Frei Ludovico Garmus, OFM
Desde que o ser humano existe sobre a terra está relacionado com os outros seres vivos e interage com eles. Com sua inteligência e tecnologia, pela prática da agricultura ou construção de cidades, o homem modifica o meio ambiente, muitas vezes em prejuízo de outros seres vivos. Os escritos bíblicos recolhem a experiência desta convivência harmoniosa ou violenta com a natureza. O Papa Francisco, na Laudato Si’, cita cerca de 60 passagens bíblicas que iluminam a relação do ser humano com o Criador e a criação. Nos textos citados destacam-se os temas do cuidado da criação, das leis de proteção ambiental e do louvor a Deus pela beleza de suas criaturas. Neste pequeno artigo nos ocuparemos apenas do cuidado da criação.
Na Bíblia, o cuidado da criação aparece como a tarefa principal do ser humano. Está ligado à fé num único Deus, criador do universo. Os onze primeiros capítulos do livro do Gênesis mostram como o povo de Israel imaginava a criação do mundo, a formação dos diferentes povos, a origem do mal, a corrupção da humanidade, o extermínio pelo dilúvio e a posterior origem do povo de Israel. As narrativas bíblicas da criação assemelham-se aos mitos de criação do antigo Egito e da Mesopotâmia.
Criação: Deus prepara a “casa comum” para abrigar a vida
Usando uma linguagem ‘ecológica’, as obras da criação em Gn 1 podem ser consideradas como várias etapas em que Deus cria ambientes favoráveis à vida e, depois, os enche de seres vivos. No primeiro dia, Deus cria a luz e a separa das trevas (v. 3-5), para distinguir entre dia e noite, e propiciar a vida diurna e noturna. No segundo dia, Deus cria o firmamento (céu) para separar as águas de cima do firmamento das águas debaixo do firmamento (v. 6-8). Em seguida, reúne as águas e as chama “mar”. “E Deus viu que era bom”, porque assim preparava dois ambientes, a água e a terra firme, para semeá-los de vida. No terceiro dia (v. 11-13), Deus faz brotar da terra todo tipo de plantas, capazes de produzir sementes e frutos de acordo com sua espécie. E novamente “Deus viu que era bom”, porque assim estava preparando o alimento (v. 29-30) para todos os seres vivos que haveria de criar. No quarto dia (v. 14-19), Deus cria o sol, a lua e as estrelas para regular o calendário e as festas dos homens, e organizar a vida dos seres vivos que se alimentam de dia ou de noite.
Até o quarto dia, Deus havia preparado os ambientes para os seres vivos em geral. A partir do quinto dia, Deus preenche cada ambiente, a água, o ar e a terra firma, com seres vivos. No quinto dia (v. 20-23), Deus cria todo tipo de peixes que povoam as águas e de aves que voam pelos ares, debaixo do firmamento, e os abençoa para serem fecundos; isto é, torna-os co-criadores da vida. No sexto dia (v. 24-31), Deus cria todo tipo de animais, domésticos e selvagens, “e viu que era bom”. A última das criaturas a ser criada no sexto dia é o ser humano e a narrativa ganha uma solenidade especial: “Façamos o ser humano à nossa imagem e segundo nossa semelhança, para que domine sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todos os animais selvagens e todos os répteis sobre a terra” (v. 26). O ser humano foi criado macho e fêmea, como os peixes das águas, os animais da terra e as aves do céu. Todos receberam de Deus a bênção para gerar a vida, cada um segundo a sua espécie. Assim, Deus tornou todos os seres vivos co-criadores na perpetuação da vida de cada espécie. O ser humano é criado junto com as outras criaturas, interage e convive com elas.
Domínio ou cuidado da criação?
O ser humano, diversamente das outras criaturas, foi criado à imagem e semelhança de Deus e dotado de inteligência. Recebeu de Deus o mandato de “submeter” a terra e “dominar” as demais criaturas (Gn 1,26-28). Este mandato divino, porém, não significa um domínio absoluto sobre as outras criaturas (cf. Laudato Si’, 67). A fé nos diz que Deus colocou o ser humano como “mordomo” de sua “casa”, o planeta Terra. Ele é o responsável, ou cuidador de toda a vida que nela há. “Os céus são os céus do Senhor, mas a terra ele a deu aos seres humanos” (Sl 115,16). O ser humano é o mordomo e cuidador, mas não o dono da terra nem de suas criaturas. A terra, com todas as criaturas, pertence a Deus: “Ao Senhor pertence a terra e quanto ela contém, o mundo e quantos nela habitam” (Sl 24,1; Dt 10,14).
Há que se prestar atenção aos dois termos de Gn 1,28, “submeter” e “dominar”, que, por vezes, foram mal compreendidos pelo Ocidente cristão, como pretexto para espoliar a natureza. Os termos foram entendidos como se fosse uma permissão divina do uso da violência sobre a natureza e a humanidade. No passado, esse pretexto pode ter servido para exterminar povos e culturas indígenas e hoje, mal-entendido, ameaça a vida em nossa Mãe Terra. “Submeter” ou “subjugar” (em hebraico kabas) significa tomar posse, proteger, amparar (Sl 8,7; Js 18,1). Não indica nenhum poder tirânico sobre a terra e suas criaturas. Da mesma forma, o termo “dominar” (radah), em Gn 1,28, aponta para o ideal dos reis do antigo Oriente Médio, que se consideravam pastores de seu povo. “Dominar”, neste sentido, equivale ao caminhar do pastor com seu rebanho em busca de fontes de água e alimento, protegendo e cuidando das ovelhas. Jamais uma ameaça. Para indicar o domínio violento ou tirânico, o texto bíblico usa duas palavras: “dominar com violência” (radah beparek). O profeta Ezequiel denuncia os reis de Israel e Judá que dominaram o povo com dureza e brutalidade (Ez 34,4). Por sua vez, a Lei proíbe que o hebreu, tornado escravo por dívida, seja “dominado com dureza” (Lv 25,46).
O ser humano como jardineiro de Deus
O cuidado da criação fica mais claro na segunda narrativa da criação (Gn 2,4b-25). Na primeira narrativa da criação Deus fez brotar da terra todo tipo de vegetação, plantas e árvores (Gn 1,11-13) e fez a terra produzir todo tipo de animais domésticos e selvagens. Mas o ser humano Deus o criou à sua imagem a semelhança (1,20-27). Na segunda narrativa, porém, o ser humano está profundamente ligado à terra e ao que nela vive. Ele é modelado por Deus a partir do pó da terra (’adamah) e recebe a vida do sopro divino para cuidar da terra como agricultor (Gn 2,4b-7). O próprio Deus planta um jardim com todo tipo de árvores e frutos saborosos. Deste jardim plantado no Oriente nasciam três grandes rios que irrigavam toda a região do Oriente Médio e lhe davam fertilidade. Depois de ter preparado tudo com carinho, Deus colocou o ser humano no jardim que havia plantado, “para que o cultivasse e guardasse” (2,8-17). “Cultivar” é o trabalho do agricultor que da terra tira o seu sustento, enquanto “guardar” equivale a proteger, cuidar, preservar e velar (Laudato Si’, 67). Deus fez o ser humano do pó da terra fértil, plantou nela um jardim e colocou o ser humano para cuidar dele. Mas lhe faltava uma verdadeira companhia. Por isso, o narrador bíblico prossegue: “E o Senhor Deus disse: ‘Não é bom que o ser humano esteja só. Vou fazer-lhe uma auxiliar que lhe corresponda” (2,18). Primeiro, Deus formou da mesma terra animais de toda espécie e os apresentou ao ser humano. Mas o ser humano apenas lhes deu nomes e os classificou em três espécies: animais domésticos, pássaros e animais selvagens, de acordo com a relação que com eles tinha. Mas continuava sem uma verdadeira companhia. Deus, então, colocou o ser humano num sono profundo, tirou dele uma costela, transformou-a em mulher, para apresentá-la ao ser humano. Então, encantado, ele a vê como um espelho seu e exclama: “Desta vez, sim, é osso dos meus ossos e carne da minha carne”. E o autor sagrado acrescenta: “Ela será chamada mulher porque foi tirada do homem”.
Em Gn 1,26-28, Deus criou o ser humano à sua imagem e semelhança, como macho e fêmea em vista da procriação, com a missão de cuidar das outras criaturas. Em Gn 2,4b-25, o narrador, usando uma linguagem mitológica, deixa claro que o ser humano é comunitário. A mútua carência do ser humano foi resolvida. O ser humano completo é homem e mulher, ele e ela; cada um é auxiliar do outro e complemento um do outro. Juntos recebem a tarefa de cultivar e guardar o jardim de Deus. Responsáveis pelo jardim de Deus, o homem e a mulher não vivem numa comunhão isolada, mas estão em comunhão com todas as outras criaturas. Como as plantas e os animais, o homem e a mulher estão ligados profundamente com a terra, a água e com a árvore da vida (4,7). No jardim do Senhor, o homem e a mulher viviam em harmonia com a terra, com os animais e com Deus, que costumava passear no seu jardim. Mas, quando o homem e a mulher, desejosos de serem como Deus, desobedecem à proibição de comer da árvore do conhecimento do bem e do mal (2,9.17), rompe-se a relação harmoniosa com Deus. As relações entre homem e mulher ficam estremecidas. A mulher é dominada pelo homem e dará à luz os filhos com muitas dores. Por causa do pecado, a terra é amaldiçoada e deixa de ser generosa com o trabalho do homem, que só com muito suor colherá seus frutos. O homem e a mulher são expulsos do jardim de Deus (Gn 3,1-24) e a violência se espalha na família. Caim não cuida de seu irmão Abel (4,9) e o mata por inveja (Gn 4,1-16). Os descendentes de Caim constroem cidades e inventam a cultura. Mas a violência se perpetua a ponto de Lamec dizer: “Se Caim for vingado sete vezes, Lamec o será setenta e sete vezes” (4,17-24). A violência e a corrupção cresceram tanto que, por fim, Deus decide exterminar pelo dilúvio a humanidade, os animais, répteis e as aves que criou (Gn 6,5-7.13).
Eis o que pode acontecer em nossos dias, porque não cuidamos de nossa “casa comum”, não cuidamos do nosso irmão e não respeitamos a natureza como criação de Deus. A violência contra a dignidade da pessoa humana repercute como violência contra as criaturas de nossa irmã e mãe Terra, e vice-versa. O Papa Francisco convida a nós, cristãos, e a todas as pessoas de boa vontade a cuidarmos de nossa “casa” comum e de toda a vida que nela Deus continua criando.
Frei Ludovico Garmus é doutor em Exegese Bíblica e participou da tradução da Bíblia pela Editora Vozes e tem diversos livros publicados, sendo “A paixão e Ressurreição de Jesus – Leitura e Meditação a partir dos Evangelhos” (2012), o mais recente.