzir pelo Espírito do Senhor, acolhendo no mais íntimo de nós suas sutis interpelações, é que alcançaremos experimentar a Eucaristia como memorial da obediência perfeita de Jesus e de sua inaudita solidariedade.