4º Domingo do Tempo Comum
- Quarto Domingo do Tempo Comum
- Leituras bíblicas para este domingo
- Reflexão do exegeta Frei Ludovico Garmus
- Egoísmo: obstáculo à fé
- O tema do amor
- Um dito muito atual
- A Boa Nova para todos e o profeta rejeitado
- Reflexão em vídeo de Frei Gustavo Medella
Quarto Domingo do Tempo Comum
A dificuldade de enxergar o “Jesus da gente”
Frei Gustavo Medella
Para quem pensa a partir do centro, seja do poder, da política e da economia, torna-se inimaginável conceber que a salvação venha da periferia. É difícil admitir que a solução venha de uma pequena vila em vez de surgir no coração da metrópole, que a resposta não venha de Dubai, mas do Paraguai. Por isso, o Messias proveniente de Nazaré era um escândalo para quem tinha os olhos voltados a Jerusalém. Mais de 2000 anos se passaram desde que Deus pregou esta peça na humanidade. No entanto, ainda que o Cristianismo apresente considerável número de adeptos no mundo, a mentalidade preponderante, inclusive dentre os que se dizem seguidores do Mestre, ainda é aquela regida pelos sonhos de grandeza que a lógica do centro inspira.
No Carnaval de 2019, a Estação Primeira de Mangueira trouxe para a Avenida o enredo que descrevia um tal “Jesus da Gente”, Messias identificado com as camadas mais invisíveis da sociedade, gente paupérrima, anônima, lutadora, assolada por sofrimentos de toda sorte. Atualização sintonizada com a lógica proposta pelo Evangelho, mas ainda difícil de ser aceita e digerida, tanto que a Escola de Samba carioca chegou a ser acusada, inclusive, de desrespeitar a religião. Difícil mudar a cabeça de quem se nega a dar um passo além do solo onde pisa.
O discipulado, no entanto, é um convite constante à desinstalação geográfica e existencial. É um desafio permanente ao cristão reconhecer que o Mestre sempre será capaz de surpreendê-lo, revelando-se nas situações mais inusitadas. Vencer o estranhamento inicial para abraçar o Cristo onde quer que Ele se apresente é um gesto que liberta e dá um novo sentido para vida. Francisco, por exemplo, deixou-se alcançar pelo Cristo que se apresentou a ele na figura de um leproso. E a nós, onde e em quem Jesus estará se apresentando?
FREI GUSTAVO MEDELLA, OFM, é o atual Vigário Provincial e Secretário para a Evangelização da Província Franciscana da Imaculada Conceição. Fez a profissão solene na Ordem dos Frades Menores em 2010 e foi ordenado presbítero em 2 de julho de 2011.
Imagem ilustrativa de Frei Fábio Melo Vasconcelos
Leituras bíblicas para este domingo
Primeira Leitura (Jr 1,4-5.17-19)
Nos dias de Josias, rei de Judá, 4foi-me dirigida a palavra do Senhor, dizendo: 5“Antes de formar-te no ventre materno, eu te conheci; antes de saíres do seio de tua mãe, eu te consagrei e te fiz profeta das nações. 17Vamos, põe a roupa e o cinto, levanta-te e comunica-lhes tudo que eu te mandar dizer: não tenhas medo, senão, eu te farei tremer na presença deles. 18Com efeito, eu te transformarei hoje numa cidade fortificada, numa coluna de ferro, num muro de bronze contra todo o mundo, frente aos reis de Judá e seus príncipes, aos sacerdotes e ao povo da terra; 19eles farão guerra contra ti, mas não prevalecerão, porque eu estou contigo para defender-te”, diz o Senhor.
Responsório (Sl 70)
— Minha boca anunciará todos os dias vossas graças incontáveis, ó Senhor.
— Minha boca anunciará todos os dias vossas graças incontáveis, ó Senhor.
— Eu procuro meu refúgio em vós, Senhor:/ que eu não seja envergonhado para sempre!/ Porque sois justo, defendei-me e libertai-me!/ Escutai a minha voz, vinde salvar-me!
— Sede uma rocha protetora para mim,/ um abrigo bem seguro que me salve!/ Porque sois a minha força e meu amparo,/ o meu refúgio, proteção e segurança!/ Libertai-me, ó meu Deus, das mãos do ímpio.
— Porque sois, ó Senhor Deus, minha esperança,/ em vós confio desde a minha juventude!/ Sois meu apoio desde antes que eu nascesse,/ desde o seio maternal, o meu amparo.
— Minha boca anunciará todos os dias/ vossa justiça e vossas graças incontáveis./ Vós me ensinastes desde a minha juventude,/ e até hoje canto as vossas maravilhas.
Segunda Leitura (1Cor 12,31-13,13)
Irmãos: 31Aspirai aos dons mais elevados. Eu vou ainda mostrar-vos um caminho incomparavelmente superior. 13,1Se eu falasse todas as línguas, as dos homens e as dos anjos, mas não tivesse caridade, eu seria como um bronze que soa ou um címbalo que retine.
2Se eu tivesse o dom da profecia, se conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, se tivesse toda a fé, a ponto de transportar montanhas, mas se não tivesse caridade, eu não seria nada.
3Se eu gastasse todos os meus bens para sustento dos pobres, se entregasse o meu corpo às chamas, mas não tivesse caridade, isso de nada me serviria.
4A caridade é paciente, é benigna; não é invejosa, não é vaidosa, não se ensoberbece; 5não faz nada de inconveniente, não é interesseira, não se encoleriza, não guarda rancor; 6não se alegra com a iniquidade, mas se regozija com a verdade. 7Suporta tudo, crê tudo, espera tudo, desculpa tudo.
8A caridade não acabará nunca. As profecias desaparecerão, as línguas cessarão, a ciência desaparecerá. 9Com efeito, o nosso conhecimento é limitado e a nossa profecia é imperfeita. 10Mas, quando vier o que é perfeito, desaparecerá o que é imperfeito.
11Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Quando me tornei adulto, rejeitei o que era próprio de criança.
12Agora nós vemos num espelho, confusamente, mas, então, veremos face a face. Agora, conheço apenas de modo imperfeito, mas, então, conhecerei como sou conhecido.
13Atualmente permanecem estas três coisas: fé, esperança, caridade. Mas a maior delas é a caridade.
«Este não é o filho de José?»
Evangelho: Lc 4, 21-30
21 Então Jesus começou a dizer-lhes: «Hoje se cumpriu essa passagem da Escritura, que vocês acabam de ouvir.» * 22 Todos aprovavam Jesus, admirados com as palavras cheias de encanto que saíam da sua boca. E diziam: «Este não é o filho de José?» 23 Mas Jesus disse: «Sem dúvida vocês vão repetir para mim o provérbio: Médico, cura-te a ti mesmo. Faze também aqui, em tua terra, tudo o que ouvimos dizer que fizeste em Cafarnaum.» 24 E acrescentou: «Eu garanto a vocês: nenhum profeta é bem recebido em sua pátria. 25 De fato, eu lhes digo que havia muitas viúvas em Israel, no tempo do profeta Elias, quando não vinha chuva do céu durante três anos e seis meses, e houve grande fome em toda a região. 26 No entanto, a nenhuma delas foi enviado Elias, e sim a uma viúva estrangeira, que vivia em Sarepta, na Sidônia. 27 Havia também muitos leprosos em Israel no tempo do profeta Eliseu. Apesar disso, nenhum deles foi curado, a não ser o estrangeiro Naamã, que era sírio.» 28 Quando ouviram essas palavras de Jesus, todos na sinagoga ficaram furiosos. 29 Levantaram-se, e expulsaram Jesus da cidade. E o levaram até o alto do monte, sobre o qual a cidade estava construída, com intenção de lançá-lo no precipício. 30 Mas Jesus, passando pelo meio deles, continuou o seu caminho.
* 14-21: Colocada no início da vida pública de Jesus, esta passagem constitui, conforme Lucas, o programa de toda a atividade de Jesus. Is 61,1-2 anunciara que o Messias iria realizar a missão libertadora dos pobres e oprimidos. Jesus aplica a passagem a si mesmo, assumindo-a no hoje concreto em que se encontra. No ano da graça eram perdoadas todas as dívidas e se redistribuíam fraternalmente todas as terras e propriedades: Jesus encaminha a humanidade para uma situação de reconciliação e partilha, que tornam possíveis a igualdade, a fraternidade e a comunhão.
* 22-30: A dúvida e a rejeição de Jesus por parte de seus compatriotas fazem prever a hostilidade e a rejeição de toda a atividade de Jesus por parte de todo o seu povo. No entanto, Jesus prossegue seu caminho, para construir a nova história que engloba toda a humanidade.
Bíblia Sagrada – Edição Pastoral
Reflexão do exegeta Frei Ludovico Garmus
4º Domingo do Tempo Comum
Oração: “Concedei-nos, Senhor Deus, adorar-vos de todo o coração, e amar todas as pessoas com verdadeira caridade”.
- Primeira leitura: Jr 1,4-5.17-19
Eu te consagrei e te fiz profeta das nações.
A primeira leitura narra a vocação do profeta Jeremias (cf. Jr 1,4-19). É um texto autobiográfico, no qual o próprio Jeremias conta em 1ª pessoa sua vocação para ser profeta. Ser profeta não é decisão pessoal, mas um chamado especial de Deus. Era plano de Deus chamar Jeremias para ser profeta: “Antes de formar-te no ventre materno, eu te conheci; antes que nascesses eu te consagrei”. A vocação não é imposição nem tira a liberdade da pessoa, mas, no caso de Jeremias, é um convite de Deus para uma missão especial: ser “profeta das nações”. A liberdade de acolher ou rejeitar o convite fica evidente pela forma de diálogo da narrativa de vocação: É o Eu divino que se dirige ao tu humano. Jeremias, num primeiro momento, quer tirar “o corpo fora”, porque imagina a oposição que deverá enfrentar por parte do palácio (reis e príncipes), da classe sacerdotal e do “povo da terra”, que detinham o poder político, religioso e econômico. As palavras que Jeremias deverá falar não serão opinião sua: “comunica-lhes tudo o que eu te mandar dizer”. Serão palavras de denúncia, apelos de conversão e ameaças de castigo, que Deus colocará em sua boca (v. 9). Deus, porém, convida o profeta a não se intimidar. Vai transformá-lo numa cidade fortificada. Promete estar sempre ao lado de seu profeta para defendê-lo.
Salmo responsorial: Sl 70
Minha boca anunciará todos os dias,
vossas graças incontáveis, ó Senhor.
- Segunda leitura: 1Cor 12,31–13,13
Permanecem a fé, a esperança e a caridade.
Mas a maior delas é a caridade.
Nos últimos domingos ouvimos Paulo falando dos diversos dons ou carismas, manifestados pela comunidade de Corinto. Explicava que os dons procedem do mesmo Espírito e, mais do que um diadema para embelezar uma pessoa, são um avental para melhor “lavar os pés”, servindo a comunidade. Assim, judeus e gregos, escravos e livres, unidos pelo mesmo pelo Espírito Santo, formam um só corpo de Cristo. Na leitura de hoje Paulo esclarece que existe uma hierarquia entre os diversos dons. Certamente, havia concorrência entre os cristãos a respeito dos dons. Havia quem considerasse seu carisma o mais importante. Paulo explica que nenhum carisma/dom vale alguma coisa sem a caridade, o amor. Todos têm seu valor se acompanhados pelo amor. No presente, os dons mais importantes são a fé, a esperança e a caridade. No futuro existirá apenas a Caridade/Amor, que nos une todos a Jesus Cristo e a Deus.
Aclamação ao Evangelho: Lc 4,18
Foi o Senhor, quem me mandou boas notícias anunciar;
ao pobre, a quem está no cativeiro, libertação eu vou proclamar!
- Evangelho: Lc 4,21-30
Jesus, assim como Elias e Eliseu, não é enviado só aos judeus.
Ao tomar o menino Jesus em seus braços Simeão louvou a Deus e falou em tom profético para Maria: “Este menino vai ser causa tanto de queda como de reerguimento para muitos em Israel. Ele será um sinal de contradição” (Lc 2,35). Diante da pessoa de Jesus e de sua mensagem não se pode permanecer indiferente. Ou se é contra, ou a favor. Ficou claro isso na visita de Jesus a Nazaré (3º Domingo) e hoje se repete na fala de Jesus aos conterrâneos. Acolhido por uns, rejeitado por outros, Jesus prossegue corajosamente seu “caminho” (4,30), que o levará à morte de cruz. No início de sua atividade na Galileia Jesus é elogiado por todos pela qualidade de seu ensino (4,15): “Eles ficavam admirados de sua doutrina porque sua palavra tinha autoridade” (4,15.32). Mas aos poucos – como nos mostra Lucas – o ensino cheio de sabedoria, as críticas dirigidas aos sacerdotes, escribas e fariseus, os gestos de misericórdia para com pobres e pecadores, provocam oposição ferrenha contra Jesus por parte dos adversários. Assim acontecia também nos anos 70, quando Lucas escreve seu Evangelho e os Atos dos Apóstolos.
Percebendo que era rejeitado por seus conterrâneos, Jesus diz: “Nenhum profeta é bem recebido em sua pátria”. E como justificativa cita os exemplos dos profetas Elias e seu discípulo Eliseu. Ambos, rejeitados e perseguidos em sua terra, são enviados a estrangeiros. Por ocasião de uma prolongada seca e carestia Elias foi enviado a Sarepta, na Sidônia, para socorrer uma viúva e seu filho órfão. Apesar de haver muitos leprosos em Israel, Eliseu cura a Naamã, um general da Síria, país inimigo de Israel. Ao citar estes dois exemplos, Lucas, por um lado lembra o programa de Jesus anunciado na sinagoga de Nazaré (2º Domingo); por outro, sinaliza o anúncio da boa-nova aos pagãos, o que acontecia quando Lucas escreve. Diante do discurso de Jesus, “todos na sinagoga ficaram furiosos”. Jesus foi expulso da cidade e ameaçado de morte, porém, “continuou o seu caminho”.
Ao celebrarmos a Eucaristia vamos pedir que Jesus nos fortifique para prosseguirmos em seu “caminho” de serviço e de amor.
FREI LUDOVICO GARMUS, OFM, é professor de Exegese Bíblica do Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis (RJ). Fez mestrado em Sagrada Escritura, em Roma, e doutorado em Teologia Bíblica pelo Studium Biblicum Franciscanum de Jerusalém, do Pontifício Ateneu Antoniano. É diretor industrial da Editora Vozes e editor da Revista “Estudos Bíblicos”, editada pela Vozes. Entre seus trabalhos está a coordenação geral e tradução da Bíblia Sagrada da Vozes.
Egoísmo: obstáculo à fé
Frei Clarêncio Neotti
Lucas apresenta mais outra razão para o não de tantos que ouvem, com simpatia, a palavra de Jesus e até falam bem dela, mas não conseguem dar o passo da fé. O egoísmo faz a pessoa preocupar-se, exclusivamente, com as coisas de seu interesse, que quer um Deus a serviço de suas necessidades e não admite que todos tenham os mesmos direitos à graça divina. Os nazarenos reclamaram que Jesus havia curado doentes e feito milagres fora de sua parentela e vizinhança.
Se tinha o dom da cura, que curasse os doentes de sua terra! E se enfureceram, quando Jesus argumentou que também os profetas Elias (lRs 17,7-24) e Eliseu (2Rs 5) fizeram milagres não aos israelitas, mas aos pagãos. Em outras palavras: Jesus era para todos e quem quisesse ‘segui-Lo’ deveria derrubar as muralhas dos guetos raciais, religiosos e de privilegiados.
Esse universalismo, essa abertura a todos contrariam o egoísmo humano. O que deveria trazer alegria e participação torna-se obstáculo à fé. Muitas vezes, em seu Evangelho, Lucas procura mostrar essa abertura universal, a todos e em todos os tempos, da salvação trazida por Jesus. Em outras palavras: nenhum povo, nenhum grupo, nenhuma religião se aproprie de Jesus de Nazaré!
Os nazarenos não conseguem matar Jesus. Ele passa pelo meio deles e continua sua estrada. Não é nem o demônio (Lc 4,9-11) nem os homens (v. 30) que marcam a hora da morte de Jesus, mas o Pai do Céu. E Jesus assumirá sua hora com o mesmo imenso amor com que assumiu a encarnação.
FREI CLARÊNCIO NEOTTI, OFM, entrou na Ordem Franciscana no dia 23 de dezembro de 1954. Durante 20 anos, trabalhou na Editora Vozes, em Petrópolis. É membro fundador da União dos Editores Franciscanos e vigário paroquial no Santuário do Divino Espírito Santo (ES). Escritor e jornalista, é autor de vários livros e este comentário é do livro “Ministério da Palavra – Comentários aos Evangelhos dominicais e Festivos”, da Editora Santuário.
O tema do amor
Frei Almir Guimarães
A caridade é paciente, é benigna; não é invejosa, não é vaidosa, não se ensoberbece; não faz nada de inconveniente, não é interesseira, não se encoleriza, não guarda rancor, não se alegra com a iniquidade, mas se regozija com a verdade. Suporta tudo, tudo crê, espera tudo, desculpa tudo.(1Co 13, 4-7).
♦ O tema do amor é recorrente. Precisamos bater sempre na mesma tecla. Vamos, pois, nos deter no tema da caridade, do amor fraterno, a partir do capítulo 13 de Paulo na carta aos Coríntios, leitura proposta na liturgia de hoje. Não sei quantas vezes já ouvimos esse hino do amor e quantas vezes ele nos convidou a sermos pessoas diferentes, livres, profundamente de bem com a vida e respirando amor. “Há pessoas em cujos olhos se vê que são plenas de amor, que absorvem em si o amor divino. Essas pessoas não dirigem seu amor a determinados indivíduos, elas irradiam o amor em seu ser total” (Anselm Grün).
♦ Deus é amor. A Trindade é comunhão de dom, o Pai, O Verbo e o Sopro. Os Três se amam reciprocamente e vivem na troca do dom. O amor entre Três é difusivo e, assim, criador. O mundo, o cosmo, as galáxias, o ser humano e tudo o que existe é resultado desse amor difusivo. Ele, a fornalha de amor, o Deus que é incêndio de amor nos envolve e nos leva à dinâmica do dom. Jesus, Deus feito homem, é amor. Ele mesmo conjugará o verbo amar em todos os tempos e modos da gramática. E sempre ressoa aos nosso ouvidos a palavra do Senhor ao dizer que não existe maior amor do que dar a vida pelos seus e até mesmo inimigo.
♦ O amor não é fugaz sentimento mais ou menos adocicado que eventualmente pode nos habitar. É decisão. A pessoa resolve ter como linha mestra de seu projeto de vida o amor. Insistimos: amar é tomar a decisão de sair de si e buscar o outro, os outros na linha de batalhar por seu enobrecimento, proporcionar respeito por sua dignidade e promovê-lo em todos os sentidos.
♦ Muitas vezes a Escritura, tanto do Antigo quanto do Novo Testamento, pede nossa atenção especial para com a fragilidade de um certo grupo de pessoas: órfãos, viúvas e estrangeiros. Essas pessoas estão a nos dizer que precisam de atenções que não podem ser adiadas. O amor mais urgente se dirige aos mais frágeis.
♦ A família é um espaço de manifestação de profundo bem querer. Há antes de tudo o amor conjugal: preventivo, atencioso, capaz de auscultar as necessidades mais profundas do cônjuge, terno, delicado até nas manifestações do encontro amoroso dos corpos, amor sempre preocupado em perdoar. Amor parental e maternal que é marcado por atenções constantes, feito de coisas pequenas, presencial e prático. Amor que leva os pais a impedirem que seus filhos sejam fantoches de uma sociedade sem alma, mercantilista e hedonista. Amor familiar é camaleão que vai mudando de cores ao longo do tempo da vida tanto no aspecto conjugal quanto parental.
♦ O amor manifesta-se através de um profundo respeito pela dignidade do semelhante. O outro é imagem de Deus. Essa postura de respeito atencioso não depende da cor da pele, do nível de instrução, das posses que alguém venha a ter. Por isso ninguém pode ser deixado de lado em sua miséria material ou moral. O outro nunca será transformado em coisa, nem pode ser usado como objeto descartável. É sinal de amor alertar a uns e outros que cuidem de não enveredar pelas sendas do indiferentismo e do descuido pela busca do rosto de Deus, sentido da vida. Tais exortações são sinais de amor.
♦ Amor fraterno tem tudo a ver com serviço carinhoso. Francisco de Assis sempre foi considerado como alguém que soube ser irmão, amar respeitosamente o irmão. Um dos termos chaves da espiritualidade de Francisco é servir. A palavra servo, com efeito, aparece mais de cinquenta vezes em seus escritos e servo mais de vinte vezes. “Nenhum dos irmãos exerça uma posição de cargo ou de mando e muito menos entre os próprios irmãos. Pois como diz o Senhor no Evangelho: Os príncipes das nações as subjugam e os grandes imperam sobre elas”, assim não deve ser entre os irmãos, mas mantes: Aquele que quiser ser o maior entre eles seja o seu ministro ( Mt 20, 26-27) e o servo deles, e quem for o maior entre eles faça-se menor (cf lc 22,26). E nenhum irmão trate mal a um outro nem fale mal dele. Antes sirvam e obedeçam de bom grado uns aos outros na caridade do Espírito” (Regra não bulada 5,12-17). E nesse gênero de vida ninguém seja chamado de prior, mas todos sejam designados indistintamente de frade menores, continua Francisco.
Texto para reflexão
O amor é benigno. Uma pessoa cheia de amor faz bem aos outros, tem uma irradiação de cura. Perto dela a gente se sente bem. Ela vê o bem nas outras pessoas e faz com que elas o manifestem. Como crê no bem das pessoas, relaciona-se benignamente com elas. O amor irradia sossego e independência. Quem sente o amor em si é livre. Não fica comparando com os outros, vive em si. Seu coração não é suscetível a atos que causam tristeza. O amor conduz o ser humano a si mesmo, a seu próprio modo de ser, manifesta seu interior.
Anselm Grün, “Pequeno tratado do verdadeiro amor”, Vozes, p. 34.
Oração
Peço-te, Senhor, pela compaixão. Não me permitas subir pelo tempo afora aparelhado de uma indiferença crescente. Não me deixes supor o mundo, com todas as suas dores, como um flagelo distante. Não consistas no meu virar de cara rotineiro; na minha surdez aos desgostos alheios; na dureza prática com que encaro as fragilidades que irrompem na vida dos outros. Ensina-me a compaixão, a misericórdia, o cuidado. Ensina-me a prece verdadeira que dos gestos do bom samaritano subia até ti.
José Tolentino Mendonça, “Um Deus que dança”, Paulinas p.94.
FREI ALMIR GUIMARÃES, OFM, ingressou na Ordem Franciscana em 1958. Estudou catequese e pastoral no Institut Catholique de Paris, a partir de 1966, período em que fez licenciatura em Teologia. Em 1974, voltou a Paris para se doutorar em Teologia. Tem diversas obras sobre espiritualidade, sobretudo na área da Pastoral familiar. É o editor da Revista “Grande Sinal”.
Um dito muito atual
José Antonio Pagola
Nazaré era uma aldeia pequena, perdida entre as colinas da Baixa Galileia. Ali todos conhecem Jesus: viram-no brincar e trabalhar entre eles. A humilde sinagoga do povoado está cheia de familiares e conhecidos. Ali estão seus amigos e amigas da infância.
Quando Jesus se apresenta diante deles como “enviado” por Deus aos pobres e oprimidos, ficam surpresos. Sua mensagem lhes agrada, mas não lhes basta. Pedem que faça entre eles as curas que, segundo se diz, realizou em Cafarnaum. Não querem um “profeta” de Deus, mas uma espécie de “mago” ou “curandeiro” que dê prestígio à sua pequena aldeia.
Jesus não parece surpreender-se. Lembra-lhes um dito que ficará gravado na memória de seus seguidores: “Asseguro-vos que nenhum profeta é bem acolhido entre o seu povo”. De acordo com Lucas, a incredulidade e a rejeição dos moradores de Nazaré vão crescendo. No final, “furiosos” o lançam “para fora do povoado”.
O provérbio de Jesus não é uma trivialidade, porque encerra uma grande verdade. O “profeta” nos confronta com a verdade de Deus, põe a descoberto nossas mentiras e covardias e nos chama a uma mudança de vida. Não é fácil ouvir sua mensagem. É mais cômodo “lançá-lo fora” e esquecê-lo.
Nós cristãos dizemos coisas tão admiráveis de Jesus que às vezes esquecemos sua dimensão de “profeta”. Confessamo-lo como “Filho de Deus”, “Salvador do mundo”, “Redentor da humanidade” e pensamos que, ao recitar nossa fé, já o estamos acolhendo. Não é assim. Deixamos Jesus, “Profeta de Deus”, penetrar em nossa vida quando acolhemos sua palavra, nos deixamos transformar por sua verdade e seguimos seu estilo de vida.
Esta é a decisão mais importante dos seguidores de Jesus: ou acolhemos sua verdade ou a rejeitamos. Esta decisão, oculta aos olhos dos outros e só conhecida por Deus, é o que decide o sentido de minha vida e o acerto ou desacerto de minha passagem pelo mundo.
JOSÉ ANTONIO PAGOLA cursou Teologia e Ciências Bíblicas na Pontifícia Universidade Gregoriana, no Pontifício Instituto Bíblico de Roma e na Escola Bíblica e Arqueológica Francesa de Jerusalém. É autor de diversas obras de teologia, pastoral e cristologia. Atualmente é diretor do Instituto de Teologia e Pastoral de São Sebastião. Este comentário é do livro “O Caminho Aberto por Jesus”, da Editora Vozes.
A Boa Nova para todos e o profeta rejeitado
Pe. Johan Konings
Depois de todos os esforços para integrarmos em nossas comunidades ricos e pobres, brancos e negros, homens e mulheres, constatamos que as discriminações, as panelinhas, os particularismos continuam. Quem mora mais perto da igreja matriz deve ser melhor atendido … Quem tem algum primo padre tem direito a cerimônias melhores… Muitos pensam que Deus está ai só para eles! A Igreja é realmente para todos, ou somente para gente de bem, “gente da casa”?
Os antigos israelitas achavam que a aliança de Deus pertencia exclusivamente a eles. Também achavam que bastava ser israelita para ter a salvação garantida. Não aguentavam que os seus profetas os criticassem. Por isso, quando Deus manda o profeta Jeremias, já o prepara desde o início para enfrentar a resistência de seu povo (1ª leitura). Semelhante resistência também a encontra Jesus, especialmente na sua própria terra, Nazaré. Ele anuncia que o Reino de Deus e a libertação se destinam também aos pagãos, e mesmo com prioridade (evangelho). Aos que ciosamente esperam dele milagres para sua própria cidadezinha, Jesus lembra que os milagres de Elias e Eliseu favoreceram estrangeiros. Por isso, seus conterrâneos querem precipitá-lo da colina de sua cidade. Mas Deus o toma firme e inabalável – como o tinha prometido a Jeremias. Com autoridade assombrosa, Jesus atravessa o corredor polonês formado pelos que ameaçam sua vida.
A Igreja, corpo e presença de Cristo, deve anunciar ao mundo a salvação para todos, sem discriminação ou privilégio. Ser “gente da casa” (católico de tradição) não tem peso algum. A boa-nova é para todos quantos quiserem converter-se. A primeira exigência do ser cristão é não ser egoísta, não querer as coisas só para si – nem as materiais, nem as espirituais. O evangelho é privilégio nenhum. Excluir quem quer que seja, por pertencer a outra classe, ideologia ou ambiente, está em contradição direta com o evangelho e a prática de Jesus. O evangelho é para todos. Se alguém, por força de sua cabeça fechada, tapa os ouvidos, problema dele. Portanto, que “os da casa” não rejeitem o profeta que se dirige a outros …
Para anunciar a boa-nova a todos, a Igreja “toda profética” não deve ser escrava de privilégios e influências alheias. Deve falar com a desinibição que caracteriza os profetas. Os que nela possuem o carisma profético devem destacar-se por sua autenticidade, sua coragem de: mártir, sua simplicidade, que deixa transparecer o Reino de Deus em sua vida.
PE. JOHAN KONINGS nasceu na Bélgica em 1941, onde se tornou Doutor em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina, ligado ao Colégio para a América Latina (Fidei Donum). Veio ao Brasil, como sacerdote diocesano, em 1972. Em 1985 entrou na Companhia de Jesus (Jesuítas) e, desde 1986, atuou como professor de exegese bíblica na FAJE, Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte. Faleceu no dia 21 de maio de 2022. Este comentário é do livro “Liturgia Dominical, Editora Vozes.
Reflexão em vídeo de Frei Gustavo Medella