Natal do Senhor
- Natal do Senhor
- Leituras bíblicas para esta solenidade
- Reflexões do exegeta Frei Ludovico Garmus
- Noite de Natal: humildade e misericórdia
- Natal do Altíssimo na terra dos homens
- Deus entre nós
- Jesus, recado de Deus
Natal do Senhor
A Encarnação contagiante da Palavra
Frei Gustavo Medella
“E a Palavra se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14). Palavra é sopro, ar em movimento, comunicação e relação. É a forma que Deus encontra para se fazer presença entre os seus. Fez-se carne e proximidade, testemunhando desde cedo a força do simples, do pobre, do pequeno, do discreto, ao nascer numa gruta despojada de qualquer luxo ou suntuosidade. No mínimo necessário, nada lhe faltou. Na precariedade do presépio, o Senhor reitera também a vocação humana de viver em harmonia com os bens da criação: os animais que lhe ofereceram companhia e calor, a estrela que brilhou no céu e guiou magos e pastores, as pedras que lhe serviram de teto em Belém.
Em tempos de pandemia, a palavra também lida com a contradição de ser um possível meio de contágio. No primeiro caso, pelas gotículas que se espalham no ar quando a pessoa fala. Para este risco, a máscara aparece como meio de reduzi-lo, assim como o distanciamento social e o uso da comunicação à distância via internet. Mais perigoso é o segundo contágio, quando a palavra é usada para espalhar medo, desinformação, inverdades, desunião, ódio e irresponsabilidade. Este uso degenerado da palavra não nasce da ternura do Menino, mas brota da cegueira gananciosa de Herodes, a quem interessa o domínio da morte e da destruição.
A Palavra que se faz carne, por sua vez, não é contagiosa, mas contagiante. É fonte viva de esperança e amor. Continuemos a crer no testemunho encantador que brilha na simplicidade de Belém. Estamos precisando muito desta força de ternura e compaixão. Que o Natal deste ano nos faça renascer para o sonho de um mundo melhor. O nascimento do Menino Deus seja para nós alento e estímulo a fim de levarmos adiante nosso compromisso com o legado do presépio. Feliz Natal!
FREI GUSTAVO MEDELLA, OFM, é o atual Vigário Provincial e Secretário para a Evangelização da Província Franciscana da Imaculada Conceição. Fez a profissão solene na Ordem dos Frades Menores em 2010 e foi ordenado presbítero em 2 de julho de 2011.
Imagem ilustrativa de Frei Fábio Melo Vasconcelos
Leituras bíblicas para esta solenidade
Primeira Leitura – Isaías 52,7-10
7Como são belos, andando sobre os montes, os pés de quem anuncia e prega a paz, de quem anuncia o bem e prega a salvação, e diz a Sião: “Reina teu Deus!” 8Ouve-se a voz de teus vigias, eles levantam a voz, estão exultantes de alegria, sabem que verão com os próprios olhos o Senhor voltar a Sião. 9Alegrai-vos e exultai ao mesmo tempo, ó ruínas de Jerusalém; o Senhor consolou seu povo e resgatou Jerusalém. 10O Senhor desnudou seu santo braço aos olhos de todas as nações; todos os confins da terra hão de ver a salvação que vem do nosso Deus.
Sl 97(98)
Os confins do universo contemplaram / a salvação do nosso Deus.
Cantai ao Senhor Deus um canto novo, / porque ele fez prodígios! / Sua mão e o seu braço forte e santo / alcançaram-lhe a vitória. – R.
O Senhor fez conhecer a salvação, / e às nações, sua justiça; / recordou o seu amor sempre fiel / pela casa de Israel. – R.
Os confins do universo contemplaram / a salvação do nosso Deus. / Aclamai o Senhor Deus, ó terra inteira, / alegrai-vos e exultai! – R.
Cantai salmos ao Senhor ao som da harpa / e da cítara suave! / Aclamai, com os clarins e as trombetas, / ao Senhor, o nosso rei! – R.
Segunda Leitura – Hebreus 1,1-6
1Muitas vezes e de muitos modos, falou Deus outrora aos nossos pais pelos profetas; 2nestes dias, que são os últimos, ele nos falou por meio do Filho, a quem ele constituiu herdeiro de todas as coisas e pelo qual também ele criou o universo. 3Este é o esplendor da glória do Pai, a expressão do seu ser. Ele sustenta o universo com o poder de sua palavra. Tendo feito a purificação dos pecados, ele sentou-se à direita da majestade divina, nas alturas. 4Ele foi colocado tanto acima dos anjos quanto o nome que ele herdou supera o nome deles. 5De fato, a qual dos anjos Deus disse alguma vez: “Tu és o meu Filho, eu hoje te gerei”? Ou ainda: “Eu serei para ele um Pai, e ele será para mim um filho”? 6Mas, quando faz entrar o Primogênito no mundo, Deus diz: “Todos os anjos devem adorá-lo!”
Evangelho: João 1,1-18 ou 1-5.9-14
O nascimento de Jesus – Jesus é a Palavra que revela Deus aos homens -* 1 No começo a Palavra já existia: a Palavra estava voltada para Deus, e a Palavra era Deus.
2 No começo ela estava voltada para Deus. 3 Tudo foi feito por meio dela, e, de tudo o que existe, nada foi feito sem ela.
4 Nela estava a vida, e a vida era a luz dos homens. 5 Essa luz brilha nas trevas, e as trevas não conseguiram apagá-la.
6 Apareceu um homem enviado por Deus, que se chamava João. 7 Ele veio como testemunha, para dar testemunho da luz, a fim de que todos acreditassem por meio dele. 8 Ele não era a luz, mas apenas a testemunha da luz. 9 A luz verdadeira, aquela que ilumina todo homem, estava chegando ao mundo.
10 A Palavra estava no mundo, o mundo foi feito por meio dela, mas o mundo não a conheceu.
11 Ela veio para a sua casa, mas os seus não a receberam.
12 Ela, porém, deu o poder de se tornarem filhos de Deus a todos aqueles que a receberam, isto é, àqueles que acreditam no seu nome.
13 Estes não nasceram do sangue, nem do impulso da carne, nem do desejo do homem, mas nasceram de Deus.
14 E a Palavra se fez homem e habitou entre nós. E nós contemplamos a sua glória: glória do Filho único do Pai, cheio de amor e fidelidade.
15 João dava testemunho dele, proclamando: «Este é aquele, a respeito de quem eu falei: aquele homem que vem depois de mim passou na minha frente, porque existia antes de mim.»
16 Porque da sua plenitude todos nós recebemos, e um amor que corresponde ao seu amor.
17 Porque a Lei foi dada por Moisés, mas o amor e a fidelidade vieram através de Jesus Cristo. 18 Ninguém jamais viu a Deus; quem nos revelou Deus foi o Filho único, que está junto ao Pai..
* 1,1-18: O Prólogo de João lembra a introdução do Gênesis (1,1-31; 2,1-4a). No começo, antes da criação, o Filho de Deus já existia em Deus, voltado para o Pai: estava em Deus, como a Expressão de Deus, eterna e invisível. O Filho é a Imagem do Pai, e o Pai se vê totalmente no Filho, ambos num eterno diálogo e mútua comunicação.
A Palavra é a Sabedoria de Deus vislumbrada nas maravilhas do mundo e no desenrolar da história, de modo que, em todos os tempos, os homens sempre tiveram e têm algum conhecimento dela.
Jesus, Palavra de Deus, é a luz que ilumina a consciência de todo homem. Mas, para onde nos conduziria essa luz? A Bíblia toda afirma que Deus é amor e fidelidade. Levado pelo seu imenso amor e fiel às suas promessas, Deus quis introduzir os homens onde jamais teriam pensado: partilhar a própria vida e felicidade de Deus. E para isso a Palavra se fez homem e veio à sua própria casa, neste seu mundo.
A humanidade já não está condenada a caminhar cegamente, guiando-se por pequenas luzes no meio das trevas, por pequenas manifestações de Deus, mas pelo próprio Jesus, Manifestação total de Deus. Com efeito, Jesus Cristo, que é a luz, veio para tornar filhos de Deus todos os homens. Um só é o Filho, porém, todos podem tornar-se bem mais do que filhos adotivos: nasceram de Deus.
Deus tinha dado uma lei por meio de Moisés. E todos os judeus achavam que essa lei era o maior presente de Deus. Na realidade, era bem mais o que Deus tinha reservado para todos. Porque Jesus, o Deus Filho, o verdadeiro e total Dom do Pai, é o único que pode falar de Deus Pai, porque comunica o amor e a fidelidade do Deus que dá a vida aos homens.
Bíblia Sagrada – Edição Pastoral
Reflexões do exegeta Frei Ludovico Garmus
Natal do Senhor
Oração: “Ó Deus, que admiravelmente criastes o ser humano e mais admiravelmente restabelecestes a sua dignidade, dai-nos participar da divindade do vosso Filho, que se dignou assumir a nossa humanidade”.
Primeira leitura: Is 52,7-10
Todos os confins da terra hão de ver
a salvação que vem do nosso Deus.
Os reis de Israel e de Judá não conseguiram trazer a salvação ao povo. Em consequência, o reino de Israel foi destruído pelos assírios e boa parte de sua população, levada para o exílio, ao norte da Assíria (772 a.C.). O mesmo aconteceu entre 597 e 585 a.C., com o reino de Judá, cuja população foi levada ao exílio pelo novo dominador, o rei de Babilônia. Os profetas Jeremias, Ezequiel e os autores deuteronomistas interpretam o dramático fim dos reinos de Israel e de Judá, como punição divina pelas infidelidades e crimes cometidos, sobretudo, pelos governantes dos dois reinos. Passada uma geração no exílio, os discípulos do profeta Isaías, à luz da fé em Javé, Deus de Israel e de Judá, leem os novos acontecimentos políticos de seu tempo: O domínio dos babilônios agonizava e um novo domínio surgia, o do Império persa. Estes profetas erguem então sua voz, em meio ao desânimo dos exilados, e levantam a bandeira da esperança. Agora, nosso Deus vai pôr um fim à dominação de Babilônia. Ciro, rei dos persas, será o instrumento nas mãos de Deus para punir os cruéis babilônios e executar o seu plano de salvação. Deus mesmo vai consolar o seu povo sofredor. Vai trazer seu povo de volta à sua terra e as ruínas de Jerusalém serão reconstruídas. Então, todas as nações saberão que “a salvação vem do nosso Deus”.
Salmo responsorial: Sl 97
Os confins do universo contemplaram
a salvação do nosso Deus.
- Segunda leitura: Hb 1,1-6
Deus falou-nos por meio de seu Filho.
Na revelação cristã, Deus não é um ser solitário. Deus é comunhão de três pessoas: Pai, filho e Espírito santo. Deus é Amor. É Amor que se comunica “dentro de si” mesmo. Deus é Amor que se expande para “fora” de si mesmo, enquanto cria o universo, cria todos os seres vivos de nosso planeta Terra. Cria o ser humano à sua imagem e semelhança, comunica-se com ele e convida-o a entrar na comunhão de seu amor. No passado – diz o autor da Carta aos Hebreus – Deus se comunicava com seu povo por meio dos profetas. Por meio deles exortava o povo à fidelidade, à conversão e lhe anunciava a salvação. Agora, Deus se comunica conosco por meio de seu Filho, o herdeiro de todas as coisas, o criador do universo e o esplendor de sua glória. Pelo poder de sua palavra sustenta o universo e nos purifica dos pecados. Como filho de Deus, o cristão deve ser o reflexo de Cristo, que é “o esplendor da glória do Pai, a expressão do seu ser” (v. 3). Em Jesus Cristo cumpre-se a promessa feita a Davi: “Eu serei para ele um pai, e ele será para mim um filho” (2Sm 7,14). O Filho de Deus, ao assumir no seio da Virgem Maria a “carne” humana, tornou-se nosso irmão. O autor de Hebreus afirma isso muito bem: “Por isso, Jesus não se envergonha de chamá-los de irmãos” (2,11). Que maravilha! Deus que nos criou se fez nosso irmão! Vinde, adoremos!
Aclamação ao Evangelho
Despontou o santo dia para nós:
Ó nações, vinde adorar o Senhor Deus,
porque hoje grande luz brilhou na terra!
- Evangelho: Jo 1,1-18
A Palavra se fez carne e habitou entre nós.
Deus é Amor, é comunicação. No passado Deus se comunicava com seu povo pelos profetas. Agora se comunica conosco pelo seu próprio Filho, a Palavra feita carne. A Palavra, no princípio, estava junto de Deus (v. 1-2), era o próprio Deus, que é amor-comunicação. Deus, que é amor-comunicação, se expande para “fora” de si mesmo como criador do universo. Por Jesus, a Palavra feita carne, tudo foi feito (v. 3) e agora são dadas a graça e a verdade (v. 17). Na Palavra estava a vida e a vida era a luz dos homens, luz que brilha em meio às trevas (v. 4-5).
Ela é a Luz que veio a este mundo. Há os que rejeitaram esta Luz (v. 5.9-11). Mas a nós que cremos e a recebemos, nos é dada a plenitude da graça (v. 16), nos é dado o poder de nos tornarmos filhos de Deus (v. 12). Tudo aconteceu porque a Palavra, o Filho de Deus, “se fez carne e habitou entre nós” (v. 14). Louvemos a nosso Deus que assumiu a fragilidade de nossa carne, para fazer de nós seus filhos e filhas, e em nós a sua morada!
FREI LUDOVICO GARMUS, OFM, é professor de Exegese Bíblica do Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis (RJ). Fez mestrado em Sagrada Escritura, em Roma, e doutorado em Teologia Bíblica pelo Studium Biblicum Franciscanum de Jerusalém, do Pontifício Ateneu Antoniano. É diretor industrial da Editora Vozes e editor da Revista “Estudos Bíblicos”, editada pela Vozes. Entre seus trabalhos está a coordenação geral e tradução da Bíblia Sagrada da Vozes.
Noite de Natal: humildade e misericórdia
Frei Clarêncio Neotti
Esta é, sobretudo, a noite da humildade. Humildade de Deus, que desce do céu e assume a condição humana em tudo, menos no pecado (Hb 4,15): “Cristo Jesus, apresentando-se como simples homem, humilhou-se” (Fl 2,7). Humildade da criatura humana, porque só um coração humilde, como o de José e de Maria, pode avizinhar-se de uma manjedoura e ver crendo e crer vendo num pobre menino recém-nascido o Filho de Deus, Salvador do mundo. Um coração orgulhoso é incapaz de crer num mistério. Como eram sábios nossos pais, quando nos ensinaram em criança a rezar: “Jesus, manso e humilde de coração, fazei meu coração semelhante ao vosso!” Porque só o humilde consegue aproximar-se de Deus. Se alguém se aproximasse do Presépio, pensando estar revestido de todas as virtudes e qualidades terrenas e celestiais, mas lhe faltasse a humildade, estaria desprovido de tudo, porque todas as virtudes têm como condição de existência a humildade. Esta é a noite da humildade. Humildade de Deus e humildade da criatura.
Esta é a noite da misericórdia. A palavra ‘misericórdia’ significa ‘ter o coração aberto ao miserável, ao necessitado’. Os necessitados somos nós, pecadores todos, sem exceção. Nesta noite de Natal, Deus abre seu coração, rico de misericórdia (Ef 2,4), e derrama sobre nós todo o seu amor, dando-nos a plenitude de todos os bens, seu Filho, encarnação da misericórdia divina. Misericórdia que é para nós perdão e graça, santificação e vida. Lemos na segunda leitura: “Hoje se manifesta a graça de Deus, fonte de salvação para todos … Jesus Cristo dá-se a si mesmo por nós a fim de resgatar-nos de toda iniquidade e formar para si um povo, que lhe pertença com exclusividade, um povo que seja zeloso na prática do bem” (Tt 2,11.14).
FREI CLARÊNCIO NEOTTI, OFM, entrou na Ordem Franciscana no dia 23 de dezembro de 1954. Durante 20 anos, trabalhou na Editora Vozes, em Petrópolis. É membro fundador da União dos Editores Franciscanos e vigário paroquial no Santuário do Divino Espírito Santo (ES). Escritor e jornalista, é autor de vários livros e este comentário é do livro “Ministério da Palavra – Comentários aos Evangelhos dominicais e Festivos”, da Editora Santuário.
Natal do Altíssimo na terra dos homens
A encantadora fragilidade de Deus
Frei Almir Guimarães
Aquilo que enternece Francisco de Assis é ver a Deus feito menino. É ver a Deus como qualquer recém-nascido a mamar no peito de uma mulher. Até onde Deus chegou!… É a ternura dos membrozinhos em que Deus se quis tornar que Francisco acariciava mentalmente e que lhe punha o coração em balbuceios inefáveis. (Frei David Azevedo, OFM)
♦ Mais uma vez estamos celebrando o Natal do Verbo de Deus na terra dos homens. Tiramos as sandálias dos pés, prostramo-nos diante de uma criança que se remexe nas palhas de uma manjedoura. Só podemos nos abismar diante do nascimento de Deus em nossa terra. Que nunca percamos esse sentimento de assombro diante de algo tão inaudito! Mistério. “Nosso Salvador, que nasceu do Pai quando não havia dias, e por quem foram feitos todos os dias, desejou ter na terra por dia de seu nascimento esse que hoje celebramos” (Santo Agostinho). Será que ainda temos condições de nos extasiar diante desse evento?
♦ Chega à nossa mente tudo em que foi sendo constituído o Natal dentro de nós e fora de nós: um ar diferente, casa arrumada com mais capricho, luzes e pisca-piscas em todos os cantos, vitrines artisticamente enfeitadas, lojas dos bairros mais pobres com bonecas e carrinhos de plástico mesmo assim fazendo os olhinhos das criancinhas cintilarem de um brilho novo, panetones, grandes corais interpretando ternos hinos, canto da “Noite Feliz”. Evocando tudo isso nosso coração se enternece, embora lamentando a perda de consciência do Mistério que está por detrás de tudo.
♦ Mas o que é, de verdade, o Natal? Colocamo-nos diante do insondável mistério da Trindade. Não conseguimos imaginar esse abismo de vida, de amor, de ventura. Uma fornalha de dom, de amor. Fornalha irradiante e irradiadora, incapaz de difundir a não ser caridade. O Pai gerando o Verbo, o Verbo voltando-se para o Pai. Entre o Pai e o Verbo, o Sopro, o Espírito. Deus comunhão de amor. E quando chegou a plenitude dos tempos o Verbo por quem tudo foi criado tornou-se carne e habitou entre nós. “E a Palavra se fez carne e habitou entre nós. E nós contemplamos sua glória, glória que recebe do Pai como Filho Unigênito, cheio de graça e de verdade” (Jo 1,14).
♦ Um abismo de beleza e de amor se aproxima do homem. Por que o homem tão frágil, foi tão elevado? Por que tanta complacência? Por que aquele que sendo de condição divina se torna uma frágil criança? Somente a caridade divina explica esse mistério. Repetimos: a caridade divina, o amor trinitário, o ardor e o amor do Deus uno e trino.
♦ Sempre voltamos a contemplar a singeleza da cena e ao mesmo tempo sua majestade. Isaque, o sírio: “A humildade é a veste de Deus”.
♦ Uma mulher muito jovem e transparente, que diz sim e acolhe a Palavra, torna-se tabernáculo do Altíssimo, casa de Deus. Uma mulher recitadora dos salmos e discípula de Abraão, aquele que foi o homem da fé. Uma mulher que levava as coisas ao fundo do coração.
♦ José, o esposo, o companheiro de Maria, guardião da Sagrada Família, o contemplativo, o silencioso, o que fica perto e marca sua presença precisamente como seu eloquente silêncio.
♦ Os simples, os pastores, os que não têm vez com rebanhos e sua simplicidade encantadora.
♦ E a criança. Criança frágil, e mal e malnascida, carecendo de todos os cuidados, precauções e atenções sem o que não conseguirá sobreviver. A criança que chega traz bondade, estende os braços, suplica nossa atenção. “No Natal Jesus vem a nós nos traços ternos da infância para infundir em nós confiança, com sua doce inocência, vem para despertar em nós a criança e que perto dele podemos voltar a ser” (Paulo VI).
♦ Um cocho de madeira para dormir. Mais tarde uma cruz de madeira para morre. Menino envolto em faixas e Jesus, descido da cruz, envolto de panos mortuários.
Para reflexão
Noite de Natal
Fernando Silva dirige um hospital de crianças em Manágua. Na véspera do Natal ficou trabalhando até muito tarde. Os foguetes espocavam e os fogos de artifício começavam a iluminar o céu quando Fernando decide ir embora. Em casa esperavam-no para festejar. Fez um último percorrido pelas salas, vendo se tudo ficava em ordem e estava nessa quando sentiu que passos o seguiam. Passos de algodão: virou e descobriu que um dos doentinhos estava atrás dele. Na penumbra reconheceu-o. Era um menino que estava sozinho. Fernando reconheceu sua cara marcada pela morte e aqueles olhos que pediam desculpa, ou talvez pedissem licença.
Fernando aproximou-se e o menino roçou-o com a mão:
– Diga para… – sussurrou o menino. Diga para alguém que eu estou aqui.
Eduardo Galeano, “O livro dos abraços“.
Que segredo tem o Natal?
Pergunto-me, Senhor, que segredo tem o Natal? Há um milagre que acontece dentro de nós, só pode ser um milagre, pois é como se a vida se reacendesse. Contemplando o presépio percebo que este é um milagre humaníssimo de Deus suscita aos nossos olhos. Ele amou-nos tanto que os deu o seu próprio Filho. O milagre do Natal assenta sobre este dom absoluto, que nos faz perceber que somos à medida que nos damos. E que a vida renasce, como dádiva, na ponta dos dedos, no olhar, nas palavras.
José Tolentino Mendonça, “Um Deus que dança”, Paulinas, p. 61
São Francisco e o Natal
Mais do que nenhuma outra festividade, Francisco de Assis celebrava com inefável alegria o nascimento do Menino Jesus e chamava de festa das festas o dia em que Deus, feito Menino, se amamentava como todos os filhos do homens. Beijava mentalmente com esfomeada avidez as imagens do Menino que o espírito lhe construía e, dele entranhadamente compadecido, balbuciava palavras de ternura, à maneira das crianças. E o seu nome era para ele como um favo de mel na boca (2Celano 199).
Ainda uma prece
Senhor de ternura e de amor,
eis-me diante de ti, pobre, vazio e disperso.
Nada tenho a te oferecer senão a minha pobreza.
Dá-me a graça de te amar cada dia mais
e, sobretudo, saber que tu me amas.
É a única coisa que te peço.
Tu me amaste de tal forma que quiseste
nascer numa estrebaria querendo assim ser um de nós.
Aumenta cada vez mais em mim o amor por ti
para que assim possa ir ao encontro de meus irmãos,
sobretudo os mais pobres e mais sofredores,
e fazer com que compreendam que tu os ama. Amém.
Pierre Ceyrac, jesuíta, missionário na Índia
FREI ALMIR GUIMARÃES, OFM, ingressou na Ordem Franciscana em 1958. Estudou catequese e pastoral no Institut Catholique de Paris, a partir de 1966, período em que fez licenciatura em Teologia. Em 1974, voltou a Paris para se doutorar em Teologia. Tem diversas obras sobre espiritualidade, sobretudo na área da Pastoral familiar. É o editor da Revista “Grande Sinal”.
Deus entre nós
José Antonio Pagola
O evangelista João, ao falar-nos da encarnação do Filho de Deus, não nos diz nada de todo esse mundo tão familiar dos pastores, do presépio, dos anjos e do Menino Deus com Maria e José. João nos convida a penetrar nesse mistério a partir de outra profundidade.
Em Deus estava a Palavra, a Força de comunicar-se própria de Deus. Essa Palavra pôs em marcha toda a criação. Nós mesmos somos fruto dessa Palavra misteriosa. Essa Palavra agora se fez carne e habitou entre nós.
Tudo isto continua a parecer-nos muito belo para ser verdade: um Deus feito carne, identificado com nossa fraqueza, respirando nosso alento e sofrendo nossos problemas. Por isso continuamos buscando a Deus nos céus, quando Ele está aqui embaixo, na terra, bem perto de nós.
Uma das grandes contradições dos cristãos é confessar com entusiasmo a encarnação de Deus e esquecer depois que Cristo está no meio de nós. Deus desceu ao mais profundo de nossa existência, e a vida continua parecendo-nos vazia. Deus veio habitar no coração humano e sentimos um vazio interior insuportável. Deus veio reinar entre nós e parece estar totalmente ausente em nossas relações. Deus assumiu nossa carne e continuamos sem saber viver dignamente o carnal.
Também entre nós se cumprem as palavras de João: “Veio aos seus e os seus não o receberam”. Deus busca acolhida em nós, mas nossa cegueira fecha as portas a Deus. E, no entanto, é possível abrir os olhos e contemplar o Filho de Deus “cheio de graça e de verdade”. Quem crê, sempre vê algo. Vê a vida envolta em graça e em verdade. Tem em seus olhos uma luz para descobrir, no fundo da existência, a verdade e a graça desse Deus que plenifica tudo.
Estamos ainda cegos? Vemos só a nós mesmos? Nossa vida reflete só as pequenas preocupações que levamos em nosso coração? Deixemos que nosso coração se sinta penetrado por essa vida de Deus que também hoje quer habitar em nós.
JOSÉ ANTONIO PAGOLA cursou Teologia e Ciências Bíblicas na Pontifícia Universidade Gregoriana, no Pontifício Instituto Bíblico de Roma e na Escola Bíblica e Arqueológica Francesa de Jerusalém. É autor de diversas obras de teologia, pastoral e cristologia. Atualmente é diretor do Instituto de Teologia e Pastoral de São Sebastião. Este comentário é do livro “O Caminho Aberto por Jesus”, da Editora Vozes.
Jesus, recado de Deus
Pe. Johan Konings
A liturgia da terceira missa de Natal, a missa do dia, nos apresenta como evangelho o Prólogo do Evangelho segundo João. Nas celebrações de meia-noite e da aurora, a liturgia acentua a humildade do Messias: o presépio, os pastores…. Na liturgia do dia, o acento está na sua eterna glória, o brilho da manifestação de Deus. Esse é o paradoxal mistério de Cristo: a Palavra se tornou carne, humanidade frágil, e exatamente nisso “nós contemplamos sua glória” (Jo 1,14).
“Como é belo ver pelas montanhas os passos do mensageiro que anuncia a paz, noticia a felicidade e traz uma mensagem de salvação: Teu Deus reina” – assim soa a 1ª leitura. Quando Deus reina – através do empenho dos humanos, seus “aliados”-, quando ele tem a última palavra, existe saída. Isso valia para os exilados de Judá, para os quais o profeta entoou seu cântico, e vale também para nós. Por isso, o salmo responsorial exorta: “Cantai ao Senhor um canto novo”.
Mas a manifestação de Deus superou de longe aquilo que o profeta divisou. A mensagem, a palavra da parte de Deus, tornou-se carne, existência humana. Jesus é em pessoa o que Deus nos quer comunicar, desde sempre. A Palavra que é Jesus estava em prontidão junto de Deus desde sempre; aquilo que Deus sempre quis dizer, sua Palavra o veio mostrar tornando-se vida humana no meio de nós (Jô 1, 1.14)
Jesus é a comunicação de Deus, é o que Deus significa para nós; e o que não condiz com Jesus contradiz Deus. O que Jesus fala e faz, Deus é quem o fala e o faz. Quando esse filho do carpinteiro convida os pecadores, é Deus que os chama. Quando censura os hipócritas, é Deus que os julga. Quando funda a comunidade fraterna, é Deus que está presente nela. E quando morre por amor fiel até o fim, é Deus que manifesta seu amor fiel e sua plenitude de vida. Tudo o que Jesus nos manifesta é palavra de Deus falada a nós, palavra de amor eterno.
Há quem pergunte o que Jesus faz enquanto homem e enquanto Deus. Tudo o que faz, ele o faz como homem e como Deus, pois faz tudo por amor até o fim, e Deus é amor. Se se devesse escolher o momento em que Jesus se mostrou mais Deus para nós, seria o momento em que ele foi mais humano, frágil e mortal: sua morte na cruz. Pois aí mostrou com maior nitidez o rosto do Deus-amor. A “Palavra de Deus”, crucificada, nos fala: “Deus é amor” (1 Jo 4, 8-16). A festa da Encarnação não é só Natal, mas também Sexta-feira Santa. O presépio é da mesma madeira da Cruz.
À medida que nós formos novos Cristos, também nossa “carne”, nossa vida e história, será uma palavra de Deus para nossos irmãos e irmãs, e mostrará ao mundo o verdadeiro rosto de Deus: um rosto de amor.
PE. JOHAN KONINGS nasceu na Bélgica em 1941, onde se tornou Doutor em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina, ligado ao Colégio para a América Latina (Fidei Donum). Veio ao Brasil, como sacerdote diocesano, em 1972. Em 1985 entrou na Companhia de Jesus (Jesuítas) e, desde 1986, atua como professor de exegese bíblica na FAJE, Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte. Este comentário é do livro “Liturgia Dominical, Editora Vozes.