27º Domingo do Tempo Comum
- 27º Domingo do Tempo Comum
- Textos bíblicos para este domingo
- Reflexões do exegeta Frei Ludovico Garmus
- A fé pode ser pequena
- O delicado e complexo tema da fé
- A audácia de crer
- Somos simples servos
- Caminhos do Evangelho
27º Domingo do Tempo Comum
Por uma fé silenciosa e operante
Frei Gustavo Medella
Em tempos de valorização excessiva da imagem, da busca frenética pela visibilidade nas redes sociais, Jesus apresenta a fé como semente discreta, pequena, frágil, mas cheia de força. É a fé escondida de milhões de pessoas que buscam viver plenamente o mandamento do amor, independente do credo que professem: “Amai-vos uns aos outros”. Este testemunho corajoso e perseverante ultrapassa os limites do templo, chega aos recantos mais inimagináveis da existência humana e tem a capacidade de aliviar dores, curar feridas, erguer caídos, transformar corações. Quase sempre sem publicidade ou badalação.
Na comparação que apresenta no texto do Evangelho, Jesus apela para uma imagem quase pirotécnica, de uma árvore que se transplanta do solo para o mar. Um feito prodigioso! O Mestre, em sua sabedoria humano-divina, recorre a esta metáfora exagerada porque sabe o quanto cada pessoa precisa empenhar-se para transplantar do próprio coração medos, ressentimentos e egoísmos que a impedem de viver com liberdade, alegria e gratidão a sua fé.
Se levarmos a sério o que Jesus ensina, não é difícil perceber que ser crente e fiel pouco tem a ver com o domínio de normas e regras ou com a ostentação de conhecimento relativo a doutrinas. Ter fé, em resumo, é ter a coragem de sair de si, abandonando-se aos cuidados de Deus para se colocar no cuidado do próximo. Trabalhemos, unidos, por um mundo onde a fé seja mais silenciosa e operante, onde as pontes se sobreponham aos abismos que se formam quando o orgulho e à prepotência são praticados em nome de Deus. Quem se coloca com sinceridade e sabedoria a serviço do Reino não tem preocupação em ser exaltado e aplaudido, nem de ser o único correto diante de uma legião de errados, mas apenas se reconhece como servo inútil, que não faz nada além do que deveria fazer (Cf. Lc 17,10).
FREI GUSTAVO MEDELLA, OFM, é o atual Vigário Provincial e Secretário para a Evangelização da Província Franciscana da Imaculada Conceição. Fez a profissão solene na Ordem dos Frades Menores em 2010 e foi ordenado presbítero em 2 de julho de 2011.
Imagem ilustrativa: Canva (www.canva.com/pt_br/modelos)
Textos bíblicos para este domingo
Primeira Leitura: Habacuc 1,2-3; 2,2-4
2Senhor, até quando clamarei, sem me atenderes? Até quando devo gritar a ti: “Violência!”, sem me socorreres? 3Por que me fazes ver iniquidades quando tu mesmo vês a maldade? Destruições e prepotência estão à minha frente; reina a discussão, surge a discórdia. 2,2Respondeu-me o Senhor, dizendo: “Escreve esta visão, estende seus dizeres sobre tábuas, para que possa ser lida com facilidade. 3A visão refere-se a um prazo definido, mas tende para um desfecho e não falhará; se demorar, espera, pois ela virá com certeza e não tardará. 4Quem não é correto vai morrer, mas o justo viverá por sua fé”.
Salmo Responsorial: 94(95)
Não fecheis o coração; ouvi vosso Deus!
Vinde, exultemos de alegria no Senhor, / aclamemos o rochedo que nos salva! / Ao seu encontro, caminhemos com louvores / e, com cantos de alegria, o celebremos! – R.
Vinde, adoremos e prostremo-nos por terra, / e ajoelhemos ante o Deus que nos criou! / Porque ele é o nosso Deus, nosso pastor, † e nós somos o seu povo e seu rebanho, / as ovelhas que conduz com sua mão. – R.
Oxalá ouvísseis hoje a sua voz: / “Não fecheis os corações como em Meriba, / como em Massa, no deserto, aquele dia, † em que outrora vossos pais me provocaram, / apesar de terem visto as minhas obras”. – R.
Segunda Leitura: 2 Timóteo 1,6-8.13-14
Caríssimo, 6exorto-te a reavivar a chama do dom de Deus que recebeste pela imposição das minhas mãos. 7Pois Deus não nos deu um espírito de timidez, mas de fortaleza, de amor e sobriedade. 8Não te envergonhes do testemunho de nosso Senhor nem de mim, seu prisioneiro, mas sofre comigo pelo evangelho, fortificado pelo poder de Deus. 13Usa um compêndio das palavras sadias que de mim ouviste em matéria de fé e de amor em Cristo Jesus. 14Guarda o precioso depósito com a ajuda do Espírito Santo, que habita em nós.
“Aumenta a nossa fé!”
Evangelho: Lc 17, 5-10
5 Os apóstolos disseram ao Senhor: «Aumenta a nossa fé!» 6 O Senhor respondeu: «Se vocês tivessem fé do tamanho de uma semente de mostarda, poderiam dizer a esta amoreira: ‘Arranque-se daí, e plante-se no mar’. E ela obedeceria a vocês. 7 Se alguém de vocês tem um empregado que trabalha a terra ou cuida dos animais, por acaso vai dizer-lhe, quando ele volta do campo: ‘Venha depressa para a mesa’? 8 Pelo contrário, não vai dizer ao empregado: ‘Prepare-me o jantar, cinja-se e sirva-me, enquanto eu como e bebo; depois disso você vai comer e beber’? 9 Será que vai agradecer ao empregado, porque este fez o que lhe havia mandado? 10 Assim também vocês: quando tiverem cumprido tudo o que lhes mandarem fazer, digam: ‘Somos empregados inúteis; fizemos o que devíamos fazer’.»
* 17,1-10: Lucas reúne aqui sentenças de Jesus sobre o escândalo, a correção fraterna, o perdão, o poder da fé e a necessidade de estar desinteressadamente a serviço de Deus. São atitudes fundamentais para a vida do discípulo de Jesus.
Bíblia Sagrada – Edição Pastoral
Reflexões do exegeta Frei Ludovico Garmus
27º Domingo do Tempo Comum, ano C
Oração: “Deus eterno e todo-poderoso, que nos concedeis no vosso imenso amor de Pai mais do que merecemos e pedimos, derramais sobre nós a vossa misericórdia, perdoando que nos pesa na consciência e dando-nos mais do que ousamos pedir”.
- Primeira leitura: Hab 1,2-3; 2,2-4
O justo viverá por sua fé.
O profeta Habacuc viveu em meio a violentas convulsões políticas internacionais. O reino de Judá tornou-se independente da Assíria de 640 a 609 a.C., sob o rei Josias. Os babilônios tomaram Nínive, a capital do império assírio, em 612 a.C. O faraó do Egito passou por Judá para socorrer o resto do exército assírio; na tentativa de barrar o avanço dos egípcios, morreu Josias rei de Judá. Desde então, Judá passou a ser um “saco de pancadas” entre Babilônia e o Egito, que pretendiam dominar esta região estratégica. Judá teve que pagar pesados tributos ora ao Egito, ora à babilônia; mas eram os camponeses e os pobres que pagavam a conta (cf. Jr 22,13-19). É deste contexto de violência externa e interna que surge a oração impaciente de Habacuc dirigida ao Senhor. Como profeta, Habacuc é o porta-voz da mensagem de Deus ao povo, mas também é quem leva os lamentos e gritos de socorro do povo até Deus. Solidário com o povo sofredor, o profeta sente-se incapaz de trazer alívio para o seu povo. Reclama com Deus que vê a destruição, a prepotência e discórdia entre os governantes, mas não intervém para dar um basta à violência e socorrer o seu povo. O profeta pede uma intervenção imediata de Deus. Em resposta, Deus manda o profeta escrever uma visão para ser lida mais tarde. A visão aponta para um futuro de esperança. Deus não perdeu o controle dos eventos históricos. Ele é fiel às promessas que faz, mas não é a impaciência do profeta que vai determinar o prazo de seu cumprimento. Para sobreviver aos tempos de crise o profeta deve manter-se fiel aos mandamentos do Senhor, pois “quem não é correto, vai morrer, mas o justo viverá por sua fé”. O profeta pedia uma intervenção divina violenta para acabar com a violência. Mas Deus propõe a fé e a fiel observância dos mandamentos como resposta à violência.
Salmo responsorial: Sl 94
Não fecheis o coração; ouvi o vosso Deus!
- Segunda leitura: 2Tm 1,6-8.13-14
Não te envergonhes de dar testemunho de Nosso Senhor.
Paulo é “prisioneiro de nosso Senhor” Jesus Cristo em Roma. Enquanto está na prisão, aguardando a provável condenação à morte por causa do evangelho que pregava, exorta o bispo Timóteo, seu companheiro nas viagens missionárias. Paulo e Barnabé foram escolhidos pelo Espírito Santo e receberam a missão de evangelizar (c. At 13,1-3), pela imposição das mãos em Antioquia. Mais tarde, também Timóteo recebeu pela imposição das mãos o mandato de evangelizar (cf. At 16,1-5). Por isso, Paulo o exorta a reavivar o “dom de Deus recebido pela imposição das mãos”, isto é, o dom do Espírito Santo e, em consequência, os dons da fortaleza, do amor e da sobriedade. Timóteo não se deve envergonhar do testemunho de fortaleza e amor dado por Jesus na cruz, nem do testemunho de Paulo, “seu prisioneiro”. O poder de Deus o ajudará a sofrer com Paulo pela causa do Evangelho. Por fim, Timóteo é animado a valer-se do “compêndio” das palavras sadias/salutares, transmitidas por Paulo “em matéria de fé e de amor em Cristo Jesus”. Esse compêndio é o conjunto de palavras e ensinamentos recebidos de Paulo, capazes de instruir a Timóteo “para a salvação pela fé em Cristo Jesus” (2Tm 3,15). Estes ensinamentos acompanham Timóteo na tarefa da evangelização, orientada pelo Espírito Santo. – São palavras ainda válidas para quem recebe o ministério da Palavra: sacerdotes, diáconos, ministros da Palavra, catequistas e cristãos que vivem sua fé.
Aclamação ao Evangelho: 1Pd 1,25
A palavra do Senhor permanece para sempre;
e esta é a Palavra que vos foi anunciada.
- Evangelho: Lc 17,5-10
Se vós tivésseis fé!
Os apóstolos acompanhavam a Jesus e presenciavam seus milagres. Ouviram-no dizer às pessoas que eram curadas: “Filha, a tua fé te curou”. Quando Jesus acalmou a tempestade no lago censurou a falta de fé dos discípulos amedrontados: “Onde está a vossa fé” (Lc 8,25)? Isso torna compreensível o pedido dos discípulos a Jesus: “Aumenta a nossa fé”! O mesmo pedido dos apóstolos dá início ao Evangelho de hoje, que inclui dois ditos de Jesus, um sobre a fé e outro sobre a relação do patrão com seu escravo. Ao pedido dos discípulos Jesus responde com um dito: “Se vós tivésseis fé, mesmo pequena como um grão de mostarda, poderíeis dizer a esta amoreira: ‘Arranca-te daqui e planta-te no mar’, e ela vos obedeceria”. O grão de mostarda é a menor das sementes então conhecida; e a amoreira é conhecida pelas suas raízes profundas. O exemplo dado por Jesus parece absurdo, mas serve para indicar o poder da fé de quem confia em Deus. A fé, aqui, é a confiança ilimitada e humilde em Deus, que dá ao apóstolo o poder de observar os ensinamentos de Jesus e de ensiná-los aos outros.
Os destinatários do segundo dito são os apóstolos; o dito é válido também para os fariseus que “gostavam de dinheiro” (16,14) e podiam ter escravos, e para os cristãos ricos do tempo de Lucas. O exemplo dado por Jesus trata da relação do patrão com seu empregado. Não se trata, porém, de recomendar tal prática para nossos dias. A prática de Jesus é o lava-pés (cf. Jo 13,1-17; Lc 12,35-37). Na verdade, a parábola é um espelho da economia baseada no trabalho escravo do tempo de Jesus. O exemplo acima dado se explica no dito conclusivo de Jesus: “Assim também vós, quando tiverdes feito tudo o que vos mandaram, dizei: ‘Somos servos inúteis; fizemos o que devíamos fazer’”. Os fariseus pensavam que Deus era obrigado a recompensá-los porque observavam fielmente a Lei. Jesus nos ensina que devemos servir a Deus e ao próximo gratuitamente, por amor, sem buscar uma recompensa. O Amor de Deus é gratuito. Gratuito deve ser o nosso amor ao próximo e a Deus.
FREI LUDOVICO GARMUS, OFM, é professor de Exegese Bíblica do Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis (RJ). Fez mestrado em Sagrada Escritura, em Roma, e doutorado em Teologia Bíblica pelo Studium Biblicum Franciscanum de Jerusalém, do Pontifício Ateneu Antoniano. É diretor industrial da Editora Vozes e editor da Revista “Estudos Bíblicos”, editada pela Vozes. Entre seus trabalhos está a coordenação geral e tradução da Bíblia Sagrada da Vozes.
A fé pode ser pequena
Frei Clarêncio Neotti
O pedido dos Apóstolos está dentro de uma lógica. Jesus havia insistido no desprendimento de todos os bens (Lc 12,15-34), coisa absolutamente nova na teologia hebraica. Havia exigido o desprendimento da família e das coisas familiares (Lc 14,26), o que era difícil de entender para quem tinha uma cultura de clã. Havia mostrado uma imagem de Deus totalmente nova, na figura do velho pai que abraça, perdoa e acolhe o filho pródigo, sem pedir satisfações nem impor condições (Lc 15,20-24). Nos versículos que precedem o trecho de hoje (Lc 17,3-4), Jesus ensina que o perdão não tem limites e isso a homens cuja generosidade maior havia chegado até à lei do talião, isto é, ‘elas por elas’.
Os Apóstolos estão atônitos. Mas, em vez de recuar e abandonar o Mestre, pedem aumento de fé. As exigências de Jesus ultrapassam sua compreensão. Ou melhor, começam a entender que estão entrando num mundo novo, com outra lógica de raciocínio e outras regras de comportamento. Jesus os convida a não pensar a fé em termos de grandeza ou quantidade. A fé pode ser pequena como um grão de mostarda (v. 6), mas terá a força de fazer coisas extraordinárias, até mesmo contra as leis da natureza, como plantar uma árvore sobre as ondas do mar. A fé põe a criatura em comunhão com Deus e a faz participar de sua força criadora e salvadora.
Também a parábola (vv. 7-9) vem contada em função da fé. Observemos que a exigência do patrão da parábola era coisa normal. Mas não é ela que dita a lição. Mesmo porque Deus não se comporta como o patrão, que não deixa um momento de sossego ao empregado. Pouco antes, com as parábolas da misericórdia, Jesus nos mostrara o verdadeiro modo de agir do Pai. E ele mesmo foi muito explícito em dizer que viera para servir e não para ser servido (Lc 12,32).
FREI CLARÊNCIO NEOTTI, OFM, entrou na Ordem Franciscana no dia 23 de dezembro de 1954. Durante 20 anos, trabalhou na Editora Vozes, em Petrópolis. É membro fundador da União dos Editores Franciscanos e vigário paroquial no Santuário do Divino Espírito Santo (ES). Escritor e jornalista, é autor de vários livros e este comentário é do livro “Ministério da Palavra – Comentários aos Evangelhos dominicais e Festivos”, da Editora Santuário.
O delicado e complexo tema da fé
Frei Almir Guimarães
A fé é a única chave do universo. O sentido último da existência humana e as repostas às perguntas das quais depende toda a nossa felicidade não podem ser atingidos de nenhum outro modo.
Thomas Merton
♦ As leituras deste domingo, mormente a do Evangelho, nos convidam a fazer uma reflexão sobre o delicado e complexo tema da fé. Pensamos aqui, de modo particular, na fé que nos propõe Jesus com seus ensinamentos e com seu jeito de viver, sobretudo em seu modo de estar com o Pai. Ressuscitado, vive entre nós e pede nossa fé em seu mistério.
♦ Fé como uma luz que vem de Deus e que ilumina tudo. Luz… talvez seja esta a imagem mais apropriada para descrever a complexidade da fé. Luz que nos é revelada e que solicita nossa adesão. Não apenas um assentimento cerebral, mas aceitação de uma claridade para viver, conviver, colocarmo-nos diante do mundo, da terra, da água do sol em vista de nosso destino depois da vida, no que chamamos de além. Um certo olhar que lançamos sobre tudo porque fomos tocados pelo Mistério e pelo Cristo. Vivemos a dizer: “Creio, Senhor, mas aumenta a minha fé”.
♦ Toda reflexão sobre o tema da fé precisa começar com alusão à aventura de Abraão. Idoso, sem descendência, o patriarca e sua mulher Sara são convidados deixar sua terra e se dirigirem a uma terra desconhecida. Irão na certeza de que este misterioso Ser que os convoca merece confiança. Terra distante, promessas de descendência numerosa. Ir em frente, sair, caminhar, confiar. A fé coloca-os num estado de busca. Abraão e Sara se jogaram nos braços do Mistério. Confiança irrestrita mesmo no meio do lusco-fusco. Fé de Santa Clara deixando à noite a casa paterna para a aventura do Evangelho. Fé, confiança, certeza para além das evidências.
♦ “A fé não é uma emoção, não é um sentimento. Não é um impulso cego, inconsciente em direção a algo vagamente sobrenatural. Não é apenas uma necessidade elementar do espírito humano. Não é o sentimento de que Deus existe (…). Não é apenas força da alma. Não é algo que sobe das profundezas da alma e enche a pessoa de uma sensação indizível de que tudo está certo” ( Merton, Novas sementes de contemplação, p. 124).
♦ Crer é saber-se precedido e amado pelo Senhor na existência. Crer é descobrir aquele que é fonte de minha vida, aquele que visita minha liberdade e quer guiar-me por um caminho de amor. Consequência que de tudo isso é que ações e decisões terão sentido na medida em que responderem ao dom do amor de Deus. Sabemos em quem colocamos nossa confiança. Repetiremos sempre: “Creio, Senhor, mas aumenta a minha fé”.
♦ A fé não consiste em afirmar e repetir certo número de verdades que recebemos de uma vez por todas, uma caixa que guardamos para nada perder. Ela vai se fortificando ao longo da vida. Fé é vida que precisa ser alimentada, educada, revista. Uma coisa é a fé de nossa adolescência num determinado momento da vida. Nos acontecimentos que vão se sucedendo, no tecido da existência, vamos afirmando nossa convicção de um Pai que está por detrás de tudo e Jesus vivo a nos cercar, no desalento, mormente quando celebramos a ceia, fé na presença do Senhor no sacramento do matrimônio. Caminhar à sua luz mesmo quando precisamos de bengala para caminhar e de mãos que nos lavem o corpo e socorram a alma.
♦ A fé cristã se baseia na pessoa de Jesus, em seus ensinamentos, em sua paixão, morte e ressurreição. Ele nos tocou, fomos batizados, vivemos a vida dele, caminhamos na vida na sua companhia, celebrando sua presença. Nossa fé cristã tem cores próprias que haurimos de Cristo.
♦ A fé cristã significa apostar todas as fichas nesse Jesus de Nazaré que veio ao mundo da parte de Deus, conheceu os mistérios do coração humano, sofreu, morreu, ressuscitou e vive entre nós. A fé dá um sabor diferente a tudo que somos e fazemos. Convida-nos a nos reabastecer numa fonte fora de nós. Coloca à prova liberdade. “Creio Senhor, mas aumenta a minha fé”.
♦ Como todos os humanos temos questionamentos a serem feitos. Há perguntas que dançam em nossos lábios vindas do interior. Como chegar a uma verdadeira felicidade? Qual o bem a ser feito e o mal a ser evitado? O que decidir em situações complexas? Por que os justos sofrem? Por que o Senhor parece mudo? Qual o sentido de um voto de castidade perfeita? A fé nos convida a elaborar respostas a estas questões? Claro escuro. Certeza com sombras.
♦ A fé um dom. Não é apenas fruto de nossos empenhos e nossas “ginásticas espirituais”. É dada aos que pobremente se aproximam de Deus. “Eu te louvo, Pai, porque escondeste estas coisas dos sábios e poderosos e as revelaste aos humildes”. Cabe a cada um abrir-se às visitas de Deus nos sinais dos tempos, nos reclamos da consciência, na audição das Escrituras e da Palavra viva que é Jesus.
♦ “Precisamos conhecer a Jesus de maneira mais viva e concreta, compreender melhor seu projeto, captar bem sua intenção de fundo, sintonizar com ele, recuperar o “fogo” que ele acendeu em seus primeiros seguidores, contagiar-nos com sua paixão por Deus e sua compaixão pelos últimos” (Pagola, Lucas, p. 280).
♦ “A fé não é apenas uma sisuda determinação de se apegar a uma certa forma de palavras, aconteça o que acontecer – embora, devamos sem dúvida estar dispostos a defender o credo com a própria vida. Acima de tudo, porém, a fé é abertura dos olhos interiores, dos olhos do coração para que se deixem encher pela presença da luz divina (Merton, Novas sementes de contemplação, Vozes, p. 127).
♦ Muitos de nós recebemos a religião e suas práticas em nossas famílias, por “contágio”, por “osmose”: imagens, missa, sacramentos, unção, missa de sétimo dia, crisma, ladainha de Nossa Senhora e assim por diante. Não questionamos. Vivíamos numa atmosfera religiosa. Fomos católicos sem pensar o que isso bem significa além de mera observância de ritos para viver e chegar à felicidade eterna. Não houve uma adesão pessoal ao Senhor e à fé cristã. A roupa que vestimos não serve mais. Será que herdamos a fé? Podemos herdar uma certa prática. A fé é fruto da ação de Deus e uma resposta livre da pessoa e da comunidade. Importante lembrar que a fé cristã não é “minha fé”, mas nossa fé. Há urgência de uma educação ou reeducação da fé. Pode ser que algumas pessoas que dizem terem “rejeitado” a fé, tenham deixado de acreditar numa fé sem reflexão e cerceadora de nossa liberdade e inteligência. Talvez não tenham rejeitado a Deus.
♦ Para que possamos chegar a uma fé transparente, vigorosa e substancial é preciso não valorizar devoções enganadoras. Será preciso limpar a casa de tantas estampas e flores de plástico e retornar à nudez do Éden, da cruz e da ressurreição, sem enfeites somente com a crua pergunta da fé. Urgente livrar-nos das crenças tagarelas e fantasiosas que os impedem de escutar o silêncio sem fim da verdadeira fé. Para tanto precisamos reaprender nossa solidão sonora de que falava São João da Cruz. Não se fugirá dela, mas haver-se-á de buscá-la como lugar do colóquio essencial, na intimidade consigo mesmo e com Deus, paradoxalmente “ausente”. Nada de temer o silêncio como se fosse prenúncio de morte. Urgente aprender a estar só, para enraizar nossos relacionamentos, nossos afetos, nossas obras não na emotividade superficial, no protagonismo ansioso ou no afã de reconhecimento, mas na mais profunda e mais discreta liberdade do verdadeiro amor (Inspirado em Simon Pedro Arnold, OSB)
♦ A fé é um descentrar-se, uma conversão difícil, requer uma morte a si mesmo, uma páscoa do eu humano. A fé pede que deixemos nos desarrumar interiormente segundo os planos do Altíssimo e as propostas de Jesus. Na realidade não é o homem que busca a Deus, mas Deus que busca o homem. “Adão, onde estás?”
♦ “A fé é como uma criança que não dá descanso, não se acostuma a hábito algum, sobretudo da indolência e da tibieza. Repugna-lhe comprometimentos. Ela é uma criança rebelde, ao mesmo tempo vulnerável e temerária, reflexiva e aventureira. Criança que nasceu em plena noite, sempre em estado de busca, desejando a luz” (Sylvie Germain).
Oração
Confiarei
Confiarei…
ainda que me perca em teus caminhos,
ainda que não encontre meu destino,
confiarei…
Confiarei…
ainda que não entenda tuas palavras,
ainda que teu olhar me queime,
confiarei…
Eu te seguirei, duvidando e andando ao mesmo tempo
e te amarei
sem medo e tremendo ao mesmo tempo.
FREI ALMIR GUIMARÃES, OFM, ingressou na Ordem Franciscana em 1958. Estudou catequese e pastoral no Institut Catholique de Paris, a partir de 1966, período em que fez licenciatura em Teologia. Em 1974, voltou a Paris para se doutorar em Teologia. Tem diversas obras sobre espiritualidade, sobretudo na área da Pastoral familiar. É o editor da Revista “Grande Sinal”.
A audácia de crer
José Antonio Pagola
Há alguns anos, o filósofo e sociólogo de origem belga C. Lévi-Strauss fazia uma declaração que reflete bem a atitude agnóstica de não poucos contemporâneos: “Não me sinto preocupado com o problema de Deus; para mim é absolutamente tolerável viver consciente de que nunca poderei explicar-me a totalidade do universo”. Para este tipo de agnósticos, o universo está aí como uma realidade “inexplicável”, cuja origem e fundamento resultam insondáveis, mas diante desta realidade só sentem despreocupação e falta de interesse.
Nós crentes nos distinguimos destes agnósticos não porque tentemos dizer “algo” sobre Deus, enquanto eles negam o que nós confessamos. Não está aí o fundo da questão. A pergunta sobre o mistério do universo parece inevitável para todos. A característica própria dos crentes, ao contrário dos agnósticos, é que nós nos atrevemos a abandonar-nos confiantemente a esse Mistério que subjaz à “totalidade do universo”.
Como dizia Karl Rahner, este “abandonar-nos” próprio da fé é “a máxima ousadia do homem”. Uma partícula ínfima do cosmos se atreve a relacionar-se com a “totalidade incompreensível e fundante do universo” e, além disso, o faz confiando absolutamente em seu poder e em seu amor. Nós, cristãos, precisamos conscientizar-nos mais da audácia inaudita implicada no ato de atrever-nos a confiar no mistério de Deus.
A mensagem mais nuclear e original de Jesus consistiu precisamente em convidar o ser humano a confiar incondicionalmente no Mistério insondável que está na origem de tudo. É isto que ressoa em seu anúncio: “Não tenhais medo. Confiai em Deus. Chamai-o Abbá, Pai querido. Ele cuida de vós. Até os cabelos de vossa cabeça estão contados. Tende fé em Deus”.
Esta fé radical em Deus está na base de toda oração. Orar não é uma ocupação a mais entre muitas outras possíveis. É a ação mais séria e fundamental da pessoa, pois na oração nos aceitamos a nós mesmos em nosso mistério mais profundo como criaturas que têm sua origem e fundamento em Deus.
O ser humano está se afastando hoje de Deus não porque esteja convencido de sua não existência, mas porque não se atreve a abandonar-se confiantemente a Ele. O primeiro passo para a fé consistiria, para muitos, em prostrar-se diante do Mistério insondável do universo e atrever-se a dizer com confiança: “Pai”. Nestes tempos em que esta confiança parece debilitar-se, nossa oração deveria ser a que os discípulos dirigem a Jesus: “Aumenta-nos a fé”.
JOSÉ ANTONIO PAGOLA cursou Teologia e Ciências Bíblicas na Pontifícia Universidade Gregoriana, no Pontifício Instituto Bíblico de Roma e na Escola Bíblica e Arqueológica Francesa de Jerusalém. É autor de diversas obras de teologia, pastoral e cristologia. Atualmente é diretor do Instituto de Teologia e Pastoral de São Sebastião. Este comentário é do livro “O Caminho Aberto por Jesus”, da Editora Vozes.
Somos simples servos
Pe. Johan Konings
Quem não gosta de um elogio? Não estão nossas igrejas tradicionais cheias de inscrições elogiando os generosos doadores dos bancos, dos vitrais ou da imagem de Santa Filomena?
Ora, o Evangelho nos propõe uma atitude que parece inaceitável a uma pessoa esclarecida, hoje em dia: o empregado não deve reclamar quando, depois de todo o serviço no campo, em vez de ganhar elogio, ele ainda deve servir a janta. Ele é um empregado sem importância; tem de fazer seu serviço, sem discutir.
Jesus nos quer ensinar a estar a serviço do Reino sem darmos importância a nós mesmos. Ele mesmo dará o exemplo disso, apresentando-se, na Última Ceia, como aquele que serve (Lc 22,27).
Isto não rima com a mentalidade calculista e materialista da nossa sociedade, que procura compensação para tudo o que se faz – aliás, compensação superior ao valor daquilo que se faz…
Se levarmos a sério a parábola de Jesus, como então ensinamos aos empregados e operários reivindicarem sempre mais (porque, se não reivindicam, são explorados)? Certamente, Jesus não quer condenar os movimentos de reivindicação. A questão é outra. Ele quer apontar a dedicação integral no servir. Interesse próprio, lucro, reconhecimento, fama poder… não são do nível do Reino, mas apenas da sobrevivência na sociedade que está aí. A parábola não serve para recusar as reivindicações de justiça social, mas para declarar impróprios os interesses pessoais no serviço do Reino.
Convém fazer um sério exame de consciência sobre a retidão e a gratuidade de nossas intenções conscientes e de nossas motivações inconscientes. Na Igreja, tradicional ou progressista, quanta ambição de poder, quanto querer aparecer, quantas compensaçõezinhas!
E mesmo com relação às estruturas da sociedade, a parábola de Jesus hoje nos ensina a não focalizarmos única e exclusivamente as reivindicações. Estas são importantes, no seu devido tempo e lugar, para garantir a justiça e conseguir as transformações necessárias. Mais fundamental, porém, na perspectiva de Deus, é criar o espírito de serviço e disponibilidade, que nunca poderá ser pago. Quem vive no espírito de comunhão nunca achará que está fazendo demais para os outros.
“Somos simples servos”. Antigamente se traduzia: “Somos servos inúteis”. Tal tradução era psicológica e sociologicamente nefasta, pois fomentava a acomodação, além de contraditória, pois servo inútil não serve… Servindo com simplicidade, não em função de compensações egoístas, mas em função da fidelidade e da objetividade, somos muito úteis para o projeto de Deus.
PE. JOHAN KONINGS nasceu na Bélgica em 1941, onde se tornou Doutor em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina, ligado ao Colégio para a América Latina (Fidei Donum). Veio ao Brasil, como sacerdote diocesano, em 1972. Em 1985 entrou na Companhia de Jesus (Jesuítas) e, desde 1986, atuou como professor de exegese bíblica na FAJE, Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte. Faleceu no dia 21 de maio de 2022. Este comentário é do livro “Liturgia Dominical, Editora Vozes.
Caminhos do Evangelho