Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

“Fratres omnes” Irmãos e irmãs todos

01/10/2020

                                                                                                    Imagem: Giotto (domínio público)

Frei Niklaus Kuster, OFMCap

O título da terceira encíclica do Papa Francisco, com o seu incipit “Irmãos todos”, suscita por vezes fortes reações. Com efeito, Francisco de Assis, aqui citado, dirige-se a todos os crentes – irmãos e irmãs no mundo inteiro. A contribuição seguinte ilustra a fonte que dá o nome à nova encíclica e requer traduções bem cuidadas.

Já semanas antes que a terceira encíclica do Papa Francisco seja assinada em Assis e o seu texto publicado, (1) desencadeou-se um debate sobre o seu título. Na área de cultura alemã, há mulheres que se propõem não ler um texto que se dirige apenas a “todos os irmãos”. As traduções pouco sensíveis ignoram que na citada obra Francisco de Assis se dirige tanto às mulheres como aos homens. O autor medieval defende, como a nova encíclica, uma fraternidade universal. O Papa Francisco destaca uma pérola espiritual da Idade Média, capaz de surpreender as leitoras e os leitores modernos.

Uma citação de Frei Francisco

No anúncio da encíclica, a reação dos meios de comunicação social foi justamente a de se questionar se o Papa Francisco coloca uma citação discriminatória no início da sua terceira encíclica. Como é possível que ele, cujas primeiras palavras públicas após a eleição foram “irmãos e irmãs”, se dirija agora apenas a “todos os irmãos”? Por que, excluindo as mulheres, o incipit exclui metade da Igreja? “Só os irmãos – ou o quê?”, pergunta uma contribuição crítica de Roland Juchem. (2) O diretor do serviço do Vaticano da KNA explica que a nova encíclica começa conscientemente com as palavras do místico medieval de Assis, que foram fielmente traduzidas. Uma vez que Frei Francisco se dirige aos seus frades, a expressão “omnes fratres” deveria ser formulada no masculino. De acordo com esta lógica, contudo, a tradução correta seria “frades todos”! E então o texto seria lido apenas por uma minoria infinitesimal na Igreja. O Papa Francisco começa a sua nova encíclica com uma máxima de sabedoria do seu modelo. Aqueles que, com presumível fidelidade ao texto, insistem numa tradução apenas masculina, não reconhecem o verdadeiro destinatário da coletânea medieval: Francisco de Assis, com a composição final das suas “admoestações”, dirige-se a todas as mulheres e homens cristãos. As traduções para as línguas modernas devem expressá-lo de forma exata e imediatamente compreensível.

Coletânea de sabedorias

Se a encíclica  Laudato si’  no seu incipit citava o Cântico do Irmão Sol  composto pelo Pobrezinho na língua vulgar medieval, a terceira encíclica do Papa refere-se a uma coletânea das suas máximas de sabedoria. A fonte utilizada pelo Papa Francisco nas edições modernas dos escritos franciscanos tem o título de  Admonitiones. A expressão  “admoestações” é redutiva, visto que o total dos 28 ensinamentos espirituais incluem também numerosas bem-aventuranças, um breve tratado e até um cântico à força dos dons  do Espírito. (3) Com efeito, a edição holandesa prefere falar de “Wijsheidsspreuken” (máximas de sabedoria) (4). O facto de serem dirigidas aos frades é válido para a génese das máximas singularmente, não para a coletânea sucessiva. Quando os tradutores se baseiam no facto de que todas as edições-padrão dos escritos franciscanos em todas as línguas do mundo traduzem omnes fratres da máxima citada para a forma masculina, apreendem apenas meia-verdade. Por outras palavras: a tradução literal da frase latina não reflete o pleno significado que o texto pretende expressar na sua forma final! Na edição italiana das Fontes Franciscanas, a sexta admoestação começa com as palavras: “Olhemos atentamente, irmãos todos, para o bom pastor, que enfrentou a paixão da cruz para salvar as suas ovelhas”(5). Já aqui podemos ver que a imagem do pastor e do seu rebanho utilizada no texto inclui toda a Igreja, e não apenas um grupo de frades. A fim de reconhecer o destinatário final da coletânea de textos citada pelo Papa, é necessário distinguir entre o nascimento das diferentes partes do texto e a sua composição final. Nesta última, a palavra fratres alarga-se do pequeno círculo da fraternitas franciscana  a toda a Igreja.

Da peça do puzzle ao quadro completo

A citada alocução provém de uma coletânea que reflete debates espirituais entre os frades menores e as suas conclusões amadurecidos. No seu conjunto, a composição alarga o horizonte para além do pequeno círculo inicial. Cada uma das máximas dirige-se aos frades de Francisco, aos “religiosos” em geral e também a todas as pessoas ao serviço de Deus (servi Dei). Nos últimos anos da sua vida, Francisco de Assis reuniu 28 ensinamentos espirituais bem selecionados para formar um ciclo que conduz a um edifício espiritual e recorda a “casa da Sabedoria” bíblica com as suas “colunas esculpidas” (6). O número simbólico 28 é composto por 4 x 7: quatro indica o mundo e sete a criação de Deus, 28 representa simbolicamente a Igreja como obra de Deus (7). Quem passa sob um pórtico artisticamente arranjado e se limita a olhar só para uma coluna? Para este edifício espiritual estão convidadas todas as pessoas, sem exceção, e com efeito cada palavra na coletânea  dirige-se a todos.

Omnes fratres

Na abertura da coletânea final, a primeira admonitio fala efetivamente da Eucaristia, mas também se dirige de forma programática a todas as filhas e “filhos dos homens”: (8) assim, o texto latino no convidativo  e breve tratado indica que o horizonte da esperança se abre para toda a Igreja e para a todos os membros da humanidade. No seu percurso através da casa da Sabedoria descobrirão um caminho para uma “vida que os torna felizes” (9). De facto, no centro deste ciclo de lições espirituais, Francisco de Assis comenta bem-aventuranças bíblicas, também elas dirigidas a todas as pessoas, acrescentando-lhes dez bem-aventuranças próprias. O Papa Francisco não destaca um único texto, mas toda uma coletânea de textos, já definida por Kajetan Esser como a “Carta Magna” da fraternidade cristã (10). O subtítulo da encíclica deixa claro que ela se dirige, tal como o documento conjunto cristão-islâmico de Abu Dhabi sobre a fraternidade universal, além da própria Igreja, à humanidade: o Papa Francisco escreve “sobre fraternidade e amizade social”, que deve unir, sem qualquer exclusão, todas as pessoas num mundo solidário.

De “frades” para “irmãos e irmãs”

A razão pela qual o Papa Francisco, com a sua visão fraterna da humanidade, se refere justamente ao seu modelo, Francisco de Assis, e coloca uma citação fraterna no início da sua encíclica, pode ser brevemente ilustrada. Os escritos entregues pelo santo contêm uma coletânea de cartas, algumas das quais dirigidas a certos frades (Leão, António, responsáveis pelo governo), outras a toda a fraternitas dos Menores e a todos os fiéis. Uma singular carta circular, ao contrário, alarga o horizonte ao universal e é dirigida “a todos os poderes e cônsules, juízes e regentes em todas as partes do mundo, e a todos os outros a quem esta carta chegar” (11). Nenhum Papa nem imperador do início da Idade Média se dirigiu à humanidade de uma forma tão universal. Na Regra de 1221,  dirigida aos seus frades, Francisco insere uma exortação a toda a humanidade que supera qualquer confim de nação e de religião: não só os fiéis cristãos, nem sequer as pessoas comprometidas a nível eclesial, mas “todos os povos, populações, raças e línguas, todas as nações e todos os homens de todas as partes da terra, que são e serão… todos amamos… o Senhor Deus” (12). O místico alarga os seus horizontes a toda a família humana, na Regra específica para os frades, poucos meses depois de ter chegado ao Egito na Quinta Cruzada e de ter experimentado de forma impressionante, através do encontro com o Islão, que é possível descobrir a sabedoria espiritual e o amor de Deus inclusive fora da própria religião (13). A mesma abertura universal ocorre também com as suas máximas de sabedoria, que nas Admonitiones são unidas num ciclo artístico de breves lições. Nos últimos anos de vida, Francisco insere as que  tinham sido palavras de sabedoria para os seus frades numa composição, dirigida a todos os fiéis. O texto latino não requer qualquer adição nem modificação: a expressão “fratres” utilizada pelos frades inclui também os irmãos e as irmãs carnais ou espirituais, como o faz ainda hoje “irmãos”, “hermanos” e “frères” nas línguas latinas. Hoje as línguas germânicas, ao contrário, distinguem entre “Brüder” (só irmãos) e “Geschwister” (irmãos e irmãs) e também entre “Brüderlichkeit” (sem as irmãs) e “Geschwisterlichkeit” (com as irmãs). Do mesmo modo, a língua inglesa distingue entre “brothers” (masculino) e “siblings” (irmãos e irmãs), e entre “brotherhood” (frequentemente sem as irmãs) e “fraternity” ou “siblinghood” (que inclui todos).

Depois que no início a primeira admoestação inclui todos os “filhos e filhas do homem” na bela casa da Sabedoria, tal destinatário universal também se deve referir a fratres  da sexta admonitio: dirige-se a todas as mulheres e homens cristãos, e diz respeito a todas as pessoas na terra.

Sobre o nascimento da fonte citada

No que diz respeito à coletânea das 28 Admonitionis, as pesquisas franciscanas afirmam o seguinte: cada um dos textos transmitidos deve sintetizar os discursos que originalmente tratavam de questões de vida espiritual e comum no âmbito dos frades. Ao longo do tempo, alguns diálogos foram resumidos por escrito e realçados. Assim, algo semelhante aconteceu com os ditos dos antigos padres e madres do deserto no círculo dos seus seguidores, transmitidos de forma condensada nos Apophthegmata e no Meterikon (14). Também cada um dos ensinamentos de Francisco foi anotado nas situações mais diversas por companheiros capazes de escrever e resumidos na sua essência. No final da sua vida, ele próprio uniu estes resultados de discursos comuns assim recolhidos numa obra completa, na qual os ensinamentos individuais adquiriram uma nova dimensão e uma nova orientação.

Não é por acaso que o primeiro ensinamento começa com uma citação programática das Escrituras: “O Senhor Jesus disse a todos os que o seguem: Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. Os pórticos românicos das igrejas às vezes convidam a entrar no edifício com uma figura de Cristo no tímpano e precisamente esta mesma citação num livro aberto. No edifício espiritual das Admonitiones, após dois ensinamentos preparatórios, dez máximas de sabedoria traçam o caminho rumo ao lugar da ceia. A elas seguem-se quatro bem-aventuranças bíblicas e outras dez bem-aventuranças franciscanas, antes que dois ensinamentos conclusivos preparem o regresso à vida quotidiana. Assim, une-se cada ensinamento para compor uma casa espiritual de sabedoria que se assemelha a uma basílica: à esquerda da nave doze colunas conduzem, como “caminho da verdade” para a área do altar, cujo baldaquino é sustentado por quatro colunas finas e define o lugar da comunhão íntima com Deus. Depois, do outro lado da nave, doze colunas reconduzem para o portal e marcam o “caminho da vida”. Caminho – veritas – vida são as chaves da composição de uma obra completa, cujas palavras individuais, separadas do contexto em que nasceram, se tornam uma mensagem para todos os cristãos, homens e mulheres. Qualquer pessoa interessada na coletânea das Admoestações da qual o Papa Francisco extrai o incipit da sua encíclica encontrará proximamente uma análise da composição e da mensagem completa numa coletânea especializada da PTH Münster (15).

Conclusão

Com o incipit da sua terceira encíclica, o Papa Francisco refere-se expressamente a Francisco de Assis. O padroeiro do seu pontificado  fala de uma fraternidade universal que, no Cântico do Irmão Sol, se alarga a todas as pessoas e a todas as criaturas. Entre as cartas circulares do santo há uma que se dirige de modo universal a todas as pessoas da terra. Até na Regra da Ordem de 1221, composta para os frades franciscanos, ele dirige-se a todas as pessoas e a todos os povos com uma exortação a amar juntos o único Deus. A sexta admonitio citada pelo Papa resume, a partir do contexto em que nasceu, os resultados de um discurso espiritual no âmbito dos Frades Menores. O ensinamento espiritual que inspira o incipit da nova encíclica é, contudo, inserido por frei Francisco no final da  própria vida como uma coluna na “casa da Sabedoria”, onde os capitéis formam esculturas e correspondem entre si. A percorrer este edifício espiritual não são convidados apenas os irmãos, mas também todos os crentes e cada pessoa da terra. Portanto, “omnes fratres” ou “irmãos todos” da encíclica deve ser traduzido como citação de São Francisco, de tal forma que todos os cristãos, homens e mulheres, se sintam concernidos. O destinatário da citada coletânea de textos alarga-se a “todos os irmãos e irmãs” que se encontram nos espaços eclesiais reais e ideais, estendendo-se a todas as pessoas da terra. Nesta abertura, também o Papa Francisco se dirige com a sua encíclica a todas as pessoas da terra.


Niklaus Kuster (1962) é um frade capuchinho suíço, licenciado em teologia e conhecido estudioso de São Francisco. Ensina História da Igreja na Universidade de Lucerna e Espiritualidade franciscana nos institutos superiores da ordem em Münster (PTH) e em  Madrid (ISEF). Prestou homenagem ao perfil franciscano do Papa Francisco no seu livro: Franz von Assisi. Freiheit und Geschwisterlichkeit in der Kirche, (Verlag Echter) Würzburg (2ª edição) 2019.


Notas

1) A assinatura da encíclica terá lugar de forma muito simbólica na véspera da festa de São Francisco, 3 de outubro de 2020, na basílica do santo em Assis.

2) A contribuição foi publicada online em 8 de setembro de 2020: “Titel der neuen Papst-Enzyklika: Nur die Brüder – oder wie?”: https://www.kath.ch/newsd/titel-der-neuen-papst-enzyklika-nur-die-brueder-oder-wie/

3) Edição italiana: Fonti Francescane. Nova edição, por Ernesto Caroli, Pádua 2004, 107-118 (= FF 141-178). Edição oficial alemã: Dieter Berg / Leonhard Lehmann (ed.), Franziskus-Quellen. Zeugnisse des 13. und 14. Jahrhunderts zur Franziskanischen Bewegung, vol. 1, Kevelaer 2009, 45-55.

4) Gerard Pieter Freeman /Hubert J. Bisschops / Beatrijs Corveleyn / Jan Hoeberichts / André Jansen (ed.), Franciscus van Assisi. De Geschriften, Haarlem 2004, 108-122.

5)  Fonti Francescane 111 (= FF 155).

6) Cf. Pr 9, 1: “A sabedoria construiu a sua casa, ela esculpiu as suas sete colunas”; cf. Pr 14, 1 e 24, 3-4.

7) Sobre o simbolismo das Admonitionis como Igreja ideal aberta a todos: Theo Zweerman / Edith Van den Goorbergh, Franz von Assisi – gelebtes Evangelium. Die Spiritualität des Heiligen für heute, Kevelaer 2009, 69-71.

8) Admonitio I, 14 com o Salmo 4, 3 na versão da Vulgata: “filii hominum”.

9) A coletânea das admoestações como percurso de ensinamento requintadamente composto e edifício espiritual, é explicada por Zweerman / Van den Goorbergh, Gelebtes Evangelium, 62-94.

10) cf. Niklaus Kuster, Franziskus. Rebell und Heiliger, Freiburg (4ª edição) 2016, 150-154; original: Kajetan Eßer, Anfänge und ursprüngliche Zielsetzungen des Ordens der Minderbrüder, Leiden 1966, 273-276.

11) Fonti Francescane, 146 (= FF 210)

12) Fonti Francescane 86-87 (= FF 68-69)

13) cf. Niklaus Kuster, Spiegel des Lichts. Franz von Assisi – Prophet der Weltreligionen (Franziskanische Akzente 22), Würzburg 2019.

14) Los escritos de Francisco y Clara de Asís. Textos e apuntes de lectura, ed. da Julio Herranz – Javier Garrido – José Antonio Guerra, Oñati 2001, 40; Pietro Messa – Ludovico Profili, Il Cantico della Fraternità. Le ammonizioni di frate Francesco d’Assisi, Assis 2003; Francisci Assisiensis Scripta – Francesco d’Assisi: Scritti, critice edidit Carolus Paolazzi, Grottaferrata 2009, 346.

15) Niklaus Kuster, “Weisheitssprüche des Franz von Assisi. Zum Charakter der Admonitiones und zur Komposition ihrer Sammlung”, in: Möllenbeck, Thomas / Schulte, Ludger (ed.), Weisheit – Spiritualität für den Menschen, Münster 2021 (será publicado na primavera).


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