Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

A quem interessa a fragmentação das lutas sociais?

09/09/2012

Por Rosangela Helena Pezoti

Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem arbitrariamente, nas condições escolhidas por eles, mas antes sob as condições diretamente herdadas e transmitidas  do passado. (Karl Marx[1])

No último dia 07 de setembro, na cidade de São Paulo, ocorreram duas manifestações do Grito dos Excluídos. De forma legítima, ambas mobilizaram sindicatos, movimentos sociais, pastorais sociais e organizações nas mais diversas áreas; ambas, apresentaram as reivindicações de grupos “ excluídos” do processo de produção e apropriação da riqueza produzida em nosso país.

Porém, qualquer observador, pouco envolvido com a organização e as discussões em torno dos “Gritos” que aconteceram na cidade, se perguntaria: Porque duas manifestações, em locais diferentes, porém, com o mesmo objetivo?

As respostas que têm sido dadas a esta indagação são as mais diversas e co-existem há algum tempo, já que este não é o primeiro ano em que ocorreram os dois “Gritos”:  alguns afirmam que não há problema em ocorrer várias manifestações, pois elas evidenciam em muitos locais da cidade, as questões que precisam ser enfrentadas. De outro lado, o fato evidencia, também, a fragmentação que temos nas lutas sociais. Ou seja, na organziação desta manifestação tão importante, pelo seu caráter transnacional,  a importância maior, na cidade de São Paulo,  tem recaído sobre o  que nos diferencia e, não, ao que nos une. Cabe, então,  outra pergunta: a quem interessa a fragmentação das lutas sociais?

Historicamente, o processo de desenvolvimento do Brasil não incorporou a participação da população, quer na distribuição da riqueza, quer na participação da vida política do país. Segundo Fernandes (1989:24[2]), este processo de “modernização conservadora” fundamentou uma tradição de relações sociais e políticas autoritárias, oligarquizando o sistema de poder e marginalizando o povo do espaço público.

Em contrapartida, “as forças sociais sempre se articularam contrárias a esta hegemonia conservadora, reconhecendo que os limites existentes foram e são mutáveis, provisórios e relativos. (…) Portanto, a participação popular no Brasil esteve constantemente presente na história, explorando as contradições internas do sistema em vista da transformação social (PEZOTI e FEDRIGO, 2009:90[3]).

Na história recente do país, a abertura democrática a partir da década de 1980, abriu a possibilidade de se desenvolver um processo democrático capaz de incorporar novos sujeitos políticos na definição dos rumos da sociedade. Organizaram-se, dentro outros, os movimentos urbanos contra a carestia, pela urbanização das favelas e o direito à moradia; os movimentos contra a concentração de terra e pela reforma agrária; e, as Comunidades Eclesiais de Basse impulsionadas pela Teologia da Libertação na América Latina.

Estes e outros  movimentos inscreveram novos direitos na Constituição de 1988, não apenas no campo dos direitos sociais, mas, sobretudo, no direito da participação na definição das políticas públicas e, no controle da ação do Poder Executivo.

A década de 1990 iniciou-se com o  reconhecimento formal dos direitos sociais e das garantias civis, porém, a crise do capital que irrompeu no final dos anos 1970 e as estratégias utilizadas para a sua superação, afetaram, profundamente, todas as dimensões da vida humana.

No enfrentamento dos problemas referentes ao rebaixamento da taxa de lucro, o capital recorre a todos os meios possíveis e imagináveis. É isto que deu origem, na atualidade, à chamada reestruturação produtiva e ao neoliberalismo. Esses se caracterizam, essencialmente, por profundas mudanças na forma da produção, com a precípua finalidade de retomar o aumento da taxa de lucro e pela afirmação, com todas as suas consequências, de que dever‐se‐ia deixar ao mercado a responsabilidade pelo equacionamento dos problemas da humanidade. O Estado não deixaria de ter importância, mas seu papel seria apenas subsidiário. Para além da propaganda ideológica, sabe‐se que tanto a reformulação do processo produtivo, quanto às mudanças no papel do Estado tiveram a finalidade de permitir a retomada do aumento do lucro das classes dominantes, em especial daquelas dos países centrais[4].

Não é apenas no campo das necessidades materiais que se expressa a crise atual do capital. As dimensões subjetivas da sociabilidade humana foram profundamente atingindas, com expressões de caráter mais geral. Conforme Tonet (2009) são expressões da crise que:

• No campo ético, visibiliza um fosso entre o “dever ser o e ser”, ou seja, entre uma realidade cada vez mais desumanizadora, e o discurso ético, que proclama os valores humanistas da solidariedade, da honestidade, do respeito à vida.

• Na vida social, manifesta-se pela efemeridade que está ligada a superficialidade, à banalização, ao modismo e à massificação que, no campo material, manifesta-se no consumo exacerbado; e, nas relações sociais, pela intensificação do individualismo  e da competitividade.

O fracasso das tentativas de mudar o mundo através de esforços coletivos, centrado nas revoluções que se pretendiam socialistas, agravou enormemente essa convicção individualista. Como já não se visualizam soluções coletivas, é levada ao paroxismo a ideia de que a solução dos problemas é individual, de que o sucesso ou fracasso na vida dependem dos próprios indivíduos, considerados isoladamente[5].

O valor supremo do capital está no ter, como imposição da lógica de reprodução do sistema, intensificando a concorrência em detrimento aos valores que possibilitam uma sociabilidade comunitária. Por isso, uma ação coletiva para a solução dos problemas sociais se vê dificultada pela lógica que predomina em nossa sociedade.

Esta lógia se expressa, entre outros setores da vida, na segmentação da organização das lutas sociais, com a multiplicação de demandas de grupos de interesse posicionados, cada vez mais fechados em si mesmo. Também,  os trabalhadores tendem a estar mais preocupados em manter individualmente seus direitos, do que envolverem-se e se dedicarem a lutas político-organizativas.

As lutas, quando limitadas a horizontes imediatos de interesses, retiram a perspectiva de inserção no quadro da realidade econômica, social e política da luta de classes. Inserção esta que possibilitaria a expansão de ações numa proposta mais abrangente de relações societárias e de construção de uma cultura eticopolítico que primasse por valores contra-hegemônicos à lógica do capital.

Por isto, tão importante quanto nos questionarmos a quem interessa a fragmentação das lutas sociais, podemos inverter a lógica da indagação: A QUEM NÃO INTERESSA A FRAGMENTAÇÃO DAS LUTAS SOCIAIS. A resposta, sabemos: à própria luta social que, historicamente, vem sendo construída com a luta e o sonho de muitos.

Por isso, o Grito dos Excluídos na cidade de São Paulo, para o ano de 2013, pode ser organizado a partir do diálogo, da superação das diferenças e a  aproximação das lutas e reivindicações que precisamos, concretamente, construir na nossa cidade.

Nos imensos desafios que se colocam na atualidade, importante lembrar as palavras de Mandel (1995:214[6]): “Toda tentativa de solução individual, parcial, fragmentada, descontínua para essas tremendas ameaças que se observam está, desde o início, condenada ao fracasso. A única possibilidade está na ação coletiva; (…) Essa é a orientação que devemos adotar para resolver a crise da humanidade”.


[1] MARX, Karl. O dezoito Brumário de Louis Bonaparte. São Paulo, Paz e Terra, 1977.

[2] FERNANDES, Florestan. A constituição inacabada: vias históricas e significado político. São Paulo, Estação Liberdade, 1989.

[3] PEZOTI, Rosangela e FEDRIGO, Kátia. Memória da participação popular no Brasil. In Fragmentos da Memória. São Paulo, LPB, 2009.

[4] TONET, Ivo. Expressões socioculturais da crise capitalista na atualidade. In Serviço Social: direitos sociais e competências profissionais. Brasília, CFESS/ABEPSS, 2009, pg. 109

[5] TONET, Ivo. Expressões socioculturais da crise capitalista na atualidade. In Serviço Social: direitos sociais e competências profissionais. Brasília, CFESS/ABEPSS, 2009, pg. 112.

[6] MANDEL, Ernest. Debate. In: VIGEVANI, T. et al. Liberalismo e socialismo: velhos e novos paradigmas. São Paulo: UNESP, 1995.

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