Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

É o Espírito quem recebe o Corpo e o Sangue do Senhor

15/05/2007

Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM

A proximidade das solenidades litúrgicas de Pentecostes e Corpus Christi constitui ocasião propícia para refletirmos acerca da íntima relação, segundo Francisco, entre o Espírito Santo e o sacramento da Eucaristia.

Transparece, em seus escritos, a clara consciência de que o Sacramento do Corpo e do Sangue do Senhor constitui mediação privilegiada de encontro com Jesus Cristo no aqui e agora de sua experiência. Ao falar acerca da Eucaristia, ele começa dizendo “ […] porque nada vejo corporalmente neste mundo do mesmo altíssimo Filho de Deus, a não ser o seu santíssimo Corpo e seu santíssimo Sangue…” (Test 10; cf. ainda 1Cl 3 e 2Cl 3).

A primeira das Admoestações que o Poverello dirige aos frades diz respeito justamente ao Corpo do Senhor: a Eucaristia é apresentada ali como uma espécie de prolongamento do mistério da Encarnação do Filho unigênito de Deus.

“Daí, todos os que viram o Senhor Jesus segundo a humanidade e não viram nem creram segundo o espírito e a divindade que ele é o verdadeiro Filho de Deus foram condenados; de igual modo, todos os que vêem o sacramento, que é santificado por meio da palavra do Senhor sobre o altar pelas mãos do sacerdote em forma de pão e de vinho, e não vêem nem crêem segundo o espírito e a divindade que seja verdadeiramente o corpo e o sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, foram condenados, sendo testemunha o próprio Altíssimo que diz: Isto é o meu corpo e o meu sangue da nova aliança [que será derramado por todos] (Mc 14,22.24); e: Quem come minha carne e bebe meu sangue tem a vida eterna (cf. Jo 6,55). […] E assim como ele se manifestou aos santos apóstolos na verdadeira carne, do mesmo modo ele se manifesta a nós no pão sagrado. E assim como eles com a visão do seu corpo só viam a carne dele, mas contemplando-o com olhos espirituais criam que ele é Deus, do mesmo modo também nós, vendo o pão e o vinho com os olhos do corpo, vejamos e creiamos firmemente que é vivo e verdadeiro o seu santíssimo corpo e sangue. E, desta maneira, o Senhor está sempre com seus fiéis, como ele mesmo diz: Eis que estou convosco até o fim dos tempos (cf. Mt 28,20)” (Adm 1, 8-11. 19-22).

Francisco parece individuar uma atitude comum tanto ao mistério da Encarnação quanto ao mistério da Eucaristia: a condescendência divina que se revela num e noutro casos como radical proximidade mediante a experiência de inusitada humilhação. No primeiro caso, o Filho unigênito de Deus se esconde na pequenez de nossa condição humana; no segundo, ele continua se escondendo sob as modestas aparências do pão e do vinho. Ele, aliás, chega a dizer textualmente: “Eis que diariamente ele se humilha (cf. Fl 2,8), como quando veio do trono real (Sb 18,15) ao útero da Virgem; diariamente ele vem a nós em aparência humilde; diariamente ele desce do seio do Pai (cf. Jo 6,38; 1,18) sobre o altar nas mãos do sacerdote” (Adm 1, 16-18).

Diante desta manifestação deveras singular da condescendência divina, Francisco exorta a superar as aparências, em ambos os casos, e a contemplar o mistério da Encarnação e o mistério do Corpo e do Sangue do Senhor com os olhos da fé. Só assim alcançaremos compreender o sentido último deste gesto divino e seremos, então, capazes de nos abrir à sua presença e interpelação. Justamente por ser a expressão privilegiada do mistério da Encarnação do Filho unigênito de Deus que se prolonga no curso da história é que o sacramento da Eucaristia não pode ser reduzido a algo automático e formal.

A presença de Jesus Cristo mediante seu Corpo e Sangue nas espécies do pão e do vinho se realiza por obra e virtude do Espírito Santo. É ele, na verdade, quem propicia que o Cristo continue a se encarnar no aqui e agora de nossas comunidades de fé. É o Espírito Santo quem torna possível a singular experiência de intimidade entre Cristo e nós de tal forma que nos sentimos, de direito e de fato, contemporâneos seus. Fruto desta inaudita intimidade, a contemporaneidade entre Jesus Cristo e nós faz com que acolhamos o gesto de extremo amor de Jesus como uma ação realizada também por nós e para nossa salvação. É ainda esta experiência de nos sentirmos contemporâneos a Cristo que não deixa que nossa Eucaristia se reduza a uma mera recordação de um acontecimento perdido num passado distante.

Ao contrário, é o Espírito Santo quem cria as condições para que nós façamos memória daquele gesto irrepetível, porque singular, mediante o qual Jesus se oferece ao Pai e a nós como expressão de uma solidariedade para além de toda e qualquer expectativa. E fazer memória significa tornar presente aquele evento crucial de nossa experiência de fé. Isso só é possível no vigor do Espírito e graças à sua peculiar eficácia. É Ele quem, mediante sua própria virtude, recupera e resgata a eficácia singular das palavras de Cristo pronunciadas sobre as oferendas do pão e do vinho. Por esta razão, explicitando a estreita relação que existe entre a ação santificadora ou consecratória do Espírito Santo e as palavras de Cristo pronunciadas na última ceia, Francisco afirma em traços firmes e claros: “Por isso, o espírito do Senhor, que habita em seus fiéis, é que recebe o santíssimo corpo e sangue do Senhor. Todos os outros que não têm do mesmo espírito e ousam recebê-lo comem e bebem a própria condenação (cf. 1Cor 11,29)” (Adm 1, 12-13).

Neste sentido, o encontro com Cristo mediante a comunhão nos sagrados mistérios do seu Corpo e Sangue se dá no Espírito Santo e mediante sua força santificadora. Trata-se daquele mesmo Espírito que, derramado no coração dos fiéis, se faz presente no seio da comunidade de fé e atua no âmago da história, encontrando-se também entranhado nas fibras mais íntimas da Criação. Por isso, a comunhão com Jesus só é possível no horizonte maior caracterizado pela experiência do seu seguimento. Isto significa que o comungar com Cristo pressupõe a disponibilidade do fiel em se deixar conduzir pelo Espírito rumo a uma fidelidade cada vez maior ao evangelho de Jesus Cristo. Fora deste ambiente não há experiência de comunhão no Corpo e no Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Por esta razão, segundo Francisco, a Eucaristia é o memorial da obediência perfeita de Jesus. Este foi, afinal, o sinal distintivo, o diferencial da obediência de Jesus: amor irrestrito ao Pai e aos seres humanos mediante uma solidariedade inusitada e insuperável. “Pois, esta é a obediência caritativa (cf. 1Pd 1,22) porque satisfaz a Deus e ao próximo. […] Pois, quem prefere sofrer perseguição a separar-se de seus irmãos permanece verdadeiramente na perfeita obediência, porque expõe a sua vida (cf. Jo 15,13) em favor dos seus irmãos” (Adm 3, 6.9).

Neste contexto, compreende-se por qual motivo Francisco interpreta o pecado original como uma experiência de desobediência. E concebe desobediência como específica experiência de se apropriar indevidamente da própria vontade e de se gloriar dos bens que o Senhor diz e opera em si mesmo. “Podia comer de toda árvore do paraíso, porque, não indo contra a obediência, não pecava. No entanto, come da árvore da ciência do bem aquele que se apropria de sua vontade e se exalta dos bens que o Senhor diz e opera nele” (Adm 2, 2-3).

Interessante notar que Francisco considera o pecado original não como uma genérica transgressão a Deus, mas como uma específica transgressão: ele fala de “transgressão do mandamento” (cf. Adm 2, 4). Ele não compreende o pecado original num sentido linear e cronológico. Ele o concebe, ao contrário, em seu sentido orgânico, vale dizer, enquanto atitude que perpassa toda a complexa trama dos pecados atuais e históricos. Na raiz e, portanto, na origem de todo e qualquer pecado encontramos uma atitude primordial de transgressão do amor a Deus e ao próximo, testemunhado até as últimas conseqüências por Jesus. Neste sentido, Francisco leva às últimas conseqüências a imprescindibilidade da mediação do irmão como verificação da autenticidade do amor a Deus.

Depois de ter individuado a raiz do pecado e de tê-la nomeado como apropriação da própria vontade e dos bens que o Senhor diz e opera em e através de si, Francisco oferece o antídoto adequado contra este mesmo pecado: que ninguém se ensoberbeça, mas se glorie na cruz do Senhor. Na qualidade de agraciados pelo Pai, não devemos nos gloriar de nada, exceto de nossas próprias fraquezas.

“Portanto, a partir de que podes gloriar-te? Pois, se fosses tão sutil e sábio a ponto de teres toda ciência (cf. 1Cor 13,2) e saberes interpretar todos os gêneros de línguas (cf. 1Cor 12,28) e perscrutares com sutileza a respeito das coisas celestes, em nada disso te podes gloriar; […] Igualmente, se fosses mais belo e rico do que todos e também se operasses maravilhas, de maneira a afugentares os demônios, tudo isto te é contrário, e nada te pertence, e em nada dessas coisas podes gloriar-te; mas nisto podemos gloriar-nos, em nossas fraquezas (cf. 2Cor 12,5) e em carregar cada dia a santa cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo (Jo 19,17; Lc 9,23; 14,27)” (Adm 5, 4-5.7-8).

É este o sentido da afirmação lapidária de Francisco: “quanto é o homem diante de Deus, tanto é e não mais” (Adm 19,2). Por esta simples e fundamental razão, somente enquanto nos deixamos conduzir pelo Espírito do Senhor, acolhendo no mais íntimo de nós suas sutis interpelações, é que alcançaremos experimentar a Eucaristia como memorial da obediência perfeita de Jesus e de sua inaudita solidariedade.

Download Premium WordPress Themes Free
Download WordPress Themes Free
Download Premium WordPress Themes Free
Download Premium WordPress Themes Free
free download udemy course
download coolpad firmware
Free Download WordPress Themes
free download udemy course