Frei Jacir de Freitas Faria [1]
O texto sobre o qual vamos refletir hoje é Lc 11,14-26. Nele aparece o imaginário das figuras do Demônio e de Satanás. Existe diferença entre eles? Quem é Belzebul?
Jesus expulsa um demônio que estava num mudo, que volta a falar. Acusado de agir em nome do Príncipe dos demônios, Belzebul, Jesus menciona Satanás. Será por quê? Seria Jesus um exorcista?
A primeira coisa, sobre a qual devemos ter clareza, é que Jesus não está falando do capeta, figura que surgiu a partir do ano mil na Igreja, como um ser perigoso que impõe medo, que tem chifres, rabo, pernas de bode e asas de morcego. Ao desaparecer, fede a enxofre e vive no meio do fogo do Inferno. Jesus não conheceu esse imaginário religioso que foi usado pela Igreja para impor o seu domínio na sociedade, a partir do controle das almas.[2]
Ausente no Primeiro Testamento, o termo demônio aparece 73 vezes no Segundo Testamento. Só em Lucas são 23 vezes. Já os termos correlatos de demônio, como espírito impuro, somados passam de 500. Os demônios são as forças opositoras a Deus e ao ser humano. Eles estão subordinados a Satanás. Há uma legião de demônios comandados por ele. Por isso, Jesus fala de Satanás, que significa aquele que se opõe e divide. Diabo é a tradução grega do hebraico Satanás. O chefe (príncipe) dos demônios é Belzebu, nome que significa ‘Senhor’ (Baal) das mocas e da peste, da pandemia (Zebul).
Na literatura judaica, encontramos figuras demoníacas, citadas no Primeiro Testamento, como Azazel (Lv 16,8), o demônio bode que vive no deserto, o qual também é considerado o chefe dos demônios. Famosa é Lilit (Is 34,14), a demônia feminina, a rainha sedutora da noite, a coruja da floresta que atormenta homens que dormem sozinhos, tendo como objetivo ter filhos demônios das poluções noturnas. Litit foi também considerada, pelo folclore judaico, como a primeira mulher de Adão.[3]
Jesus, em relação aos demônios, nos evangelhos, age como exorcista. Ele expulsa demônios pelo seu poder. Nos evangelhos há uma aproximação entre a cura e o exorcismo. Para os conterrâneos de Jesus, a cura de uma doença equivale ao expulsar demônios. Sem expulsar os demônios, a vitória final não viria. Havia judeus exorcistas. Jesus reconhece essa prática ao autorizar os seus discípulos a expulsar demônios (Mt 10,1). Jesus e os discípulos vencem o universo demoníaco.
Os judeus acusam Jesus de estar possuído pelo demônio, pois seu modo de pensar e apresentar o reino de Deus entrava em choque com as práticas judaicas dos fariseus e dos saduceus.
Em Lucas, os judeus pedem a Jesus que dê um sinal para provar o poder de seus atos. Sabiamente, Jesus devolve a pergunta, falando de Satanás, o que se opõe, para demonstrar que eles que estavam divididos. Jesus garante que ele expulsa demônios pelo dedo de Deus.
Jesus tinha consciência de que, expulsando demônios, ele apressaria a vinda do Reino de Deus. Assim, de forma apocalíptica, Deus iria interferir na história, vencendo as forças do mal para inaugurar um novo tempo na história. Quem estivesse contra, estaria fora dos planos salvíficos.
E hoje, que forças demoníacas devemos expulsar do nosso meio? Como exorcizar a fome, a desigualdade social? Será que estamos endemoniados, mudos diante de um mundo desigual, faminto e dividido. Nas pegadas de Jesus, a nossa missão é de exorcizar todas as formas de injustiças e domínios maléficos que não nos deixam viver na dignidade de filhos e filhas de Deus. Nós temos o poder de expulsar demônios modernos, nas suas variadas formas.
[1]Doutor em Teologia Bíblica pela FAJE (BH). Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de Exegese Bíblica. É membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quinze. Youtube: Frei Jacir Bíblia e Apócrifos. https://www.youtube.com/channel/UCwbSE97jnR6jQwHRigX1KlQ
[2] FARIA, Jacir de Freitas. O medo do Inferno e a arte de bem morrer: da devoção a Nossa Senhora da Boa Morte às irmandades Negras de Nossa Senhora da Boa Morte. Petrópolis: Vozes, 2019, p. 147.
[3] VAILATTI, Carlos Augusto. Manual de demonologia, 2ª ed. São Paulo: Fonte Editorial, p. 67-68.