Frei Jacir de Freitas Faria [1]
O evangelho apócrifo de Maria Madalena, de origem gnóstica, datado por volta do ano 150 da Era Comum e encontrado em 1945, na biblioteca de Nag Hammadi, no alto Egito, no capítulo sete, versículos de onze a vinte e oito, deixou registrado:[2]
11Pedro diz a Maria Madalena: “Já que Tu te fazes o intérprete 12dos elementos e dos acontecimentos do mundo, dize-nos:13O que é o pecado no mundo?” 14O Mestre (Jesus) diz: 15“Não há pecado.16Sois vós que fazeis existir o pecado 17quando agis conforme os hábitos 18de vossa natureza adúltera:19aí está o pecado. 20Eis porque o Bem veio entre vós;21Ele participou dos elementos de vossa natureza 22a fim de reuni-la a suas raízes.” 23Ele continuou e disse: 24“Eis por que estais doentes 25e porque morreis:26é a consequência de vossos atos: 27vós fazeis o que vos afasta…28Quem puder, compreenda.”
Esse evangelho é um diálogo entre os apóstolos e Maria Madalena, considerada apóstola pelos gnósticos, movimento religioso que reconhecia a liderança das mulheres e ensinava que a salvação vem pelo conhecimento de Deus e de nossas origens.
Madalena recebeu os ensinamentos de Jesus e teria poder para repassá-los aos outros apóstolos. O contexto desse evangelho é o de disputas de poder entre os cristãos do segundo século do cristianismo em relação, por exemplo, à liderança exercida pelas mulheres na condução da Igreja, de modo especial entre os cristãos gnósticos marcionitas, carpocráticos e montanistas, onde elas eram profetisas, sacerdotisas, bispas e mestras. Há, nesse período, uma disputa de poder para saber quem conduziria o cristianismo.
A partir do final do século segundo quem concedesse poder às mulheres seria considerado herético pelo cristianismo que se tornou hegemônico, o apostólico. Os cristãos da primeira hora seguiram o exemplo de Jesus, que acolheu e valorizou mulheres em sua pregação do reino.
Com a condução de homens, o cristianismo voltou a ser judeu. Para o Império Romano, a posição discriminatória do cristianismo em relação à mulher foi positiva, pois ela veio de encontro aos misóginos romanos – homens que tem aversão ao poder das mulheres, que combatiam a proeminência das mulheres no império, as quais, por serem maioria, começavam a se envolver nos negócios, na vida social, nos esportes, nas viagens, festas etc.[3]
No evangelho de Maria Madalena, Pedro, com tom irônico, pergunta para Madalena: “Já que Tu te fazes a intérprete” dos acontecimentos, fala para nós sobre a existência do pecado. Pedro era reconhecido como o que tinha primazia sobre os apóstolos. O seu nome é também Simão, substantivo que vem do verbo hebraico Shemá, que significa escutar com o sentido de saber entender, compreender o sentido, e não somente ouvir por ouvir. Dizer Simão, Simeão, é mesmo que dizer “aquele que ouve”, interpreta perfeitamente.
Pedro, aquele que pensa ter compreendido a fala de Jesus, parece não ter ouvido direito. Ou terá ouvido de forma equivocada? Pedro afirma que Maria Madalena quer passar por intérprete dos elementos e acontecimentos do mundo. Na verdade, Maria Madalena esteve muito próxima de Jesus, o conheceu muito e o amou em profundidade. Ela poderia, sim, interpretar os elementos do mundo, a realidade que nos impede, conforme o pensamento gnóstico, de conhecer para volta para a realidade da Luz, de onde viemos.
Gnose significa conhecer. A salvação vem pelo conhecimento da realidade de onde viemos e para onde voltaremos. Pedro não tem como duvidar da capacidade de Madalena e de sua relação próxima com o Mestre. E qual não foi a surpresa de Pedro com a resposta de Maria Madalena: “Não há pecado. Sois vós que fazeis existir o pecado quando agis conforme a vossa natureza adúltera.”
Por que Madalena respondeu assim? Será que Jesus terá dito isso ou, simplesmente, trata-se de uma releitura de seus ensinamentos? Vejamos. O pecado existe, afirma a catequese que nossos pais e mães nos ensinaram. A natureza divina não tem pecado. E se somos divinos, o pecado não deveria fazer parte do nosso ser. No entanto, a nossa natureza se tornou adúltera, saiu do caminho, e por isso pecadora. O que nós chamamos de pecado é uma afronta às leis preestabelecidas no interno da sociedade e das instituições religiosas.
Há bem pouco tempo, a Igreja Católica orientava-se em sua ação pastoral em detectar o pecado. Havia até listas de pecado com as penitências correspondentes. Um fiel se sentia na obrigação de confessar sempre. Será isso, de fato, passado?
Muitas pessoas ficaram marcadas pela obsessão do pecado. A ênfase no pecado fez e faz com as pessoas percam a dimensão da liberdade, da espontaneidade diante da vida. Nós somos muito mais que o pecado cometido.
Não podemos negar a existência do pecado, pois somos humanos. Ele não é só moral e pessoal, mas também social e estrutural, o qual advém, é claro, do pecado pessoal. Paulo, o judeu que se fez cristão, chamou a atenção para o fato de a “Lei” criar situações de pecado. Para ele, “sem a Lei o pecado está morto” (Rm 7, 6). A comunidade de Maria Madalena segue esse mesmo tipo de raciocínio quando diz que o pecado não existe, mas somos nós que fazemos existir o pecado com as nossas leis que ferem a essência do evangelho da vida, da liberdade.
A nossa natureza “adúltera” cria o pecado. Adúltero no evangelho de Maria Madalena não tem conotação sexual, mas está relacionado com a idolatria, isto é, adorar algo que não existe. Leluop fala que “o drama do mundo contemporâneo ou drama do pecado é o de absolutizar o relativo e de relativizar o Absoluto”.[4] Adulterar é deformar. Jesus dizia que o modo de olhar pode adulterar a realidade (Mt 5,28). O absolutizar o pecado é um modo de cometer adultério. O desafio hoje é distinguir o absoluto do relativo.
O pecado não existe, mas se eu afirmo que ele existe e ajo de modo a fazer com que ele exista, o pecado se torna absoluto. Por outro lado, se o meu modo de ser é de liberdade e responsabilidade, o pecado se torna relativo e ele não me escraviza. Há de considerar que esse modo de pensar não quer, de modo algum, legitimar o grande pecado social do nosso tempo. Mas, pelo contrário, ressaltar que, se o nosso proceder fosse diferente, não haveria lugar para pecados, sejam eles sociais ou pessoais.
Eis porque o Bem veio entre vós. O Bem para Maria Madalena é Jesus, personificação da Torá (Lei), o Bem do judaísmo. Jesus veio ao nosso meio para nos resgatar de nossa natureza adúltera. Mas sua vinda não é simplesmente consequência da “feliz culpa de Adão”, como ensinou Santo Agostinho (354-430). Adão é todo ser humano que carrega dentro de si o germe da infidelidade ao projeto libertador de Deus. O Bem veio entre nós para nos devolver integridade do UM (Deus). “Eu e o Pai somos um” dizia Jesus (Jo 10,30).
Jesus participou dos elementos de vossa natureza. O Bem tem sua origem no tempo de Deus, chamado de cósmico, isto é, infinito, ilimitado e eterno. Desse tempo que não passa, o Bem veio ao nosso tempo, chamado de cronológico, isto é, finito, cronológico e limitado. O evangelho de João, próximo ao ensinamento da comunidade de Maria Madalena, disse o mesmo ao afirmar “que no princípio era a Palavra… E a Palavra se fez carne e habitou entre nós; e nós vimos a sua glória (presença)” (Jo 1,1.14).
Jesus veio no meio de nós a fim de nos unir às nossas raízes. Voltar às nossas raízes significa voltar ao Sagrado. Jesus cumpriu o seu papel de reunir todos nós em torno a Deus eterno, infinito, ilimitado, tempo que não passa mais. Para os judeus voltar às raízes é manter-se unido em torno da Torá. Basta viver a Torá para estar no caminho do Bem.
Eis por que estais doentes e por que morreis: é a consequência de vossos atos. Adoecer e morrer é consequência de nossa ignorância, do nosso não conhecimento de Deus e seu projeto libertador. Quem caminha em Deus não fica doente e nem morre. A doença é a expressão de nossa falta de harmonia. Um corpo desarmônico está doente. E quantas doenças não têm origem psicológica? São simples somatização de questões mal-resolvidas. Quanta gente mal-amada está sempre dissimulando doenças? Tomar conhecimento dessa situação é já se libertar do sofrimento.
Vós fazeis o que vos afasta. E poderíamos acrescentar vos afasta do centro. Como humanos integrados ao cosmos, vivemos em harmonia. Imagine, dentro de um círculo, os quatro pontos cardeais ou os quatro ventos apontando para o centro. Assim somos nós quando estamos de bem com a vida. Reina o equilíbrio, a harmonia. Tudo se volta para o centro. Não há pecado nessa relação.
Por outro lado, quando a vida não está em harmonia, ela está doente, está dividida. O diabo (aquele que divide) entrou em ação. Nossas ações se tornam injustas. Se o nosso ser não estiver saudável, com certeza influenciaremos negativamente as pessoas com as quais convivemos. Somos fruto do nosso modo de agir, pensar e relacionar-nos. É desafio para cada um de nós permanecer íntegro, fazendo sempre o caminho em direção ao centro. Permanecer no centro. Eis a tarefa cotidiana, árdua e difícil, de quem quer encontrar a realização do seu ser. Vale a pena a busca. Um tesouro será encontrado. Permanecer no centro é já viver sem pecado, deixando a Graça agir.
Quem puder, compreenda! Expressão que encerra essa passagem do evangelho de Maria Madalena. O Mestre sabe que nem todos são capazes de compreender tamanho mistério. Ele deixa a liberdade de opção para o ouvinte. Será que Pedro compreendeu a resposta do Mestre? Será que somos capazes de compreender esse novo modo de entender a nossa vida em relação ao pecado, ao desviar-se do caminho? As respostas estão no caminho. Boa caminhada sem pecado, sem se desviar do Bem Maior.
[1]Doutor em Teologia Bíblica pela Faje (BH). Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de Exegese Bíblica. É membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quinze. Último livro: O Medo do Inferno e arte de bem morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte (Vozes, 2019). Youtube: Frei Jacir Bíblia e Apocrifos. https://www.youtube.com/channel/UCwbSE97jnR6jQwHRigX1KlQ
[2]FARIA, Jacir de Freitas. As origens apócrifas do cristianismo: comentário aos evangelhos de Maria Madalena e Tomé. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 2003, p. 50.
[3]FARIA, Jacir de Freitas. Apócrifos aberrantes, complementares e cristianismos alternativos: poder e heresias! Introdução crítica e histórica à Bíblia Apócrifa do Segundo Testamento. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 115.
[4] LELOUP, Jean-Yves. O Evangelho de Maria: Míriam de Mágdala. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 52.