Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Viver melhor há de ser mais que um simples slogan ou apelo por determinada campanha. Menos ainda deve instigar a construção de um cotidiano nos limites de uma medíocre “zona de conforto”, alimentada pela ilusão de condições cômodas para um viver que não é senão feito de mesquinhez e distanciamento da solidariedade. Esse é um risco real e comum a empurrar indivíduos e segmentos da sociedade para as estreitezas que alimentam indiferenças e incapacitam para a indispensável escuta dos clamores dos pobres e do planeta – das dores dos outros. Viver melhor seja um programa de vida correndo nos trilhos da existência entre as “bitolas” da conscientização, que ilumina o entendimento adequado da realidade em torno e no seu alcance mais amplo, e a experiência alimentadora do vigor e da ternura que alavancam o dia a dia. O viver melhor requer a arte de não se desencarrilhar dessas duas e insubstituíveis bitolas na qualificação da existência humana, para conduzi-la no horizonte de seu verdadeiro sentido. Evidente é o desafio que revela inexistente flexibilidade existencial para não desligar-se de uma ou outra dessas “bitolas”, que têm força de alavanca e equilíbrio.
O viver melhor remete a questões cruciais e pesadas da realidade. Considerável e preocupante é o número daqueles que não estão dando conta de sustentar o próprio viver. Reside aí importante alerta: providências precisam ser empregadas nos ambientes familiares, nos círculos de trabalho, nas relações interpessoais e naquelas estabelecidas no interno das instituições religiosas, artísticas e tantas outras. Há um combate ferrenho a ser travado, porque as estatísticas dos que desistem de viver é alarmante. Crescente é o trabalho para salvar vidas, com embasamento científico, procedimentos terapêuticos e relacionais qualificados, apontando para o sentido amplo da responsabilidade sobre a própria vida e a do outro, com dedicação, atenção e ajuda. Há uma ciência própria a aprender na capacitação do entendimento da alma humana, avançando na autocompreensão para fecundar a competência do próprio viver. O luto ampliado no horizonte da sociedade, amalgamando, tristemente, números altos de vítimas da Covid-19 e dos que tiram ou tentam dar fim à própria vida, com outros indicadores relevantes dos cenários vergonhosos da desigualdade social, aponta para a necessária condição de aprendizes de um autêntico viver melhor.
As “bitolas” da conscientização e da experiência contêm diferentes lições e indicam a necessidade de muitos exercícios. Sua desarticulação produz descarrilamentos e descompassos que incidem prejudicialmente sobre a vida de todos. Por isso, é fundamental a qualificação da cidadania, considerada o conjunto equilibrado e articulado da participação esperada de cada indivíduo, o que requer clareza a respeito de processos sociopolíticos e econômicos e a profundidade do viver como dom. A sociedade brasileira está exigindo resposta nova que haverá de ser resultado do envolvimento de todos na compreensão do que está ocorrendo. Criar, assim, a lucidez que permite identificar onde está o descompasso para que não se defenda o indefensável. O cidadão precisa compreender e se preocupar – considerando novas respostas e novas escolhas – saber que o Brasil vive uma conjunção de crises alimentadas por muitas tensões, alavancadas por indivíduos, segmentos e até instituições desprovidos da necessária qualidade de balizamento em parâmetros éticos e morais. É preciso, sem paixões partidárias e entrincheiramentos em torno de nomes, reconhecer que o Brasil está mergulhado numa conjunção de crises sem precedentes.
São contradições irracionais, a exemplo da constatação de recordes de safras obtidos pelo agronegócio e destinadas à exportação, quando mais da metade da população se encontra em situação de miséria e fome. Não se pode considerar como consequência qualquer a gravíssima crise hídrica, a pior dos últimos 90 anos. A crise ambiental pesa sobre a sociedade brasileira, aprofundada por claras manipulações de decisões e escolhas pela hegemonia pecaminosa da força do dinheiro. Há grave crise no âmbito dos direitos humanos – entidades de defesa dos direitos humanos, organizações indígenas e de trabalhadores, no campo e na cidade, suas lideranças e seus técnicos estão submetidos a pressões e ações criminosas. Preocupante é a evidente corrosão democrática, com ameaças aos pilares da democracia. A vigente crise político-social, que afeta o equilíbrio e o desenvolvimento integral e pacífico da sociedade brasileira, precisa ser entendida pelo cidadão, de modo a identificar seus agentes danosos, condição para se elaborar novos critérios de juízos. E de escolhas por uma proposta que resulte em mudanças de lideranças, comandos e funcionamentos pautados pela prioridade do bem comum. A escola da conscientização precisa contar com o conjunto da sociedade – iniciando um grande número de matriculados no “beabá” que poderá salvar todos dos enquadramentos nocivos, juízos equivocados e obscurantistas.
A compreensão do funcionamento complexo da sociedade é exigente e indispensável, como alavanca de participação cidadã e democrática na construção do bem comum, por meio de agentes que sejam sempre promotores da justiça e defensores dos direitos. O desempenho desse papel, individual e conjuntamente, nos vários âmbitos, requer gente de envergadura humanística e comprovado equilíbrio emocional. Não se pode pretender o “viver melhor” dispensando ou negligenciando a “bitola” da experiência que, em sua essência, se temperam e articulam entendimentos capazes de dar razão à vida, alimentar as convicções da solidariedade, garantir a competência dialogal, não permitindo imposições partidárias e cartoriais comprometendo o bem maior. A experiência é alicerce indispensável para não se dar hegemonias a ideologias ou a escolhas comprometedoras. A conscientização é escola que não se pode dispensar, para se compreender a complexidade da sociedade civil e gerar participação lúcida. A experiência articula o afeto emocional assentado na espiritualidade, nos valores e princípios de inquestionável universalidade. A sociedade brasileira está desafiada a percorrer seu caminho nos trilhos do bem comum, emoldurados e impulsionados pelas “bitolas” de lúcida e profética conscientização, de experiência afetivo-emocional movida por um humanismo integral para se buscar, permanente e urgentemente, o “viver melhor”.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo é Arcebispo de Belo Horizonte (MG) e presidente da Conferência dos Bispos do Brasil (CNBB). Fonte: site CNBB.