Um livro – intitulado “La dittatura dell’economia” (Edizioni Gruppo Abele) – reúne alguns dos discursos mais atuais e importantes do Papa Francisco sobre o nosso tempo, sobre temas como globalização, trabalho, economia, capitalismo, vidas às margens da sociedade, ecologia e cuidado do planeta Terra. Neles, o papa se posiciona contra a economia dominante, para afirmar a defesa da humanidade e do seu futuro.
O livro foi organizado por Ugo Mattei, especialista em bens comuns, declaradamente agnóstico, cátedra Alfred e Hanna Fromm de Direito Internacional e Comparado da Universidade da Califórnia e professor de Direito do Hastings College of the Law, também na Califórnia, e da Universidade de Turim, na Itália. Mattei também contribui com um artigo em que comenta os textos papais escolhidos.
O jornal Il Fatto Quotidiano, 10-03-2020, publicou um trecho de um dos textos de Francisco. A tradução é de Moisés Sbardelotto (www.ihu.unisinos.br)
Eis o texto.
Sempre se verificou a intervenção do ser humano sobre a natureza, mas, por muito tempo, ela teve a característica de acompanhar, de secundar as possibilidades oferecidas pelas próprias coisas. Tratava-se de receber o que a realidade natural por si permitia, como que estendendo a mão. Mas, agora, o que interessa é extrair o máximo possível das coisas por imposição da mão humana, que tende a ignorar ou a esquecer a própria realidade do que tem à sua frente.
Por isso, o ser humano e as coisas deixaram de se dar amigavelmente a mão, tornando-se concorrentes. Daí passa-se facilmente à ideia de um crescimento infinito ou ilimitado, que tanto entusiasmou os economistas, os teóricos das finanças e da tecnologia. Isso pressupõe a mentira acerca da disponibilidade infinita dos bens do planeta, que leva a “espremê-lo” até ao limite e para além do limite.
Trata-se do falso pressuposto de que “existe uma quantidade ilimitada de energia e de recursos a serem utilizados, que a sua regeneração imediata é possível e que os efeitos negativos das manipulações da natureza podem ser facilmente absorvidos”.
Assim podemos afirmar que, na origem de muitas dificuldades do mundo atual, está principalmente a tendência, nem sempre consciente, de elaborar a metodologia e os objetivos da tecnociência segundo um paradigma de compreensão que condiciona a vida das pessoas e o funcionamento da sociedade. Os efeitos da aplicação desse modelo a toda a realidade, humana e social, constatam-se na degradação do ambiente, mas esse é apenas um sinal do reducionismo que afeta a vida humana e a sociedade em todas as suas dimensões.
É preciso reconhecer que os produtos da técnica não são neutros, porque criam uma trama que acaba condicionando os estilos de vida e orientam as possibilidades sociais na direção dos interesses de determinados grupos de poder. Certas escolhas, que parecem puramente instrumentais, na realidade são escolhas que dizem respeito ao tipo de vida social que se pretende desenvolver.
Não é possível pensar que seja possível sustentar outro paradigma cultural e servir-se da técnica como um mero instrumento, porque hoje o paradigma tecnocrático tornou-se tão dominante que é muito difícil prescindir dos seus recursos, e é ainda mais difícil utilizar os seus recursos sem ser dominados pela sua lógica. Tornou-se contracultural escolher um estilo de vida com objetivos que possam ser, pelo menos em parte, independentes da técnica, dos seus custos e do seu poder globalizante e massificador.
De fato, a técnica tem tendência a fazer com que nada fique fora da sua lógica férrea, e “o homem que é o seu protagonista sabe que, em última análise, não se trata nem de utilidade, nem de bem-estar, mas de domínio; domínio no sentido extremo da palavra”. (…) Reduzem-se assim a capacidade de decisão, a liberdade mais autêntica e o espaço para a criatividade alternativa dos indivíduos.
O paradigma tecnocrático tende a exercer o seu domínio também sobre a economia e a política. A economia assume todo desenvolvimento tecnológico em função do lucro, sem prestar atenção a eventuais consequências negativas para o ser humano. As finanças sufocam a economia real. Não se aprendeu a lição da crise financeira mundial e, com muito lentidão, aprende-se a lição da deterioração ambiental. Em alguns círculos, defende-se que a economia atual e a tecnologia resolverão todos os problemas ambientais, do mesmo modo que se afirma, com uma linguagem não acadêmica, que os problemas da fome e da miséria no mundo serão resolvidos simplesmente com o crescimento do mercado.
Não é uma questão de teorias econômicas, que hoje talvez já ninguém se atreva a defender, mas sim da sua instalação no desenvolvimento concreto da economia. Aqueles que não afirmam isso com palavras defendem isso com os fatos, quando não parecem se preocupar com um justo nível da produção, uma melhor distribuição da riqueza, um cuidado responsável do ambiente ou com os direitos das gerações futuras. Com o seu comportamento, afirmam que é suficiente o objetivo da maximização dos ganhos. Mas o mercado, por si só, não garante o desenvolvimento humano integral e a inclusão social.
Enquanto isso, temos uma espécie de “superdesenvolvimento dissipador e consumista que contrasta, de modo inaceitável, com perduráveis situações de miséria desumanizadora”, mas não se criam, com celeridade suficiente, instituições econômicas e programas sociais que permitam aos mais pobres terem acesso regular aos recursos básicos. (…)
A especialização própria da tecnologia implica uma notável dificuldade para se ter um olhar de conjunto. A fragmentação do saber realiza a sua função no momento de se obter aplicações concretas, mas muitas vezes leva a perder o sentido da totalidade (…). Isso impede de identificar caminhos adequados para resolver os problemas mais complexos do mundo atual, sobretudo os do ambiente e dos pobres, que não podem ser enfrentados a partir de um único ponto de vista ou por um único tipo de interesses. Uma ciência que pretenda oferecer soluções para as grandes questões deveria levar em conta tudo o que o conhecimento produziu nas outras áreas do saber, incluindo a filosofia e a ética social. Mas esse é um hábito difícil de desenvolver hoje. Por isso também não se consegue reconhecer verdadeiros horizontes éticos de referência. A vida passa a ser um abandonar-se às circunstâncias condicionadas pela técnica, entendida como o principal recurso para interpretar a existência.
Na realidade concreta que nos interpela, aparecem diversos sintomas que mostram o erro, como a degradação ambiental, a ansiedade, a perda do sentido da vida e da convivência social. Demonstra-se, assim, mais uma vez, que “a realidade é superior à ideia”.
A cultura ecológica não pode se reduzir a uma série de respostas urgentes e parciais aos problemas que vão aparecendo em torno da degradação ambiental, do esgotamento das reservas naturais e da poluição. Deveria ser um olhar diferente, um pensamento, uma política, um programa educativo, um estilo de vida e uma espiritualidade que deem forma a uma resistência perante o avanço do paradigma tecnocrático. De outro modo, até mesmo as melhores iniciativas ecologistas podem acabar encerradas na mesma lógica globalizada. Buscar apenas um remédio técnico para cada problema ambiental que surge é isolar coisas que, na realidade, estão interligadas e esconder os verdadeiros e mais profundos problemas do sistema mundial.
No entanto, é possível voltar a ampliar o olhar, e a liberdade humana é capaz de limitar a técnica, orientá-la e colocá-la a serviço de outro tipo de progresso mais saudável, mais humano, mais social, mais integral. De fato, produz-se em algumas ocasiões a libertação do paradigma tecnocrático reinante.
Por exemplo, quando comunidades de pequenos produtores optam por sistemas de produção menos poluentes, defendendo um modelo de vida, de alegria e de convivência não consumista. Ou quando a técnica se orienta prioritariamente para resolver os problemas concretos dos demais, com a paixão de os ajudar a viver com mais dignidade e menos sofrimento. Também quando a intenção criadora do belo e sua contemplação conseguem superar o poder objetificante em uma espécie de salvação que acontece no belo e na pessoa que o contempla.
A autêntica humanidade, que convida a uma nova síntese, parece habitar no meio da civilização tecnológica, de forma quase imperceptível, como a neblina que filtra por baixo da porta fechada. Será uma promessa permanente que, apesar de tudo, brota como uma obstinada resistência daquilo que é autêntico?
Por outro lado, as pessoas parecem já não crer em um futuro feliz, nem confiam cegamente em um amanhã melhor a partir das condições atuais do mundo e das capacidades técnicas. Tomam consciência de que o avanço da ciência e da técnica não equivale ao avanço da humanidade e da história, e vislumbram que são outros os caminhos fundamentais para um futuro feliz. Não obstante, também não se imaginam renunciando às possibilidades que a tecnologia oferece.
A humanidade modificou-se profundamente, e o somatório de constantes novidades consagra uma fugacidade que nos arrasta à superfície, em uma única direção. Torna-se difícil parar para recuperarmos a profundidade da vida. Se a arquitetura reflete o espírito de uma época, as megaestruturas e as casas em série expressam o espírito da técnica globalizada, em que a permanente novidade dos produtos se une a um tédio enfadonho. Não nos resignemos a isso, nem renunciemos a nos perguntar pelos fins e pelo sentido de tudo. Caso contrário, apenas legitimaremos a situação vigente e precisaremos de mais sucedâneos para suportar o vazio.
O que está ocorrendo põe-nos perante a urgência de avançar em uma valente revolução cultural. A ciência e a tecnologia não são neutras, mas podem envolver, desde o início até o fim de um processo, diversas intenções e possibilidades que podem se configurar de várias maneiras. Ninguém pretende voltar à era das cavernas, mas é indispensável abrandar a marcha para olhar a realidade de outra maneira, recolher os avanços positivos e sustentáveis e, ao mesmo tempo, recuperar os valores e os grandes objetivos arrasados por um desenfreio megalomaníaco.
- Papa Francisco. La dittatura dell’economia (org. Ugo Mattei). Edizioni Gruppo Abele.