Frei Jacir de Freitas Faria [1]
O texto sobre o qual vamos refletir hoje é Isaías 56,1-3a.6-8. Trata-se da profecia de Isaías sobre a proximidade da salvação e a manifestação da justiça de Deus. Isaías condiciona esse acontecimento ao cumprimento da justiça, o guardar o sábado e acolhimento dos estrangeiros na vida do povo eleito, que é chamado a ser luz para todas as nações.
O livro de Isaias está dividido em três partes (1Is 1—39; 2Is 40—55 e 3Is 56—66), cada uma delas escrita por três autores distintos e em épocas diferentes. Podemos falar de Primeiro, Segundo e Terceiro Isaías. Portanto, o nome Isaías, que em hebraico significa “O Senhor é a Salvação”, reúne em torno de si uma escola profética.
A passagem de Is 56,1-3a.6-8 está situada no contexto do Exílio Babilônico (597-536 a.E.C.), quando as lideranças do povo de Deus, do reino de Judá, estiveram exiladas por cinquenta anos na Babilônia. Já no fim desse exílio, quando o rei da Pérsia, Ciro I, invadiu a Babilônia e decretou um edito permitindo a volta do povo de Deus, da Babilônia para Judá, a euforia tomou conta do povo (2Cr 36,22-23; Es 1,1-4). Alguns, no entanto, não quiseram voltar. Foi desse modo, que se consolidou a assim chamada “Diáspora”, isto é: os judeus que viviam fora de Israel ou dispersos pelo mundo.
Podemos identificar no fim do cativeiro e entre aqueles que voltaram três “projetos”, ou melhor, três “tendências” que se misturavam entre o povo desejoso de recomeçar a sua história na sua pátria. Podemos destacar três tendências principais: 1) Restaurar a monarquia, o templo e Jerusalém; 2) Reorganizar a Lei e o povo, formando uma raça pura, sem presença de estrangeiros; 3) Renovar (Luz das Nações), atualizar as leis para colocá-las a serviço do povo. Os dois primeiros projetos foram levados a cabo por Esdras e Neemias. Já o terceiro teve como mentores o Segundo e Terceiro Isaías. O seu apogeu foi nos anos 520 a 445 a.E.C.
Na verdade, esses projetos podem ser reduzidos a dois esquemas de pensamento:[2] 1) Ler o presente à luz do passado (restaurar); 2. Ler o passado à luz do presente (renovar). A corrente que predominou, até chegar a ser a hegemônica, foi a de restaurar. O projeto “Luz das Nações” propôs uma nova experiência de Deus a partir da vivência no exílio. Novas características de Deus foram descobertas a partir da relação paterna e materna com Ele. Deus revelou o seu rosto de Pai, Mãe e Esposo. O Deus “Libertador” da saída do Egito não era mais de um clã, de um grupo de famílias, mas de todos os que estavam no exílio. Somente Deus seria capaz de renovar o povo por dentro. Sem essa experiência não seria possível a renovação. Com essa nova visão de Deus, o povo releu a sua história, o seu passado, e projetou um futuro diferente. Se todos os valores e símbolos do povo foram destruídos no exílio, o grupo do projeto “Luz das Nações” soube, com criatividade e profundidade, reler as tradições e dar-lhes um novo valor. O povo não mais poderia se ver como o único que excluía outros povos. Is 56, 3-7 diz que o povo deveria ter uma mentalidade aberta, ecumênica, pois é Deus mesmo que convida todos os povos. Nada de privilégios para o povo de Israel. Isso foi muito inovador para a mentalidade judaica.
O terceiro Isaías denunciou o enriquecimento de alguns (56,11), os chefes do povo (56,9-12), a idolatria (57,3-13) e o Templo. Ele propôs como solução o compromisso do povo com a justiça e com o direito (56,1), assim como considerar os estrangeiros convertidos como membros da religião judaica (56,4-6). Já o sacerdócio judeu deveria se abrir a todos e não se aliar ao império persa (66), bem como o sábado não podia ser violado. Por fim, um julgamento divino aconteceria de forma terrível (63; 65).
Neemias, judeu nascido na Babilônia, não queria voltar para Judá, mas se preocupava com a situação dos judeus libertados e com Jerusalém. Assim como Neemias, muitos judeus da diáspora se preocupavam com a situação de Jerusalém, a cidade símbolo para todos. Esses exerciam pressão para que ela fosse reconstruída (Nee 1,1-4).
A situação econômica e política do povo judeu estava ruim. Os pais penhoravam os filhos para sobreviver, as terras e vinhas para pagar tributo ao rei. A situação estava insuportável para os pobres (Nee 5,1-8). Os pobres sonhavam ainda com a volta do tribalismo, igualdade para todos. Com o projeto de restauração, os que voltaram do exílio tornaram-se ricos. O templo havia se convertido em um banco de negócios (Nee 13,4-5). O sábado, dia sagrado para os judeus, começou a ser violado em nome de interesses comerciais (Nee 13,15-16). Por isso, Isaías insiste no guardar o sábado.
O projeto “Luz das Nações” era contra a proibição dos casamentos mistos, isto é, com mulheres estrangeiras. Esdras havia exigido que todos abandonassem a mulheres estrangeiras para salvar a raça pura (Es 10,18-44). Neemias proibia tal prática (Nee 13,23-24). Na verdade, os motivos do fracasso do projeto “Luz das Nações” podem ser entendidos a partir de três grandes pontos de vista, a saber:
a) Ideológico (cultural-religioso)
A abertura promovida pelo projeto “Luz das Nações” fez com que o povo judeu passasse a ver os estrangeiros como irmãos de convivência e membros do povo eleito. Os estrangeiros podiam também ensinar culturalmente ao povo israelita. Diante desse quadro, muitos dos israelitas começaram a se perguntar: Qual a vantagem de ser judeu se todas as religiões são boas? A excessiva abertura fez com que o povo perdesse a noção de limites (Ml 2,17, 3, 14-15; Sl 73, 10-13).
b) Político
O conflito entre o poder político de Samaria e o de Jerusalém provocou desavenças entre os que permaneceram no país, defensores de Samaria, e os que retornaram e queriam que Jerusalém voltasse ao seu esplendor. Em contrapartida, o império persa precisava da fidelidade e estabilidade da Palestina para controlar as revoltas no Egito.
c) Socioeconômico
Em Jerusalém existiam ricos e pobres. Com base em Dt 15 se procurou fazer uma retribalização do país, o que não foi possível. Não bastavam as ideias novas, era preciso um ser humano novo também por dentro. O povo, chamado a ser “Luz das Nações”, praticava a injustiça social, deixando de ser testemunha da Aliança com Deus.
Ao depararmos com a nossa realidade, quando estamos vivendo momentos únicos de disputas entre projetos políticos de direita e de esquerda. No apogeu dos deuses do futebol, no encontro de nações, no rico império dos xeiques do Catar, na Península Arábica da Ásia Continental, no Oriente Médio, nossos atletas desdenham a fome de mais 30 milhões de brasileiros ao se darem o luxo de pagar R$9.000,00 por uma picanha folheada a ouro de 24 quilates. Ah! Se Isaías ainda estivesse vivo! Vergonha e imoralidade! E ainda fazemos desses atletas deuses do futebol! Pena! A magia do futebol deixa de ser luz para as nações quando as trevas do dinheiro imperam.
[1]Doutor em Teologia Bíblica pela FAJE (BH). Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de Exegese Bíblica. É membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quinze. Youtube: Frei Jacir Bíblia e Apócrifos. https://www.youtube.com/channel/UCwbSE97jnR6jQwHRigX1KlQ
[2] M. SCHWANTES – C. MESTERS , La fuerza de yahvé actúa en la historia. Breve história de Israel, Dabar: México 1992, 75.