Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

A serpente não oferece uma maçã para a mulher que, com medo da nudez, foi considerada um macho defeituoso (Gn 3,1-7)

10/02/2023

“Adão e Eva”, de Lucas Cranacher 1472–1553 (domínio público, Wikimedia Commons)

Frei Jacir de Freitas Faria [1]

O texto sobre o qual vamos refletir é Gn 3,1-7. Trata-se da segunda narrativa da criação de Gn 2,4b—3,24. A primeira, Gn 1,1—2,4a, foi escrita quase cinco séculos depois. Ambas constituem uma profissão de fé em Deus criador.  São modos mitológicos diferentes de relatar uma mesma temática. Gn 1,1—2,4a é um contramito ao mito babilônico da criação Enuma Elish. Já Gn 2, 4b–3, 24 é um mito que reflete sobre a condição humana no paraíso e fora dele, ao narrar que quando não havia nenhum arbusto sobre a terra, nem ser humano para cultivá-la, Deus modela da terra um homem e lhe dá o sopro da vida. Planta um jardim, no Éden. Da costela do homem, faz-lhe uma companheira. Eles viviam nus, com a proibição de não comerem do fruto da árvore do bem e do mal, até que, um dia, a serpente engana a mulher, que engana o homem, e ambos comem do fruto proibido. Com isso, o medo se apodera deles. Todos os três recebem um castigo do Criador e são expulsos do paraíso.

Dessa narrativa saltam aos olhos vários elementos mitológicos, tais como: serpente, árvore da vida e do conhecimento, fruto proibido, nudez etc. [2] Vejamos o que eles significam.

Árvore é um símbolo importante em Gn 2, 4b – 3,24. Descobertas arqueológicas e textos do Antigo Oriente Próximo evidenciam a importância da árvore como símbolo do crescimento, amadurecimento e continuação da vida. Ela cresce lentamente, produz sementes e frutos, perde folhas e renasce a cada ano.[3] Em Gn 2, 4b – 3, 24 aparecem duas árvores. A primeira é o símbolo da vida imortal; a segunda, a do conhecimento do bem e do mal. A árvore da vida dá o seu fruto e dele o ser humano pode comer sem morrer, mas o fruto da árvore do conhecimento traz a morte junto. Esse fruto não é a maçã.  A identificação com a maçã veio de São Jerônimo (420 E.C.), ao traduzir do hebraico para o latim o ‘mal’ de fruto do bem e do mal, ele grafou malus que também significa maçã. É como nós dizemos, em português, manga de roupa e manga de porcos. Portanto, não tem maçã no texto bíblico. Na Grécia antiga, um pedido de casamento era feito com a entrega de uma maçã.

Adão e Eva comem o fruto proibido, mas não conhecem a morte. Trata-se não de uma morte física, mas da capacidade do ser humano de libertar-se de Deus, tornando-se capaz de conhecer e de decidir pelo bem e o mal, o que lhe traria a morte e perda do paraíso, consequências de sua não aceitação da condição de criatura.

O comer o fruto da árvore da vida representa também a nossa vida de criança no jardim, no paraíso, com vontade de amadurecer, deixar de ser criança, fora da proteção do paraíso (dos pais). Criança pensa que a vida é eterna. Ela não tem consciência da morte. Crescer e amadurecer é um caminhar para a morte.

Por terem feito algo errado, era esperado o medo, seja o da morte, seja o de ter que conhecer e assumir responsabilidades. No entanto, o medo está na nudez e não no anúncio divino da morte. O medo humano se resume ao fato de ter que expor a sua nudez. No mundo antigo, deuses eram representados nus. A nudez coloca o ser humano na condição de fertilidade, doadores da vida, que somente vem de Deus. Adão e Eva se veem com um deus diante de outro deus mais poderoso, Deus-Javé, e têm medo dele e da vida adulta. Como pessoas amadurecidas, eles têm vergonha e se cobrem. Agora, eles terão responsabilidade de gerar vidas. Um dos grandes conflitos do adolescente é a autoafirmação e consequente anulação do papel dos pais na sua vida.

Notório nessa passagem bíblica é o fato de a mulher ter o papel decisivo. Contraditório, no entanto, é o fato de ela ser a causa da condição mortal do ser humano por ter comido o fruto da árvore proibida e, ao mesmo tempo, ser agraciada com o nobre título de geradora da vida, Eva, a mãe dos viventes. Hawwâ, Eva, em hebraico, assim como Javé, Jweh, e serpente, em aramaico jiwya, significam viver ou fazer viver.

Mais notório ainda foi o fato de que esse clássico texto da literatura bíblica foi, ao longo da história da humanidade, fonte de inspiração para tantos outros, para pinturas, discursos poéticos, teológicos e moralistas, sobretudo em relação à criação do homem e da mulher. O filósofo Aristóteles (384-322 a.E.C.) afirma: “A mulher é como se fosse um homem frustrado, um macho defeituoso. Considerando em relação com a natureza particular, a mulher é algo imperfeito e ocasional. Porque a potência ativa que reside no sêmen do varão tende a produzir algo semelhante a si mesmo, o gênero masculino. O nascimento de uma mulher se deve à debilidade da potência ativa, ou melhor, da má disposição da matéria, ou também de uma mudança produzida por um agente exterior, por exemplo, os ventos austrais, que são úmidos, tornando fraco (constipado) o espermatozoide que gera a mulher”.[4]  Nessa visão, a mulher é o resultado do fracasso do sêmen masculino. Ela é um homem frustrado porque ela não faz parte do projeto da natureza particular. O sêmen masculino procura dominar a substância reprodutiva feminina. Quando isso não ocorre, nasce a mulher. O sêmen masculino é forte, e a ação reprodutiva da mulher, que está no sangue, é fraca. Nessa época, ainda não se tinha conhecimento do óvulo feminino.

Santo Agostinho (354-430 E.C.) interpretou Gn 2, 4b – 3, 24 na perspectiva do pecado original como queda do ser humano e sua consequente perda do paraíso. O teólogo Tomás de Aquino (1225-1274 E.C.)  situa Aristóteles no seu contexto e não concorda que a mulher é um macho defeituoso. Para ele, a criação da mulher não depende da ação do sêmen, mas da natureza divina. [5]

Em nosso tempo, ainda há muito que fazer para superar a discriminação da mulher, fato que veio do judaísmo, firmou raízes no cristianismo e ainda reina soberana entre nós e em muitos povos. Além disso, serpentes continuam vivas espalhando, em nome de Deus, venenos de discórdias, de dominação e de submissão a falsos mitos. Que esse mito de Gênesis acalente o nosso sonho voltar ao Paraíso perdido.


[1]Doutor em Teologia Bíblica pela FAJE (BH). Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de Exegese Bíblica. É membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quinze. Youtube: Frei Jacir Bíblia e Apócrifos. https://www.youtube.com/channel/UCwbSE97jnR6jQwHRigX1KlQ

[2] FARIA, Jacir de Freitas. As mais belas e eternas histórias de nossas origens em Gn 1-11: mitos e contramitos. Petrópolis: Vozes, 2015, p. 62-77.

[3] BRENNER, Athalya (Org.). Gênesis a partir de uma leitura de gênero. São Paulo: Paulinas, 2000, p. 97.

[4] ARISTÓTELES, De Generat Animal, 12.C3.

[5] AQUINO, Tomás. Summa Theológica, Tratado do homem, artigo 1, Sobre a questão da mulher, questão 92.

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