Dom Walmor Oliveira de Azevedo
É preciso, ecoar de onde nascem os sentimentos, palavras que possam devolver a esperança, restaurar os relacionamentos, produzir entendimentos, especialmente quando há grande urgência em refazer escolhas nos âmbitos pessoal, familiar, político, religioso e econômico também. Refazer escolhas norteadas pela voz do coração emoldurada pela claridade da razão, o que nos impede de perder o rumo, o sentido do viver – para não cair no ardil existencial de desistir do dom da vida. Ou, ainda, viver o dom da vida desconsiderando toda grandeza que o viver carrega em si. Deixar falar a voz do coração, assim nos lembra a poesia da canção, indica ser oportuno e urgente priorizar “a voz do bem” ante os cenários e a avalanche de “falas” facilitados, sobretudo, pela velocidade das redes sociais.
O bem traz intrinsecamente no seu âmago a verdade que liberta e corrige, denuncia e anuncia, com propriedades que passam longe dos destemperos patológicos multiplicados por interesses de todo o tipo, fazendo do falar uma ancoragem perigosa e perversa que jamais conseguirá atingir a mais importante propriedade da palavra, a geração de entendimentos, próprio da demanda de tecer relacionamentos que promovam a paz.
A avalanche de crises, em curso no conjunto da grande mudança civilizatória envolvendo a humanidade neste momento, aponta grandes e complexas transformações impedindo a voz do bem. É assustadora a dimensão de hostilidade dos discursos, não só político, mas também o religioso, promotor de lutas fratricidas e demolidoras de reputações, com grosserias e manipulações lesivas, produzindo na vivência religiosa tudo o que se pode imaginar, menos a promoção da voz do bem. De modo semelhante se cultiva uma odiosidade na política e na religião, desvirtuando-a dos pilares de suma importância na construção da história e, particularmente, neste momento de transição civilizatória, com reconstruções a se operar, recuperação de perdas em tempo e em vidas, consideradas as suas etapas todas.
Não deixar falar a voz do coração, componente intrínseco do viver humano, está empurrando a sociedade ao precipício do ódio. Deixar falar a voz do coração é um chamado que perdeu o rumo e precisa ser recuperado com o exercício primeiro de deixar falar a voz do bem. Deixar falar a voz do bem é compromisso e garantia da possibilidade de se produzir uma profecia indispensável na construção de uma sociedade justa e solidária. Diminuta, tem se configurado a possibilidade de avanços civilizatórios, por causa do ódio que se propaga e dissemina a desestabilização das instituições, para tomar seu lugar com ilusória proposta. Caminho sem factibilidade enquanto resposta às demandas e urgências para qualificadas correções de rumos, claridade nas escolhas e balizamentos humanísticos que impulsionem, urgentemente, a humanidade à condição de, ao menos, administrar melhor o conjunto de crises que a destroem. E, assim, desenhar por este humilde passo a passo um novo tempo, usufruindo de condições propícias advindas das conquistas tecnológicas e avanços científicos. Compreende-se, pois, as multiplicadas inadequações no mundo da política e no interno da vivência religiosa, agravadas por misturas, ora inconsequentes e inconscientes, ora perversas e calculadas.
O momento atual, caracterizado por crises sobre os ombros arqueados da humanidade, precisa ser vivido e entendido com uma lucidez que permita aprendizagem e possa exercitar a resiliência fazendo nascer modos novos nos modelos de sociedade, pautada pelo falar a voz do bem, longe de ataques figadais e demolidores, nos trilhos da fraternidade universal e da solidariedade. Uma outra lógica de funcionamento, com força de superação de divisões odiosas, dando lugar à nobreza da igualdade fraterna, superando desigualdades sociais e raciais, pondo fim aos cenários vergonhosos e inaceitáveis de discriminações, violências e homicídios.
Deixar falar a voz do bem, sem dissimulação ou conivências, dizendo a verdade, é caminho fecundo na produção de entendimentos lúcidos que possam fazer ver o despropósito produzido por ódios políticos e religiosos. A voz do bem é remédio terapêutico para recuperar a voz do coração, desmontando manipulações ilegítimas para articular em riqueza as diferenças, iluminando escolhas inadiáveis para produzir entendimentos indispensáveis de processos e mecanismos que libertem a sociedade dos artífices do mal, em razão de conveniências, de submissão ou de lucros a todo preço.
O Papa Francisco, na sua Carta Encíclica Fratelli Tutti, ilustra com a figura de São Francisco a articulação amorosa e qualificada entre o falar a voz do coração e o falar a voz do bem. Na vida de Francisco de Assis, narra o Papa, está o episódio da sua visita ao Sultão do Egito, Malik-al-Kamil, empreendendo um grande esforço, superando dificuldades de distância, cultura, língua e condições financeiras, movido por um coração sem fronteiras, capaz de superar obstáculos, numa viagem que mostra a grandeza do amor, uma voz do coração que fala a voz do bem. Foi ao Sultão, movido pelos ensinamentos que compartilhava com seus discípulos: sem fazer litígios, contendas, mas submisso a toda criatura humana por amor a Deus. É dele a canção que cantada amalgama a voz do coração e a voz do bem. Uma súplica: Senhor, fazei de mim um instrumento de vossa paz; onde houver ódio que eu leve o amor, onde houver discórdia que eu leve a união, onde houver dúvidas que eu leve a fé; onde houver erro que eu leve a verdade; onde houver ofensa que eu leve o perdão; onde houver desespero que eu leve a esperança, onde houver tristeza, que eu leve alegria, onde houver trevas, que eu leve a luz. Deixar falar a voz do bem.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo é Arcebispo de Belo Horizonte (MG) e presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)