Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Março 2013

I. LEITURA ESPIRITUAL

O silêncio da alvorada

 

Sem estardalhaço,  a Vida vence a morte

 

Nossa alma como um pássaro escapou do laço
que lhe armara o caçador;  o laço arrebentou-se  de repente,
e assim nós conseguimos libertar-nos  (Sl 123(124), 7). 

 

1. Há coisas importantes em nossa trajetória existencial, em nossa aventura humana  e coisas  nem tão importantes. Na vida de seguimento de Cristo, sempre de novo nos posicionamos diante da  Ressurreição de Jesus, do profeta da Galileia.  Ano após ano, temos a ocasião de mergulhar no mistério da paixão, morte e ressurreição do  Senhor. Quando chega a Semana das Semanas e o Tríduo Pascal, abeiramo-nos da única realidade fundamental de nossas vidas:  morremos com Cristo e com ele ressuscitamos. Nas cerimônias da Semana Santa, não contemplamos um espetáculo, mas  participamos do drama.  Somos protagonistas com Jesus. Andando pelos caminhos da vida, sentando-nos à mesa com confrades,  acolhendo o mistério da enfermidade, levantando os caídos, nem sempre fiéis à vida de ressuscitados, somos criaturas novas com e em Cristo. Talvez pudéssemos dizer sem medo de errar:  “Meu nome é Ressurreição”.  Há coisas importantes na vida e coisas nem tão importantes.

2. Contemplamos a Páscoa do Senhor que é nossa Páscoa.  Éloi Leclerc, frade francês que viveu o terror dos campos de concentração nazistas, tem reflexões profundamente tocantes a respeito da ressurreição de Jesus.  Do seu  livro O Reino Escondido, publicado em versão portuguesa pela Editorial Franciscana de Braga, Portugal,  haurimos as reflexões que seguem. O original francês data de 1987.  “Ressurreição secreta: gosto deste casamento de palavras que se encontra em Pascal.  A ressurreição de Jesus pode qualificar-se de secreta, porque se deu sem testemunhas, no silêncio e na escuridão da noite. Secreta como os grandes começos, as nascentes, como o próprio ato criador. Não é o esplendor do meio dia, mas o despontar da alva, a luz virginal da aurora”  ( Leclerc, p. 191).

3. Situamo-nos últimos  50 anos  num mundo marcado pela incredulidade. Homens e mulheres praticamente vivem como se Deus não existisse. Na opinião de Leclerc, tal incredulidade, em nossos tempos, tem como motivo uma constatação dolorosa:  a do silêncio e da ausência de Deus. O homem moderno pode até não pôr em dúvida a existência de Deus, mas duvida que tal mundo duro, violento, injusto e desumano seja obra de Deus.  Mundo que grita a ausência de Deus: guerras, campos de concentração, extermínios, lutas fratricidas, experiência da fome, do abandono, de filhos que matam os pais, de  frios assaltos com morte, de chacinas anunciadas a cada manhã nos noticiários radiofônicos matutinos.  O inferno não está num tempo depois, mas nesse agora.

4. Leclerc fala da experiência que o homem faz do silêncio de Deus. O franciscano francês experimentou esse mutismo de Deus nos campos de concentração da Segunda Guerra Mundial.  E.Wiechert, romancista alemão, que também conheceu a tragédia dos campos de concentração, escreve: “O homem inerme estava sozinho.  Já passara o tempo da infância, em que estendia a mão para agarrar outra mão, fosse ela a da mãe, a da lei ou de Deus. É claro que se podia estender a mão, mas só se fosse para o vazio. Todas as vítimas desses anos tinham estendido a mão até o último segundo, tinham gritado ou rezado debaixo da forca, ou do machado, ou da tortura. Ninguém agarrava essa mão. Até na morte ela continuava estendida, aberta, encarquilhada, isolada” (Missa sine nomine, citação de Leclerc).

5. Certa feita,  5000 homens deviam ser transportados para Dachau. Um outro autor assim descreve essa ausência ou silêncio de Deus diante de trágicas situações: “Foi destacado um grupo de cerca de 5000 homens em direção à estação de Weimar, onde se efetuaria o embarque para vagões de mercadorias e vagões cisternas, à razão de 70 a cento e tal por vagão. A viagem se realizou nas condições  mais atrozes.  Mortos de sede e quase sem alimento, maltratados  pelos SS, os sobreviventes chegaram a Dachau  a 28 de abril de 1945, após uma odisseia de 20 dias.  Dos 5000 restavam apenas 1200!”  (P. Berben, citado por Leclerc). Os prisioneiros eram empilhados a ponto de não poderem dormir, esmagados, ensopados de sangue, constantemente espancados… Empapados de sangue e de dejetos. Era o inferno. Onde estava Deus? Por que esse silêncio?

6. Esta experiência dos campos de concentração faz-nos pensar nas  grandes concentrações urbanas:  pessoas morando miseravelmente, tomando conduções em péssimo estado, viajando horas e horas para chegar o local do trabalho,  tendo filhos mortos por balas perdidas, ou famílias com meninos que se drogam à saciedade, namoradas liquidadas, corpos desaparecidos,  torturas, meninas e meninos abusados  por adultos inconsequentes. Grandes concentrações urbanas, sem alma, sem esperança,  sem Deus. Também aí, dia após dia, o homem sofre e morre sozinho, abandonado. Onde está  Deus?

7. Outrora, a experiência da ausência de Deus estava reservada a uma elite: aos místicos e aos santos. Hoje, tornou-se  coisa banal. Na noite da morte em que  Deus se cala, que luz, que esperança traz a Boa Nova? Leclerc afirma literalmente:  “ O impacto desta pergunta foi que me levou a reler os evangelhos. E a conclusão a que cheguei é que a mensagem de Jesus se dirige em primeiro lugar àqueles que vivem uma situação de abandono e distanciamento. Com a condição, bem entendido, de apresentar esta mensagem no que ela tem de propriamente novo: não apenas como uma lei mais perfeita, mas sobretudo como a revelação última de Deus  no âmago de tudo o que grita sua ausência”.

8. O empreendimento de  Jesus culmina com a morte.  Rejeitado pelo seu próprio povo, excluído da Aliança, colocado no rol dos bandidos, Jesus aceita a morte dos malditos por fidelidade à sua missão. Assim, alcança a humanidade perdida, sem esperança, sem  Deus; vê-se mergulhado num despojamento total; experimenta a ausência de Deus e a miséria infinita do homem. Na cruz, a relação íntima de Jesus com o Pai transforma-se numa espécie de ausência a desembocar no vácuo.  Mas aí, no fundo de nossos abismos, no abandono mais completo, traz-nos ele o absoluto de Deus, torna Deus no seio do silêncio. Equiparado aos malfeitores, revela-lhes a inefável proximidade:  “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso…”, declara ele ao companheiro de tortura. Para lhe poder dizer isso, era necessário que antes tivesse experimentado com ele o mais  fundo da miséria e da desgraça humana.  Assim, pelo seu próprio abandono,  Jesus dá a Deus os abandonados de Deus”.  Expressão dura e feliz: com sua paixão e morte  Jesus dá a Deus os abandonados de Deus…

9. Jesus na cruz faz a dolorida experiência do silêncio de Deus, uma das mais trágicas experiências que um homem possa fazer. “O Evangelho é este fato indesmentível, incomensurável: o homem que teve a intuição mais imediata e profunda da intimidade de Deus, e que anunciou ao mundo de forma mais clara, é também aquele que faz a experiência mais tétrica da ausência e do abandono de Deus. E  foi precisamente por esta experiência  que revelou ao mundo uma proximidade divina inultrapassável e indestrutível.  Consciente e convencido do amor de Deus para com os homens, Jesus, para testemunhar esta verdade, não hesitou em se embrenhar no caminho tenebroso do abandono, fazendo assim brilhar  na  noite da a ausência o esplendor do Ágape.

10. A morte de Jesus não foi fatalidade. Jesus não é como um herói antigo a ser arrastado pelo destino.  É livre. Podia recuar  perante o horror da morte e privar-se dessa situação degradante. Fez uma escolha livre. Ele, cuja vida se alimentara  sempre da proximidade inefável de  Deus para cumprir até o fim sua missão, aceitou mergulhar nos nossos infernos humanos. Aceitou esse despojamento que equiparava  o Filho único aos banidos e abandonados. Procedendo assim,  Jesus ultrapassou-se; saiu dos limites dum povo e de uma cultura; abriu-se à condição universal do homem;   desposou esta condição em sua nudez radical. “Felizes os pobres porque deles é o Reino dos céus”.

11. Morte, silêncio de Deus e Jesus, o Filho dileto, aos perdidos e abandonados se revelou:  “Jesus foi tão longe na busca do homem perdido, que também ele se perdeu, na ânsia de testemunhar o amor de Deus aos mais arredados. Mergulhou ele também no silêncio de Deus. Mas pela sua presença, pelo seu grito  no barranco das trevas, o silêncio alcançou uma densidade infinita; tornou-se a linguagem do espantoso. Na revelação de Deus  ao mundo, há um aspecto desconcertante, trágico mesmo, que tem a ver não só com a recusa que o homem lhe pode opor, mas também com a profundidade da comunicação divina.  Não há linguagem  humana capaz de traduzir essa profundidade. As nossas palavras , os nossos conceitos, os nossos raciocínios não estão na medida dessa desmedida. Chega um momento em que a palavra se confunde com o silêncio. Silêncio que não significa um vazio, mas um transbordar de presença. O esplendor do Ágape divino em parte nenhuma bilha tanto como na noite da cruz, no momento em que o silêncio de Deus atinge a máxima densidade. Este silêncio é mais do que o ápice da  Revelação. É o lugar onde se dá e se recebe toda a Revelação.  E necessário saber escutar esse silêncio onde germina e cresce como a alvorada ao fim da noite, a pergunta, a única pergunta:  Quem é Deus para nos amor assim?

TU  RESSURGES

João  20, 1-9

Onde estão, Senhor,
os anjos de luz
que haverão de nos dizer
que nos esperas em outro lugar
e não na escuridão do sepulcro
onde havíamos te fechado?

Onde estão, Senhor,
os companheiros de Emaús
aos quais tu explicaste as Escrituras,
com os quais partilhaste o pão
e que partiram felizes
anunciando ao mundo que tu vives?

Onde estão, Senhor,
os Tomés de hoje,
envergonhados,
porque andaram reclamando sinais
e tristes porque preferiram as vistas e as mãos
em lugar do olhar do coração,
ridículos porque acreditam que basta a razão como serva da fé,
onde estão esses Tomés para dizer-lhes que se enganaram?
Como Maria Madalena, temos também vontade
de te guardar e por isso te colocamos no fundo de nossas igrejas,
nos tabernáculos, no vazio de nossas igrejas fechadas?

Tu, porém, tu ressurges em cada coração a tempo e contratempo.

Ali onde alguém dá o essencial ou o supérfluo, tu ressurges.
No meio de uma multidão que clama em silêncio seu desejo de ser livre, tu ressurges.

No olhar de um moribundo, na alegria dos que se amam,
na doçura da primavera,
nos rastros de sangue, tu ressurges.

Aleluia, para ti, o Ressuscitado,
que vens de alhures ao fundo de nós mesmos
e vais para um outro alhures que ignoramos.

Glória a ti que sempre nos esperas
com a cruz luminosa
nas encruzilhadas dos caminhos.

Revista Prier, n. 120, p. 25

II. JANELA ABERTA

Os discípulos de Emaús e a fé no Ressuscitado

 

Lucas 24,  13-35

 

Dois discípulos abandonam o grupo que se encontra reunido em Jerusalém. Caminham com ar entristecido. Seu estado de ânimo, após a crucificação de Jesus, é de tristeza, desolação e desesperança. Sua fé em Jesus apagou-se.  Já não esperam nada dele. Aparentemente dispõem de todo quando poderia levá-los à fé em Jesus Cristo. Conhecem as  Escrituras de Israel, conviveram com Jesus, ouviram sua mensagem, viram-no atuar como um  ‘profeta poderoso”, ouviram o anúncio pascal das mulheres, que dizem que o crucificado “está vivo” e seus companheiros confirmam que o sepulcro está vazio.  Tudo é inútil.  Sua fé continua morta. Falta-lhes o mais decisivo. Reconhecer a presença do Ressuscitado em suas vidas, encontrar-se pessoalmente com o Cristo vivo.

Embora caminhem tristes e desalentados, aqueles discípulos continuam lembrando  Jesus “ e conversam e discutem sobre ele”.  Enquanto caminham, o Ressuscitado “se aproxima”, se faz presente em sua conversa e se põe a andar com eles. Jesus os convida a recordar  “o que aconteceu”. Os dois discípulos reavivam sua memória e relembram tudo.  Falam ao desconhecido sobre  “Jesus de Nazaré”:  foi “um profeta poderoso em obras e em palavras diante de Deus e de todo o povo”; mas, os dirigentes religiosos o crucificaram; neles havia despertado a esperança de que seria ele que libertaria Israel, mas sua execução  acabou com todas as expectativas; nem a notícia de que Jesus está vivo conseguiu reavivar sua fé nele. Então, Jesus começa a explicar-lhes, à luz das Escrituras, o verdadeiro sentido dos acontecimentos e do destino de paixão e  ressurreição do Messias.

O que Lucas sugere é de grande importância. Lá onde um grupo de pessoas caminha pela vida  procurando descobrir o significado das palavras e obras do profeta Jesus de Nazaré, lá onde se faz memória de sua paixão e se ouve a notícia de sua ressurreição…, ali se faz presente o Ressuscitado. É uma presença real de alguém que nos acompanha  no caminho; uma presença não fácil de captar, porque nossos olhos podem estar incapacitados de conhecê-lo; uma presença que nos convida a reconhecer  que somos “tardos de coração para crer”. Mas é uma presença que vai despertando neles a esperança. Mais tarde confessarão que, enquanto Jesus lhes falava pelo caminho, “seu coração ardia dentro deles”. Um caminho para encontrar-nos  com Cristo Ressuscitado é sentir que nosso coração se inflama com sua presença, é reunir-se em seu nome, ler os evangelhos, procurando descobrir o sentido profundo de suas palavras e seus atos, lembrar sua crucificação e ouvir, a partir de dentro com coração confiante, o anúncio de sua ressurreição.

E não basta isso. É necessária, além disso,  a experiência da ceia eucarística para reconhecer a presença do Senhor ressuscitado, não só como alguém que ilumina nossa  vida com sua Palavra, mas como alguém que nos alimenta em sua Ceia.  É o que sugere o relato de Lucas. Os discípulos pedem ao viajante que não os abandone. E Jesus “entra para ficar com eles”. Os três caminhantes sentam-se à mesa para cear  juntos como amigos e irmãos. Quando Jesus toma o pão, pronuncia a bênção, parte-o e o vai dando “abrem-se lhes o olhos e eles o reconhecem”. É suficiente reconhecer sua presença, mesmo que seja por alguns instantes. A experiência de sentir-se alimentado por ele transforma suas vidas. Agora se dão conta que as esperanças que haviam depositado em Jesus não eram excessivas, mas demasiado pequenas e limitadas. Recuperam o sentido de suas vidas. Retornam  à comunidade dos discípulos e “contam o que lhes aconteceu no caminho e como o reconheceram ao partir do pão”.

Nossa fé em  Cristo ressuscitado  não é só fruto do sinal do sepulcro vazio nem do testemunho do que  viveram a experiência de encontrar-se com ele. É necessário, além disso,  reconhecer a presença de Cristo  vivo em nossa própria vida. Lucas sugere duas experiências privilegiadas  pela comunidade cristã:  a escuta pessoal da Palavra interpretada por  Cristo e em Cristo e experiência da ceia fraterna da eucaristia.

José Antonio Pagola, no livro “Jesus, Aproximação histórica”, Vozes,  p. 559-561

III. CRÔNICA

Casamento: quando dá certo e quando não dá certo

 

A) Esses casais que deram certo

Há pessoas que afirmam de pé juntos que casamento é loteria, questão de sorte.  Pode dar certo e pode dar errado. É coisa de sorte, de tirar o bilhete premiado. Na verdade, um casamento bem-sucedido não é apenas questão aleatória.  Via de regra, as uniões duradouras são resultado de escolha bem feita, pensada, pesada, não açodada. Há pares que fizeram projeto de vida conjugal e familiar com sabedoria e bom senso e foram tentando realizá-lo ao longo do tempo na perseverança e na persistência do bem querer. Insisto: na persistência do bem-querer.  Tais casamentos conheceram, com toda evidência, necessárias reorientações de rotas feitas ao longo da vida com regularidade, paciência e discrição.  Novas compreensões de um e de outro  foram pedindo mudanças, algumas feitas com empenho exigente e suor copioso.  Há relacionamentos que duram muito tempo ou o tempo  de toda a vida.

Lya  Luft,  cronista perspicaz e mulher enredada nas teias da família,  reflete  sobre casamentos que duram em seu livro  O Rio do Meio, Ed. Record, publicado em 1996.  Assim ela escreve: “Algumas relações “dão certo” – por um tempo ou por todo o tempo de uma vida.  Qual será o seu recurso, se tem? Somos realizados ou desgraçados como pobres frutos do acaso, ou poderíamos ter sido senhores de novos rumos?  E se for assim,  em que momento, deixamos as rédeas escorregarem das nossas mãos ou nos foram arrancadas? Casais, às vezes, se completam sem que  um tenha que ser podado nem fazer tamanhas concessões que no fim nada lhe sobre de seu. A vida em comum não empanou o afeto com que falam um do outro, nem a sensação boa que transmitem quando estão próximos. Apesar dos inevitáveis aborrecimentos, lutas e azares, alguma coisa funcionou bem  (..). Foi mais do que sorte; sua intuição lhes ditou a escolha de um parceiro que seria estímulo e abrigo. Eles próprios não sabem a razão desse sucesso. Mas podemos identificá-los quando os vemos juntos, por uma delicadeza, um olhar interessado, a cabeça inclinada sobre a mesa do restaurante, um comentário divertido; pelo riso compartilhado, até mesmo por um mesmo ritmo de andar (…). Masculino e feminino, tão diferentes, somaram-se não se descaracterizando. Surgiu uma espécie de identidade livre do compulsivo desejo de posse que caracteriza relacionamentos  massacrantes.  Não me ame tanto, parece dizer sem palavras,  quem é cercado e cerceado por este tipo de obcecado amor. Amar alguém é deixá-lo livre, escreveram-me num bilhete. Deve ser este o mais difícil e obscuro dos segredos de conviver bem” (p. 74-75)

É possível  que certos e muitos casamentos  possam durar na medida em que, ao longo do tempo da construção, os parceiros foram deixando de lado  todo louco instinto de posse ciumenta, na medida em que os cônjuges foram conjugando o verbo em todos os modos e tempos… te amo, te amava… te amaria… te amarei… que te ame…, na medida em que  foram se estimando terna e respeitosamente, na medida em que as poucos foi se configurando  a preciosa realidade do casal.

Esses casais que deram e dão certo enfeitam a face da terra, concretizando a realidade do amor, afirmam que o bem querer  é possível num mundo de interesse, individualismo e indiferença. Esses casamentos que duram e duram a vida toda, e duram bem, lembram o amor de Jesus pela Igreja, desse Jesus que fez aliança com os homens, aliança duradoura fiel, fecunda. Felizes o casais cristãos que se deram, espero eu, com toda confiança o sacramento do matrimônio.

B) José Pedro de Andrade Mello

José Pedro de Andrade Mello  é um cidadão comum como tantos outros, embora tenha esse nome solene e pomposo, parecido com os nomes de desembargadores, de ministros do supremo tribunal ou de antigos fazendeiros do café que moram nos Jardins da cidade de São Paulo.

José Pedro é um homem comum. Levanta-se cedo, faz a barba e sai para o trabalho. Deixa a família dormindo num minúsculo apartamento desses conjuntos habitacionais. Tem mulher e filhos. Tem um filho com esta mulher e uma menina que ela, a mulher, trouxe de sua primeira união, enteada de José Pedro.  Não tenho certeza alguma que José Pedro de Andrade Mello ame de fato sua mulher, seu filho com ela e a enteada.  Dirige-se ao trabalho, sem marmita, mas com certa pose, cabelo em forma de crista, à la Neymar, unhas tratadas, tênis.  Ele faz serviços gerais num desses bancos estrangeiros que pululam por aí nesse tempo da globalização. Quando passa uma moça bonita, ou nem tão bonita, José Pedro de Andrade Mello lança um olhar  com certa avidez e quase sofreguidão. Ele se distrai com moças e meninas. Procura jogar charme.  Não pensa na mulher que ficou em casa e deve estar saindo para o trabalho de atendente  num posto de saúde da prefeitura. E nesse jogo de olhares e “conversa meio mole”, José Pedro de Andrade Mello conseguiu a atenção de uma funcionária  do banco. Mulher casada e não muito bem amada. Os dois trocavam olhares e pequenas gentilezas. Resolveram marcar encontro para exprimir melhor seus “desejos”…  José Pedro de Andrade Mello não tem onde cair morto, mas está pretendendo manter esse envolvimento paralelamente a seu casamento. E alega que o relacionamento com a mulher não anda bom.. Lembra que não tem compromisso com ela, nem de palavra, nem de Igreja. O problema é que a mulher com a qual anda saindo é casada ou vive com alguém que  está metido no tráfico.  José Pedro de Andrade Mello anda chegando tarde à casa, não tem paciência com as crianças nem com a mulher que anda fortemente desconfiada das aventuras do Andrade Mello. Tudo anda mal: discutem, o relacionamento sexual não existe e não há clareza no emprego do dinheiro. José Pedro nunca tem dinheiro… se a mulher não trabalhasse…

Ah, esses casamentos sem graça. José Pedro de Andrade Mello  está jogando ralo abaixo  seu casamento, a família.  No meio de tudo, um filho dele com ela e uma filha dela… Nosso homem está literalmente procurando ‘sarna para se coçar…’

Há muitos homens parecidos com José Pedro de Andrade Mello. Vivem, empurram a vida para frente.  Unem-se a uma mulher. Fazem, filhos.  Não progridem na profissão.  Marcam passo. E na inconsequência de seu projeto de viver fazem outras pessoas  infelizes.

Que nome solene:  José Pedro de Andrade Mello.  Devia simplesmente se chamar Zé do Banco,  Zé da Silva ou  só  Zé e ponto final.

IV. PASTORAL

Catequese

 

Jesus, quem é?

Há mais de dois mil anos se fala dele. Desde de seu desaparecimento da terra dos homens, Jesus, tido como Ressuscitado por seus discípulos, reúne à sua volta pessoas de todas as condições, de todos os cantos do mundo, de todas as épocas da história. Ele está na origem do grande movimento que se chama cristianismo. Na realidade, quem é Jesus? Um homem excepcional? Um taumaturgo, “fazedor” de milagres,  um profeta, um mestre de sabedoria  humana? Um enviado de Deus todo particular? Seria ele o próprio Deus que veio  nos trazer a paz e o amor aos homens?

Uma admirável novidade

Quase tudo o que sabemos de Jesus é relatado em quatro livros: sua vida maravilhosa, sua condenação à morte, crucifixão e ressurreição.  São eles os evangelhos. Escritos por quatro autores  (Mateus, Marcos, Lucas e João) entre os anos 65 e 100  de nossa era, quer dizer,  35 a 70 anos depois de sua morte. Não se trata de textos em estilo de reportagem. Procuram seus autores transmitir uma boa notícia, uma boa nova. Dão testemunho de Jesus. Aliás, boa nova é precisamente o significado da palavra “evangelho”, que consiste na vitória de Jesus sobre a morte.

Jesus  não é um personagem legendário, criado, inventado. Autores profanos, quer dizer, historiadores não cristãos e mesmo hostis ao cristianismo, provam que  ele existiu, que foi condenado e, com ele, começou a existir uma comunidade de fiéis bastante vigorosa. Os textos de tais autores, nas grandes linhas, confirmam os escritos dos evangelhos. A única afirmação que não pode ser explicada é a ressurreição. Precisamente, ela constitui o âmago da fé dos cristãos, o centro da mensagem dos evangelhos.  Muitos chegaram a enfrentar a morte para testemunhá-la.  Os seguidores de Cristo convivem com o Ressuscitado.

O contexto

Jesus  nasceu  no ano  menos 6 de nossa era de uma mulher chamada Maria. Viveu numa época muito perturbada.  A Palestina era ocupada pelos romanos. Os partidos políticos e religiosos se entrechocavam: os ricos proprietários de terras, entre os quais eram recrutados os sumo-sacerdotes, resolveram colaborar com os ocupantes; outros contestavam sua autoridade e levavam uma vida ascética; outros ainda, os fariseus, frisavam mais a vida moral do que os ritos; outros se opunham a Roma pelas armas. Jesus conheceu todas estas correntes, inaugurando, porém, um caminho novo.

A vida e a mensagem

Jesus começa sua  atividade curando os doentes, paralíticos, cegos e surdos. Tais curas são sinais concretos  da vida nova que ele veio trazer. Passa o tempo todo ensinando, recomendando o amor a Deus e ao próximo, a paz, a justiça, o perdão, a generosidade, a lisura, a profunda honestidade, o respeito pelos pequenos, de modo especial, viúvas e órfãos.  Realiza também coisas extraordinárias, como por exemplo, cura em dia de sábado, dia em que os judeus deveriam descansar. Vai ao encontro de pessoas de todas as condições, não fazendo acepção de ninguém. A boa nova que vem trazer vai para além dos ritos, dos costumes e das fronteiras. Reivindica para si uma posição especial sua para com Deus a quem ele chama de seu Pai. Afirma que pode perdoar causando escândalo quando somente Deus pode perdoar os pecados.

Condenação à morte

As pessoas que se sentem ameaçadas com sua presença buscam eliminá-lo. Aos poucos, a oposição cresce e os chefes religiosos judeus resolvem condená-lo à morte pelo crime de blasfêmia.  Jesus, no entanto, foi se tornando uma figura popular. Realiza-se um complô.  Judas, um dos próximos de Jesus, participa dessa iniciativa. Depois de um aparente   processo, Jesus é condenado à morte com a cumplicidade de Pôncio Pilatos, procurador romano no exercício do cargo.

Começa então a paixão de Jesus. Primeiramente é flagelado, depois ridicularizado (colocam-lhe uma coroa de espinhos na cabeça já que ele  tinha dito que era rei), condenado a carregar sua cruz  até o lugar do suplício, finalmente pregado a uma cruz que depois é erguida. O suplício é revestido de atrocidade. Trata-se de um castigo reservado aos escravos e aos opositores políticos. Morre abandonado pelos seus, salvo por Maria, João e algumas mulheres.

Três dias após sua morte, pela manhã bem cedo, o túmulo onde havia sido depositado seu corpo aparece vazio. Aquele que  “reviveu”, que  ressuscitou aparece então a Maria Madalena e depois a seus amigos. Os relatos da ressurreição são de grande riqueza humana. Os apóstolos procuram passar neles toda sua fé nesse Jesus que lhes havia dado a vida e do qual se sentem muito próximos.

A Boa Nova se difunde  como grande rapidez, como raio de luz, e chega aos ouvidos de seus apóstolos e discípulos.  Primeiramente, incrédulos, esses homens e essas mulheres haveriam de se tornar incansáveis testemunhas desta vitória  sobre a morte  que mudou sua vida e pode  abalar a nossa.

Uma tão bela história não pertenceria ao passado? Detenhamos a ver aquilo que se passa à nossa volta. Hoje, ainda homens e mulheres haurem forças, alegria e motivos para agir em favor dos homens  na pessoa de Jesus. Homens e mulheres, nesses dois mil anos de cristianismo, encontraram nele a razão de suas vidas:  Agostinho de Hipona, Francisco de Assis, Charles de Foucauld,  Helder Câmara. Esses e tantas outras e tantos outros. Se assim o fizeram foi devido ao fato de terem encontrado  Jesus. Em parte encontraram-no lendo os evangelhos, e levando a sério suas palavras. Viver de Jesus, em Jesus, hoje é possível, bem como experimentar seu perdão.  Jesus é alguém que nunca se termina de descobrir, a amar e encontrar em cada homem.

 


Apêndices:

Jesus e suas datas: Jesus teria nascido em 5, 6,7 “antes de Cristo”.  Devido a um erro de cálculo  foi que um monge do século IV fixou o começo da era cristã  no ano 754  de Roma.  Pouco se sabe a respeito da vida de Jesus nos trinta anos antes de começar sua vida pública.  Sua atividade teria começado nos anos 27 ou 28 e durado um mínimo de dois anos.  Muito provavelmente, ele morreu a 7 de abril de 30, com um pouco mais de trinta anos.

Jesus e sua terra: Jesus viveu na Galileia, ao Norte do atual estado de Israel. Era terra rica e fértil. Os galileus falam o aramaico, língua próxima do hebraico e comum em toda a Palestina. Seus vizinhos mais distantes da Judeia  (onde se encontra Jerusalém)  consideram-nos como potenciais rebeldes. Para se chegar à Galileia  é necessário atravessar  ou contornar a  Samaria  cujos habitantes são considerados estrangeiros e idólatras.

Jesus e sua religião: Jesus era judeu. O judaísmo e suas obrigações rituais estavam no centro da vida cotidiana.  A religião era vivida em família. Havia grandes encontros de todos em Jerusalém, no templo, por ocasião das grandes festas, momento em que eram feitos os grandes sacrifícios rituais. Frequentava-se a sinagoga.

Jesus e seu mundo: Os romanos  reinam num imenso império.  A Judeia e a Samaria estão sob a autoridade direta do imperador, representada por um “prefeito” e a Galileia, país de Jesus, é governada por um rei que paga imposto a Roma.  Até o final do primeiro século a revolta contra Roma vai crescendo.  No ano 60 há uma primeira revolta  judaica brutalmente reprimida por Tito.  No ano 135,  Adriano arrasa Jerusalém.

Texto seleto

Senhor, te procurei

Senhor, enquanto pude, tanto quanto me deste força, eu te procurei e quis compreender aquilo em que creio, muito discuti, muito sofri.  Senhor meu Deus, minha única esperança, ouve-me:  não permitas que eu me canse de te procurar. Coloca em meu coração ardente desejo de te procurar. Estou diante de ti com minha força e minha fraqueza: fortalece uma e  cura a outra.  Diante de ti minha ciência e minha ignorância. Abre-me a porta do lugar em que encerraste. Que me lembre de ti, que te compreenda,  que te ame.

(Santo  Agostinho).

NB.:  Esta “catequese” sobre  Jesus  se apoia fortemente nas  Fichas da Revista Croire  dos jesuítas franceses.

V. NOSSO GÊNERO DE VIDA

Obediência (II)

 

Reflexões sobre as Constituições Gerais Da Ordem dos Frades Menores

 

Art. 7 das CCGG OFM

Neste número da Revista Eletrônica, queremos ainda tecer considerações sobre a Obediência. Tais considerações  devemos a Kajetan Esser e Engelbert Grau.

 

1. Difícil praticar a obediência porque ela exige desapego de si e renúncia. Sem essas condições não poderemos, no entanto, acolher a salvação de Cristo que se fez obediente até o fim de sua vida. A graça redentora que brota do Coração de Jesus na cruz só poderá encontrar sua plena realização numa alma dócil. Serão benditos do Pai aqueles servos que tiverem praticado a verdadeira obediência. Este tem já a liberdade que será dada a todos no final dos tempos.

2. A verdadeira obediência  supõe que o fiel  esteja sempre atento à voz de Deus. Francisco está plenamente convencido de que a voz do Altíssimo pode ser ouvida no fundo do coração, pela vontade do superior e por determinadas circunstâncias vividas, bem como pelas decisões que tomamos depois de um tempo de discernimento e de oração. Vemos nos mandamentos e nas disposições do Sermão da Montanha orientações positivas e negativas, mandamentos positivos e negativos não como leis frias, mas expressões da vontade do Senhor. Os que praticam a obediência se firmam na vida de penitência, vivem a verdadeira obediência.

3. “E esta é a verdadeira e santa obediência  de nosso  Senhor Jesus Cristo. E todos os irmãos, cada vez que se desviarem  dos mandamentos do  Senhor e vagarem fora da obediência, como diz o profeta, saibam que fora da obediência  são amaldiçoados, enquanto permanecerem conscientes de tal pecado. E na medida em que  perseverarem nos mandamentos do Senhor, que prometeram pelo Santo Evangelho e por sua própria vida, saibam que estão na verdadeira obediência e sejam abençoados pelo Senhor (Regra não Bulada, n.5). O importante é que aquele que obedece não se coloca apenas em acordo com uma vontade humana, mas está se situando em consonância com a vontade divina.  Tal só é possível ao que vive uma fé sincera, capaz de ver em tudo a vontade de Deus.

4. O homem moderno perdeu o sentido de uma fé enraizada no mais fundo do coração. Coloca-se exposto a ser “maldito”, conforme o texto de Francisco. Afasta-se dos mandamentos do Senhor. Parece ter perdido a fé neles.  A gangrena do indiferentismo religioso penetra na vida dos que querem seguir  Cristo.  A Igreja tem necessidade para continuar seu vigor e realizar sua missão daqueles que, como Francisco, creem na Redenção e, portanto, na ação universal de Deus que se revela continuamente. A Regra dos Frades Menores e seu voto de viver em obediência  não têm outra finalidade. Retomando um pensamento de Clara: sua vida de submissão faz das irmãs auxiliares de Deus, sustento e reconforto para os membros abatidos da Igreja.

5. Em nossos tempos pretendemos descobrir a vontade de Deus no seio da fraternidade. Irmãos que vivem limpidamente e se reúnem desarmadamente descobrem a vontade de Deus na fala do irmão que expõe os dramas de seu coração ou partilha suas alegrias, no pedido de ajuda de alguém que cambaleia e sofre, na fala simples do menor de todos os frades. O superior haverá também de ouvir a voz do Senhor nos seus confrades. E todos serão ouvintes daquele que os chama à conversão.

6. Esser e Grau afirmam:  “Os membros das comunidades franciscanas por meio de sua obediência acrescentam vigor à vida interior da Igreja. Submissos a Deus e ao próximo, instauram o Reino de Deus. Quando o crucifixo de São Damião  disse a Francisco:  “Vai e reconstrói a minha casa que, como vês está em ruínas”, o santo  se viu levado a obedecer e concentrou todas as suas forças para executar esta ordem” (2Celano 10).  Nesse contexto, cabe lembrar a oração diante do Crucificado, oração que pede a graça da obediência: “Deus altíssimo e glorioso, ilumina as trevas do meu coração; dá-me, Senhor, uma fé reta, uma esperança firme e uma caridade perfeita para realizar a tua santa vontade e agir segundo vossos ensinamentos”.