2023 – 800 Anos da Regra de Vida dos Frades Menores

- 2023 - 800 Anos da Regra de Vida dos Frades Menores
- Capítulo I
- Capítulo II
- Capítulo III
- Capítulo IV
- Capítulo V
2023 - 800 Anos da Regra de Vida dos Frades Menores
Apresentação
A Conferência da Família Franciscana convida-nos a celebrar o grande Centenário Franciscano, isto é, a articulação de vários centenários de 800 anos num único Centenário que começa em 2023 e termina em 2026: Regra Bulada e o Natal de Greccio neste ano de 2023, os Estigmas em 2024, o Cântico das Criaturas em 2025 e a Páscoa de São Francisco em 2026.
A Província nomeou uma equipe, isto é, uma ‘comissão de trabalho’, para juntos pensar o envolvimento da Fraternidade Provincial na celebração destes centenários, e, sempre que possível, local e regionalmente, em comunhão com a Conferência da Família Franciscana do Brasil (CFFB).
A Formação Permanente, através desta Revista Comunicações da Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil, oferecerá mensalmente um artigo para destacar os 800 anos da Regra Bulada, aprovada pelo Papa Honório III no dia 29 de novembro de 1223. Estas partilhas mensais, elaboradas por confrades da Província, seguem os capítulos da “Regra e vida” da Ordem dos Frades Menores, com a finalidade de ajudar nossas Fraternidades a bem celebrar os Capítulos Locais, bem como orientar nossos retiros mensais e anual, em conformidade com as Constituições Gerais: “A fim de revigorar o espírito de oração e devoção, no tempo marcado, os irmãos façam fielmente o retiro mensal e o retiro anual” (CCGG 30,1).
Assim, as partilhas mensais seguirão esta ordem:
Janeiro: Ressignificar o fundamento evangélico e eclesial da nossa vida franciscana.
Fevereiro: Os que quiserem abraçar esta vida. Os primeiros passos de toda uma vida penitencial (permanente conversão). A distribuição dos bens aos pobres. O ser recebido na obediência. A profissão e suas consequências. As vestes evangélicas e a forma de viver esta vida. Tema que será lido e rezado a partir da prioridade do Serviço da Animação Vocacional.
Março: Ressignificar a vida de oração da Fraternidade. O ofício divino, o jejum corporal e o ir pelo mundo como construtores da paz.
Abril: Ressignificar a Pobreza: Sem dinheiro nem pecúnia, mas solícitos com os irmãos. A nossa economia fraterna e solidária também necessita de cuidados.
Maio: Ressignificar a graça do trabalho. Trabalhar fiel e devotamente. A nossa sustentabilidade no espírito da pobreza.
Junho: Ressignificar a Pobreza e a itinerância. Herdeiros do Reino e familiares entre si (irmãos espirituais).
Julho: Ressignificar a misericórdia e o perdão. Não se irar com o pecado do irmão.
Agosto: Ressignificar a importância dos Capítulos e o serviço dos Ministros.
Setembro: Ressignificar o espírito da Evangelização: A pregação dos irmãos e a Missão “ad gentes”.
Outubro: Ressignificar a compreensão das relações fraternas entre autoridade e obediência. Possuir o Espírito do Senhor e os comportamentos fundamentais do irmão menor.
Novembro: Ressignificar a castidade e as relações afetivas, com prudência e vigilância.
Dezembro: Celebrar o Natal de Greccio – Recordar a pobreza, humildade e simplicidade do Filho de Deus.
A celebração dos 800 anos da Regra Bulada é uma ocasião propícia, um tempo favorável, para ressignificar o “próprio” da nossa vocação franciscana, isto é, rever, revisitar e revigorar a nossa identidade carismática, em vista da missão evangelizadora professada por cada um de nós: “Eu possa tender constantemente para a perfeita caridade, ao serviço de Deus, à Igreja e aos homens” (CCGG art. 5).
O texto inspiracional da Conferência da Família Franciscana, “Um Centenário articulado e celebrado em vários centenários” (p. 6), ajuda-nos a ampliar o horizonte da ressignificação da nossa identidade carismática, particularmente das ‘constantes’ (“profecias”) das quais Francisco jamais renunciou:
“É importante recordar que Francisco compõe a Regra Bulada durante um período da sua vida em que tem de enfrentar numerosas tensões e crises em nível fraterno, mas ele não renuncia à profecia de viver como irmão de todos e convida-nos a fazer o mesmo. Hoje, a Igreja, ao promover a sua dimensão sinodal e comunitária, apresenta a figura de Francisco de Assis como modelo de fraternidade, chamando-o de “santo do amor fraterno” (Fratelli Tutti 2), porque os seus gestos e palavras ainda podem, ao fim de 800 anos, iluminar o caminho de uma comunidade eclesial que procura tornar-se uma Igreja em saída, sinodal, ouvindo todos, perto dos mais pequenos, portador de uma boa notícia que tem a força para preencher com alegria e significado a vida de quem a acolhe” (cf. Evangelii Gaudium 21).
Imagem: “Confirmação da Regra”, de Giotto di Bondone (1295-1299), na Igreja Superior da Basílica de São Francisco de Assis
Capítulo I
Celebrar a Regra Bulada (1223-2023)
“A Regra e a vida dos Frades Menores é esta: observar o santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo” (cf. RB 1 e RB 12, 4-5).
A celebração dos 800 anos da Regra Bulada, longe da tentação de nos enaltecermos com a vida dos santos confrades que prestaram atenção ao Bom Pastor e “o seguiram na tribulação e na perseguição, na vergonha e na fome, na enfermidade e na tentação” (cf. Ad 6, 1-2), se apresenta a nós como anúncio profético para acolher o refrão do Papa Francisco: “sair das nossas zonas de conforto” e, como Frades Menores, sermos capazes de “despertar o mundo”, como São Francisco de Assis fez no seu tempo: “Francisco, vai e restaura a minha casa que, com o vês, está toda destruída” (2Cel 10,5), e ainda, conforme o mandato eclesial: “Irmãos, ide com o Senhor e pregai a todos a penitência, como o Senhor se dignar inspirar-vos” (1Cel 33,7).
Assim, a partir do primeiro Capítulo da Regra Bulada, permitamos que os “gestos e palavras” de São Francisco e da primitiva fraternidade iluminem cada frade e sua respectiva Fraternidade Local para juntos perfazer o caminho de “uma comunidade eclesial que procura tornar-se uma Igreja em saída, sinodal, ouvindo todos, perto dos mais pequenos, portador de uma boa notícia que tem a força para preencher com alegria e significado a vida de quem a acolhe” (Um Centenário… p. 6).
A Regra e sua moldura evangélica
É muito significativo para nós, Ordem dos Frades Menores, celebrar com toda a Família Franciscana o jubileu dos 800 anos da aprovação da Regra Bulada. Todos professamos em fraternidade a mesma intuição carismática de São Francisco, apresentada no seu Testamento: “O mesmo Altíssimo me revelou que devia viver segundo a forma do Santo Evangelho. E eu assim o fiz escrever em poucas e simples palavras, e o Senhor Papa mo confirmou” (Test. 14-15). Esta intuição carismática compõe a moldura e fundamenta os conteúdos centrais da nossa Regra. Esta moldura, ou melhor, esta “forma evangélica” é anunciada no primeiro versículo da Regra (RB 1,1) e no último (RB 12, 5). Em outras palavras, a mesma “chave” que abre a porta para introduzir-nos neste modo próprio (forma) de vida e de como observá-la (“A Regra e a vida dos Frades Menores é esta: observar o Santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo”, RB 1,1) é também a chave que fecha, isto é, que encerra a totalidade do conteúdo da sagrada aliança que deve ser cumprida e observada por meio do Voto feito a Deus: “… e observemos a pobreza e a humildade e o santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo que firmemente prometemos” (RB 12,5).
Este Voto tem sua visibilidade concreta na observância do santo Evangelho, particularmente na vivência dos três Conselhos Evangélicos: “Observar o santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo em obediência, sem propriedade e em castidade” (RB 1,2).
Portanto, enquadramento evangélico aqui não pode ser compreendido como espaço cerrado ou delimitado, mas assegura o elementar do nosso modo próprio de seguir em liberdade os passos de Nosso Senhor Jesus Cristo (cf. 1Cel 22, 2-3 e AP 10-11). Um caminho que ilumina o irmão que vem por ‘divina inspiração’ a abraçar o largo horizonte da nossa liberdade evangélica e carismática, tão bem definida na alegoria da aliança celebrada entre Francisco e irmãos com a Senhora Pobreza, no relato do Sacrum Commercium: “claustro que tem as dimensões de todo o orbe” (SC 30,25).
Ressignificar a nossa vida franciscana a partir da Regra Bulada
Esta Regra e vida foi muito bem assimilada pela primitiva fraternidade. O relato de Frei Tomás de Celano que segue, mais que uma narrativa histórica, apresenta-nos a aceitação e a compreensão bíblico-espiritual que a Fraternidade tinha da Regra, aprovada oralmente pelo Papa Inocêncio III em 1209, e definitivamente no dia 29 de novembro de 1223 pela Bula Solet Annuere do Papa Honório III, há menos de três anos antes da morte de Francisco de Assis. Celano escreve que Francisco, “zelava ardorosamente pela profissão comum e pela regra e dotou-a com bênção especial aos que zelassem por ela. Pois dizia aos seus que ela é o livro da vida, a esperança da salvação, a medula do evangelho, a via da perfeição, a chave do paraíso, o pacto da eterna aliança. Queria que todos a possuíssem, que todos a conhecessem e por toda parte ela conversasse com o homem interior como palavra de alento no [momento de] aborrecimento e recordação do juramento prestado. Ensinou-lhes que ela deve sempre ser trazida diante dos olhos para recordação da vida a ser praticada e, o que é mais importante ainda, com ela eles deviam morrer” (2Cel 208).
São Francisco se revelou através da Regra. E não apenas ele! A regra é também o retrato fiel da primitiva fraternidade de irmãos que, na dinâmica da itinerância evangélica, experimentam tanto as conquistas como aprendem a lidar com as fragilidades humanas nas diferentes circunstâncias da vida. Por isso, antes de ser um texto formal ou jurídico, a Regra foi a vivência cotidiana do santo Evangelho, a escuta orante da Palavra, a organização da vida a partir da Palavra e o consequente anúncio da Palavra. Foi dessa forma que eles, revestidos de túnicas que traziam a imagem da cruz (cf. 1Cel 22), foram a Roma para apresentar ao Papa Inocêncio III “uma forma e regra de vida, utilizando principalmente palavras do santo evangelho” (1Cel 32). A “fé na Igreja” é marcante, é uma das notas “constantes”, assim codificada na Regra: “Frei Francisco promete obediência e reverência ao senhor Papa Honório e seus sucessores canonicamente eleitos e à Igreja Romana” (RB 1, 3). E quando interpelados pela identidade, isto é, por esta “forma de vida”, com lucidez e clareza respondem: “Somos penitentes e nascemos na cidade de Assis” (AP 19).
Portanto, a Regra foi primeiramente vivida e rezada, discernida de capítulo em capítulo como que em espírito de sinodalidade, e dada a nós como testamento, herança e bênção. Aliás, muito bem recordada por São Francisco no seu Testamento: “para que observemos mais catolicamente a regra que prometemos ao Senhor” (Test 34)
A fidelidade professada
A Regra e vida que professamos por meio de um voto a Deus, nos introduziu na Ordem dos Frades Menores. Desistências e abandonos também ocorreram ao longo da nossa história. Contudo, a exortação final da Regra Bulada, a chave da nossa sagrada “clausura”, como já foi dito acima, é a expressão da mais profunda convicção de São Francisco diante do benefício da vocação acolhida por inspiração divina: “E observemos a pobreza e a humildade e o santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo que firmemente prometemos” (RB, 12, 5). Professar a Regra, fazer o Voto de observar esta Regra e vida, gera um compromisso, cria uma aliança sagrada aos moldes da compreensão bíblica do livro do Eclesiastes: “Quando fizerdes um voto a Deus, não demores em cumpri-lo, porque não lhe agradam os insensatos. Cumpre o que prometeste! É melhor não prometer do que prometer e não cumprir” (Ecl 5, 3-4).
A vida cristã franciscana se concretiza no Evangelho, ou seja, no modo de ser e viver de Nosso Senhor Jesus Cristo e dos Apóstolos. Por isso, o Evangelho se tornou a medula, o respiro e a vida de São Francisco. A Regra professada é vida e liberdade evangélica e não um conjunto de leis que apequena o coração. Por isso, na linguagem de Frei Tomás de Celano, a Regra é o coração, o centro vital, a medula que é Nosso Senhor Jesus Cristo. Nele nos identificamos como Frades Menores e com Ele somos identificados pelo povo de Deus como irmãos menores. Daí a recordação do Papa Francisco, em 2015, aos Frades Capitulares: “Vocês conquistaram uma autoridade moral junto ao povo de Deus com a minoridade, com a fraternidade, com a brandura, com a humildade, com a pobreza. Por favor, conservem-na! Não a percam! O povo quer bem a vocês, ama vocês”.
Conclusão
Convido-lhes a fazer o caminho da ressignificação da nossa vida, tendo a Regra Bulada como medula, essência e vigor em nossa vida franciscana. Convido-lhes a estar mais atento às “constantes” da nossa vocação e missão das quais São Francisco jamais abriu mão. Dessa forma, parafraseando o Papa Francisco, podemos celebrar os 800 anos da Regra Bulada no espírito de “olhar o passado com gratidão, viver (ressignificar) o presente com paixão e abraçar o futuro com esperança”.
Frei Fidêncio Vanboemmel, OFM
Moderador da Formação Permanente
Capítulo II
“Dos que querem abraçar esta vida e de como devem ser aceitos”
1. Como é bom ter uma regra
A fé cristã é um fazer memória. E não é porque vivemos “de passado”. Mas na recordação de um feito buscamos o atualizá-lo, na sede de manter vivo o sentimento daquilo que é lembrado. Por isso é um casamento daquilo que foi com o que se vive para motivar o que vem a seguir. E somos ruminadores do antigo não porque o atual é sem graça: no exercício do reencontro com o passado, o hodierno ganha ainda mais sentido. E nessa dança entre o que foi, o que é e o que será bailamos nos embalos da música do mistério que se revela, se esconde, se mostra, se retrai. É antigo e sempre novo!
Neste sentimento, a Ordem quer reviver a emoção da aprovação da Regra. Mesmo 800 anos depois, numa empreitada assaz pretensiosa, os frades querem fazer memória e sentir na pele o como é bom ter uma Regra (e vivê-la). Logo no início, a diretriz deixa claro os passos que devem ser dados pelos corajosos que aceitam o desafio de “avançar para águas mais profundas” do seguimento de Cristo ao modo de Francisco de Assis. E é sobre este segundo capítulo da Regra que vamos aprofundar nossa reflexão, entendendo-o a partir do prisma vocacional, sendo corroborado pelo Ano Vocacional da Igreja no Brasil e da nossa Província.
2. “Dos que querem abraçar esta vida e de como devem ser aceitos”
Até o período Neolítico, na pré-história, o ser humano era basicamente nômade. Sua vida girava em torno de questões de subsistência: alimentação e defesa. Entretanto, percebendo que era possível desenvolver meios agrícolas, aos poucos, a humanidade se sedentarizou. Surgiram as ferramentas, as aldeias. Entretanto, algo ali chama a atenção: prorrompem os primeiros indícios de elementos que não tinham uma finalidade apenas pragmática, mas que possuíam mais cuidado na fabricação: arte. Com o tempo se desenvolve o senso de cultura, de estética, de subjetividade diante de um objeto ou situação, que passa a adquirir um sentido maior do que simplesmente uma ferramenta, e torna-se um símbolo.
Com isso, paulatinamente, a sobrevivência não se limitou apenas à caça de alimentos e proteção, mas uma “caça” de sentido de vida. Castilho assevera que “nós humanos somos humanos porque possuímos uma capacidade simbólica e somos capazes de expressar nossas experiências simbólicas”[1].
Tais vivências crescem também com a adesão a certos costumes, tradições e modos de vida. Alguns surgem até como figuras a serem imitadas pelo exemplo. Eles suscitam nos outros o desejo de pretender viver um modo de vida específico, com suas simbologias próprias. Apresentando um itinerário, uma reflexão, aguçam o desejo humano, não só por alimento, mas por “norte”, por sentido, por objetivo.
E é aos desejosos de viver evangelicamente que Francisco escreve a Regra, asseverando que a ninguém é impreterível fazer isso: “Dos que QUEREM abraçar esta vida”. Estes almejam no fundo do seu coração, a partir de sua liberdade, ganhar o prêmio do Reino Eterno à medida que se configuram a Cristo. Isto é o seu simbólico. No entanto, primeiro experimentam um hiato entre a crise do que deverão vir a ser e, por outro lado, a certeza do que querem (discernimento). E o elemento que faz a ligação entre essas duas realidades é o desejo. Sobre ele, o Papa Francisco afirma:
“O desejo, todavia, não é a vontade do momento. A palavra italiana vem de um termo latino de-sidus, literalmente ‘a falta da estrela’, do ponto de referência que orienta o caminho da vida; ela evoca um sofrimento, uma carência e, ao mesmo tempo, uma tensão para alcançar o bem que falta. Então, o desejo é a bússola para compreender onde estou e para onde vou. (…) Obstáculos e fracassos não sufocam o desejo; pelo contrário, tornam-no ainda mais vivo em nós”.[2]
Os que estão fascinados por esta vida se tencionam para poder exercê-la. Como afirmou Castilho, a partir das experiências simbólicas o ser humano as expressa: ingressar na Ordem Franciscana, por exemplo, é uma expressão deste simbólico vivido. E assim tem a continuação do título da Regra: “De como devem ser aceitos”. Os que querem abraçar esta vida, a partir do mais puro desejo, precisam de um itinerário para o ingresso. Uma passagem: entre o incerto e o certo.
3. Primeiros passos (hábitos) de penitência e observância da catolicidade
O vocacionado a ser frade menor, desejoso de corresponder ao convite do Senhor, expressa esse simbólico por meio de uma nova vida. Mas esse processo acontece aos poucos, de penitência em penitência. Por isso necessita ser casmurro para construir novos hábitos. Para tal finalidade o hábito lhe é oferecido no ano da provação: para ser sinal de sua nova busca, para ser símbolo do seu primeiro passo e fazer memória constante da sua vocação, que não é apenas impulso pessoal, mas resposta contundente ao amor de Deus. Acerca da resposta à Graça de Deus, Konings afirma: “A consciência da fé cristã não é voluntarista, ávida de auto-afirmação. É agradecida, cheia de recordação e atenção. Pensa a partir da fonte da qual brotou: o amor de Deus que se manifesta em Jesus”[3].
Nos tempos modernos, o candidato já faz uma penitência durante o acompanhamento vocacional: nesta época, onde tudo deve ser instantâneo, a gradualidade, a gradatividade é penitência. O tempo de ir provando (acompanhamento vocacional) acontece com parcimônia para que a pessoa vá assimilando o novo modo de vida desejado, evitando assim que “engula quente” a experiência, não se saciando e degustando o momento verdadeiramente.
A penitência, aos poucos assumida para sempre, se torna via para abrir mão de qualquer coisa que possa desvirtuar o caminho, a fim de abraçar o que realmente conduz à plenitude da vocação franciscana. A pessoa despreza o pensar apenas em si mesmo (negação da autorreferencialidade) e assimila que a sua felicidade é fazer os outros felizes através da minoridade, da pobreza, da fraternidade e do serviço. Este é o seu novo hábito, que ora é mais fácil de vestir, ora mais exigente, mas nunca desprezível para quem quer se fazer frade menor. “A renegação jamais é um fim ou um ideal em si mesma. A coisa mais importante não é a apódose: ‘negue-se a si mesmo’, mas a prótase: ‘Se alguém quer vir após mim’. Dizer não a si mesmo é o meio, dizer sim a Cristo é o fim”[4].
Observar a catolicidade do candidato, como manda São Francisco, pode ser a busca por perceber se aquele chamado do irmão é uma resposta ao amor de Deus ou qualquer outra coisa que depois não sustenta sua vocação. É tomar o desejo da pessoa nas mãos e tentar com ela identificar se o mesmo é factível a partir daquilo que se torna evidente: se nasce de um Encontro com Jesus. Se a pessoa tem primeira eucaristia ou crisma passa a ser algo óbvio, pois seu desejo de ingressar é fruto da experiência eclesial que realiza. E se esperou demais ou assumiu outro compromisso na vida ou possua algo que a impede de ser religioso também é notório que ser frade não é o caminho: para cada realidade há a sua medida. Não é o provincial nem o animador vocacional que diz sim ou não. É a própria pessoa que apresenta a sua idoneidade e responde a si mesma. Cabe às instâncias clarear isso.
4. É tempo de fazer memória!
A profissão que realizamos é o assentimento ao simbólico que nos motiva. Fazer memória da Regra é ter a certeza de que assumimos um caminho porque queremos estar nele! Neste Ano Vocacional da Igreja do Brasil e de nossa Província, queremos restaurar as nossas motivações para aquilo que professamos. Queremos sentir na pele de novo, viver a memória da escrita e aprovação da Regra. E sonhamos espalhar este sentimento a mais corações desejosos por responderem ao chamado do Senhor e desejam fazer isso de modo franciscano.
Nós, confrades do Serviço de Animação Vocacional, por vezes ouvimos que somos os responsáveis por suscitar vocações. Pode ser que utilizemos de diferentes ferramentas (e devemos aprimorar muito isso) para estar no mundo dos jovens, apresentar o nosso carisma e provocá-los. Além disso, podemos nos qualificar para acompanhar estes casos. Mas cada irmão pode sempre incitar o convite, por palavras e atos, mostrando a vivacidade daquilo que professamos. O nosso fazer memória da Regra é uma sempre viva Tradição que nos impulsiona ao que vem à frente, uma vez que aderimos com o mais profundo desejo de corresponder ao chamado do Senhor a esta vida de penitência.
Frei Gabriel Dellandrea
Frei Jeâ Paulo Andrade
Serviço de Animação Provincial.
[1] CASTILHO, José M. A humanidade de Jesus. Petrópolis: Vozes, 2017, p. 21.
[2] https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2022-10/papa-francisco-audiencia-geral-discernimento-desejo.html
[3] KONINGS, Johan. Ser cristão: fé e prática. 4ª edição. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 98.
[4] CANTALAMESSA, Raniero. Pastores e pecadores: retiro espiritual para bispos, sacerdotes e leigos engajados. São Paulo: Ave-Maria, 2021, p. 33-34.
Capítulo III
Uma Espiritualidade que perpasse a Vida
O 8º Centenário da aprovação da Regra Bulada foi assumido pela Ordem dos Frades Menores como convite à ressignificação de sua própria identidade enquanto fraternidade de homens consagrados a Deus. Como forma de ajudar a corresponder a este convite, este artigo se soma à proposta de lançar luz sobre o texto da Regra em vista da recordação daquilo com que cada Frade Menor se comprometeu buscar e viver por toda sua vida.
Depois de apresentar os fundamentos de nossa Forma de Vida: o Evangelho, os votos e a comunhão eclesial (Cap. 1), e de estabelecer o modo como cada irmão deverá ser recebido “na obediência” da Ordem quando descobrir-se chamado pelo Senhor (Cap. 2), a Regra se volta para a vida de oração e jejum, assim como para o modo como os frades deverão apresentar-se diante das pessoas (Cap. 3). Sem se deter nos detalhes das temáticas abordadas – o que pode ser acessado pela leitura do próprio capítulo da Regra – buscar-se-á dar acento à intenção presumida de São Francisco de Assis e os secretários da Ordem.
A PARTIR DA ORAÇÃO… (vv. 1-5)
O terceiro Capítulo da Regra Bulada, ao falar da oração, determina que os frades rezem a Liturgia das Horas e participem da celebração eucarística, seguindo a prática de toda a Igreja e, para aqueles que não sabem ler, rezem o “ofício dos Pai Nossos”. Além disso, estabelece que cada irmão reze os devidos sufrágios por um confrade falecido.
Não há dúvidas de que São Francisco entendia que o primado da existência pertence a Deus e que este princípio é a base de toda vida que se pretenda religiosa. Caberia ao Frade Menor assumir como seu primeiro “ofício” o zelo pela relação com Deus. Este fundamento, longe de se opor à vida apostólica, deve ser assumido como adoção da dinâmica evangélica de alternância entre a “montanha e a planície”, elevando as necessidades e experiências da vida e da missão à oração enquanto as perpassa e as motiva com a intimidade cultivada com Deus. Sem o cultivo de uma profunda experiência de fé, porque um frade sairia a evangelizar? Sem o cultivo de reais relacionamentos humanos e fraternos, sem a dedicação à ação evangelizadora, o que um frade traria às suas orações? Apenas a si mesmo?
A partir desta perspectiva, tornam-se mais claros os demais princípios da vida de oração do Frade Menor: ao estabelecer um único ofício dentre tantas outras possibilidades, São Francisco queria garantir unidade entre as Fraternidades e a fidelidade/proximidade com a Igreja Romana. Estas intenções permeiam outras escolhas feitas pela Ordem, mas é importante que se ressalte como elas também estão presentes na prática da oração comunitária. Onde quer que um frade esteja, como residente ou visitante, a mesma oração oficial da Igreja será rezada. Ali ele terá a possibilidade de participar da celebração eucarística, fonte da comunhão entre os irmãos. Saberá que, aqueles irmãos que estiverem impossibilitados de rezar comunitariamente, serão recordados e incluídos nas preces dos demais. A oração comunitária é apresentada, deste modo, como forte elo de comunhão e de identidade fraterna do Frade Menor.
A proximidade com a Igreja Romana manifestada na adoção do modo proposto por ela para rezar e celebrar revela-se como elegante modo de fidelidade e unidade com seu Magistério. Mesmo os irmãos iletrados, incomuns em nosso tempo, podem rezar o Pai Nosso, oração ensinada pelo próprio Filho de Deus, conhecida de cor – mente e coração – por todos, e legada como patrimônio espiritual para toda a Igreja. Tal leitura não impede a inculturação, tão estimada e estimulada, especialmente em nossa realidade de América Latina, pelo contrário, oferece importantes balizas para que a criatividade própria do Espírito Santo suscite adaptações que não firam a unidade do único Corpo de Cristo.
Por fim, a lembrança da oração pelos confrades falecidos faz recordar a comunhão dos santos e fortalecer a vivência da unidade da Ordem. Os frades rezam movidos pela gratidão pela vida dos irmãos que os precederam e dos seus esforços consagrados à construção do Reino e a evangelização a partir da Ordem. Confiam-se a sua intercessão para que possam, em seu tempo, continuar a dar passos e oferecer seu contributo à História da Salvação.
Assim, a oração é entendida como meio ou exercício para o cultivo da comunhão e intimidade fraterna e dos irmãos com Deus. Como tal, sempre haverá espaço para a reflexão de como ela tem sido vivida nas Fraternidades, ou com que espírito os irmãos têm celebrado juntos. Se a oração tem ajudado os irmãos a estarem em consonância com Deus e entre si.
…FIRMANDO-SE NO ESSENCIAL DA VIDA… (vv. 6-10)
Já sobre a ascese, o Capítulo estabelece três quaresmas a serem vividas (a da Epifania, do Natal e da Páscoa) sendo que apenas as duas últimas permanecem prescritas pelas Constituições Gerais atuais, além de apresentar as sextas-feiras como dias de jejum para a Ordem.
O próprio texto da Regra, após estas determinações, revela o espírito pretendido por São Francisco nesta dimensão ascética: “em tempo de manifesta necessidade, os irmãos não sejam obrigados ao jejum corporal”. Mesmo que sob o olhar de nosso tempo não esteja claro, o texto da Regra já havia reduzido a prática dos jejuns ao mais essencial, o que fica mais evidente quando comparado com outras Regras e Constituições religiosas. São Francisco aproximava a vivência da dimensão ascética por parte dos frades à pratica de todo fiel cristão. E, ainda, a expressão por demais vaga para um texto legislativo “tempo de manifesta necessidade”, confia à maturidade e responsabilidade de cada irmão e Fraternidade esclarecer, caso por caso, quando a necessidade justificaria a amenização do exercício ascético tão próprio da vida religiosa. Assim, evidencia-se o espírito paternal e humano de São Francisco que se sobrepõe ao frio legalismo que poderia limitar a misericórdia.
O modo de São Francisco entender a ascese não desconsidera sua importância enquanto exercício que favorece a busca do essencial da vida e da experiência de fé, entretanto, ele evidencia a consciência de que esta não passa de um recurso para aquilo que é essencial e alerta, ao mesmo tempo, que ela pode ser assumida como falso critério de santidade. O jejum é um exercício proposto pela Igreja e pelos documentos da Ordem, ele é exercício de experiência de ausência, de abnegação de coisas com as quais o frade se acostumou, para recordá-lo d’Aquele a quem quer sempre buscar, mas, por vezes, acaba se esquecendo. O jejum, assim, lança o frade novamente na busca por Deus e, além disso, pode despertá-lo à outra característica tão própria da espiritualidade cristã: a caridade. Pois, o movimento da ascese só é completo quando ele provoca a doação de si e do que se tem ao outro, quando se deixa de buscar apenas a si, para buscar a Deus.
Contemplando tal perspectiva, importa refletir porque a ascese não encontra seu devido espaço na vida cotidiana e prática de fé, colocada muitas vezes sob desconfiança ou entendida como tema desgastado e ultrapassado. Afinal, exercitar-se na abnegação de si em vista da doação do que de melhor se possui a Deus e ao próximo não está no âmago da fé cristã?
A ascese corporal, quando devidamente empregada, é um recurso que pode ser grande auxílio na conversão de todas as energias em direção da razão primeira de sua vida. Porém vale dizer: a ascese é tudo isso, mas apenas isso.
…PARA REVELÁ-LO AO MUNDO (vv. 11-15).n
São Francisco entendia que a vida do Frade Menor deve se realizar no mundo, em meio às pessoas que estão no mundo. Concluindo o Capítulo 3 da Regra, ele descreve o modo como esta grande “Fraternidade em missão” deverá se apresentar. O texto afirma: os frades devem ir desarmados de qualquer julgamento, ímpeto de discussão e divisão. Devem ser mansos, pacíficos e humildes e tratar a todos com o devido respeito.
O que está sendo descrito pelas letras da Regra é o espírito de minoridade que deve caracterizar o modo do Frade viver e se relacionar com as pessoas. Espera-se que ele não busque reivindicar a razão, a posse da verdade, ou incitar discussões com o mesquinho intuito de derrotar os outros. Espera-se que ele não assuma a posição de julgamento sobre os outros, postura de quem se sente superior aos demais. Tais atitudes fomentam violência e São Francisco era declaradamente contrário a ela.
A minoridade, ainda, conduz a pessoa à libertação da autorreferencialidade narcisista, tornando-a disponível para estabelecer relações realmente marcadas pelo respeito, amor e paz. Torna o indivíduo manso, pacífico e modesto, como prometeu ao se tornar Frade Menor.
Assim, entende-se que, para São Francisco, o anúncio da paz, marca da evangelização ao modo franciscano, não é restrito a uma teoria retórica, mas se revela como compromisso a ser exercitado pessoalmente pelo frade. Seu modo de se portar diante das pessoas e de se relacionar com cada uma delas deve ser marcado por esta busca existencial.
As demais normativas seguem este lastro da sensibilidade minorítica que impele o frade a tratar cada pessoa com cortesia, para que as relações de paz possam crescer; a se importar com as condições e realidades das pessoas que participam das ações evangelizadoras, de modo que suas escolhas sejam condizentes e coerentes com a minoridade.
A missão dos frades, como se deixa entender, não é apresentada como nenhuma ação específica, mas ela será sempre marcada por uma postura humilde e pacífica diante de todos e assim, e somente assim, o Frade Menor evangelizará e continuará a contribuir com a Igreja sendo fiel ao seu carisma, em qualquer serviço ao qual ele se dedicar. Esta afirmação deve provocar a reflexão pessoal: é com este modo de proceder que cada um tem se relacionado com os irmãos e com o povo em sua vida e missão?
CONCLUINDO
O Capítulo 3 da Regra Bulada, tendo estabelecido o cultivo do espírito de oração e devoção em Fraternidade como a fonte primeira da vivência da forma de vida religiosa franciscana, passou à ampliação do horizonte ao voltar-se para a razão de ser da Ordem: seu modo de ir pelo mundo. A dimensão contemplativa que, quando bem cultivada, revela-se como verdadeira fonte a jorrar a água benfazeja da presença de Deus em toda a sua vida e missão. Estas, fazem orientar este rio de vida por onde o Frade passar, irrigando os projetos evangelizadores e a comunidade a qual pertencer, concedendo evangélico sentido àquilo que prometeu ser e fazer.
Frei Rodrigo da Silva Santos
Secretário Provincial
CROCOLI, A.; SUSIN, L. C.
A Regra de São Francisco de Assis.
Vozes: Petrópolis, 2013.
URIBE, F. La Regra de San Francisco: letra y espiritu.
Editorial Espigas: Murcia, 2006.
Capítulo IV
O uso do dinheiro como expressão carismática do sem nada de próprio
O Capítulo IV da Regra Bulada faz referência à relação dos irmãos com o dinheiro, apresentando, clara e objetivamente, que os irmãos não devem recebê-lo. A composição do texto não permite comentários ou interpretações que justifiquem algo diferente disto. O cuidado com os irmãos enfermos e com as necessidades daqueles que precisam de roupas deveriam ser assegurados por meio de amigos espirituais, a fim de cumprir o princípio acima recordado. Assim constituído, pode-se intuir que o texto da Regra evidencia o grande perigo do dinheiro e, por isso, uma decisão firme para não se fazer o seu uso.
Fato é que, com as mudanças ocorridas na organização das relações sociais que passaram a ter o dinheiro como a moeda de troca, viver neste contexto implica, necessariamente, ter dinheiro para garantir as necessidades mais vitais de qualquer ser humano. Os frades não foram isentados destas mudanças. Não foram poucos, todavia, os questionamentos e as inquietações que se fizeram entre os frades neste processo de passagem do não receberem, conforme prescrito na Regra, até o receberem dinheiro. A situação chegou a tal ponto que no ano de 1970, o Papa Paulo VI, por meio do atualmente denominado Dicastério para os Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica, a pedido dos Ministros Gerais da OFM e OFMCap, declarou que era lícito o uso do dinheiro pelos franciscanos, visto ser este um meio necessário para o intercâmbio, inclusive para o cuidado com os pobres.
Se por um lado a história conduziu a esta necessidade e a este distanciamento do explícito na Regra, por outro, sempre se mantiveram levantados os questionamentos sobre o modo de usar o dinheiro recebido pelos irmãos, a fim de que este modo não os impedisse de viver a intuição e o fundamento carismático do “sem nada de próprio”. O pouco tempo que isto vem sendo praticado já conseguiu criar alegrias e esperanças, luzes e sombras, acertos e situações lamentáveis.
Se não bastasse esta mudança em relação ao “receber dinheiro” e sua implicância interna à resposta dada ao carisma, vive-se nas últimas décadas uma transformação socio-eclesial. Terminou a força de um cristianismo cultural, do poder sacro de uma certa religião na qual já se nascia cristão e de uma sociedade cristã feita de exterioridades e poderes, situações estas sustentadas muitas vezes pelo próprio dinheiro, que bancava uma mentalidade clericalista.
E, ainda, a sociedade que até então aprendia da Igreja o que deveria fazer e como agir, passa a questioná-la e lhe pede explicações de como permitiu que seus membros, principalmente aqueles chamados para o seu serviço, vivessem tão distantes da mensagem do Evangelho por ela anunciada. O modo de usar o dinheiro está, certamente, entre os questionamentos mais gritantes. Não distante de cada um de nós, o mau uso do dinheiro pode expressar uma das maiores contradições entre a mensagem anunciada pelo Evangelho e aquilo que é vivido pelos membros da Igreja.
Neste contexto, o atual momento histórico, incentivado pelas novas posturas da própria Igreja, principalmente pelo impulso dado pelo Papa Francisco, pede-nos, urgentemente, uma renovada relação com o dinheiro, não o tendo mais como expressão de um poder que cria em nós a ilusão de onipotência e imortalidade. O dinheiro passa, assim, a ser uma ferramenta a serviço do carisma e da missão, usada de modo evangelizador, assumida por homens que decidiram “servir a Deus e não ao dinheiro” (Mt 6,24), que acreditam no Evangelho e em sua mensagem, que têm no Pai sua plena e única confiança.
Não se apropriar: o escândalo evitado
Na busca pela fidelidade carismática, mesmo tendo que ceder ao acima recordado e os frades terem passado a receber dinheiro, a certeza que os guiou neste processo foi que o dinheiro nunca seria apropriação pessoal, mas, colocado em comum na Fraternidade, seria um meio para que a própria Fraternidade pudesse cumprir bem a sua missão, mantendo-se fiel à inspiração originária, manifestada, incialmente, em São Francisco. O guia na busca pela fidelidade carismática foi e continua sendo o de sermos irmãos. Estes são o fundamento de todas as considerações feitas sobre o dinheiro e o seu uso.
Para se falar de irmãos, parte-se sempre daquilo que é a base de tudo: cada um deles em sua individualidade. Cada um dos irmãos é responsável por aquilo que é a Ordem hoje, inclusive, no uso do dinheiro. É possível alegrar-nos ao sermos recordados disto, pois são muitos os sinais proféticos já firmados no uso do dinheiro entre os Frades Menores, motivados pelo constante desejo de conversão já assumido pela grande maioria dos seus membros ativos.
Se, por outro lado, ainda fosse possível encontrar alguma dificuldade quanto ao uso do dinheiro na Ordem, – como a apropriação, a falta de confiança mútua que impede o pôr em comum, os dolorosos desvios, a falta de fidelidade carismática que leva ao uso do dinheiro para manter caprichos pessoais em detrimento da atenção para com os pobres, opondo-se ao ser pobre, inclusive em espírito – cada um de nós já não pode mais imaginar-se distante e irresponsável por isto, acusando uma instituição por tais escândalos que têm a sua origem em cada omissão pessoal.
Os possíveis escândalos na Ordem não podem ser considerados maiores ou menores, mensurados pelo valor financeiro envolvido. Existe, sim, um único escândalo que é o de apropriar-se indevidamente daquilo que é dos irmãos e que deve estar a serviço do carisma e da missão. O apropriar-se semeia em nossas Fraternidades a discórdia, a desconfiança, o falar calunioso e leva os irmãos a darem o último suspiro de vida desamparados das mãos dos demais irmãos, que foram levados a isentar-se da responsabilidade mútua, ferida pela onipotência pessoal causada pelo mau uso do dinheiro institucional ou do dinheiro desonestamente considerado pessoal.
Onde está o teu irmão? (Gn 4,9)
Como dito anteriormente, o uso do dinheiro foi-nos inevitável, mas o fato de sermos irmãos é para nós uma escolha livre e pessoal e o caminho para se responder a uma vocação que nos foi dada pelo Senhor. É com eles que antecipo a vivência da Boa Nova e com quem percorro o caminho da Salvação, já que ninguém se salva sozinho. Os irmãos, também no uso do dinheiro, são a instância certa e segura que nos permitem discernir para escolher o caminho que nos leva a chegar juntos até o encontro definitivo com o Pai.
A diversidade de serviço que cada um dos irmãos faz sempre é a riqueza da Fraternidade. Natural que assim seja: “Abel tornou-se pastor de ovelhas e Caim, agricultor” (Gn 4,2). Cada um com sua oferta que ao seu tempo será olhada pelo Senhor. A dificuldade é trazida quando não se sabe alegrar-se com a oferta do irmão, não se sente participante dela ou quando um dos irmãos priva os demais irmãos da oferta que faz a Deus.
O dinheiro que cada um recebe como contrapartida do seu trabalho, aposentadoria ou outras fontes que são o fruto visível do seu sacrifício, é sempre da Fraternidade, pois é a partir dela que se realiza o trabalho e é nela que se adquirem as energias para realizá-lo. A Fraternidade é, deste modo, quem assegura a fidelidade carismática a fim de que o fruto do suor e do trabalho dos irmãos seja oferta justa a Deus para que este a faça frutificar como sementes do Reino.
Quando, entre nós, não colocamos em comum aquilo que recebemos, criam-se certos ruídos e desconfianças. Facilmente, poderemos até nos reunir em orações, refeições, mas estas sempre estarão marcadas pela ausência de uma disponibilidade interior para entregar-se por completo “aos irmãos que o Senhor me deu” (Test 14). Quando nos privamos de colocar nas mãos da Fraternidade o dinheiro recebido, acabamos chagando-as com a desconfiança, distanciando-nos daquilo que prometemos com todas as nossas forças no dia da Profissão, acabando por não ter mais os irmãos como dons dados pelo Senhor. Assim, pode-se crer que se Abel e Caim tivessem oferecido juntos os frutos colhidos, a conversão dos irmãos teria acontecido antes do crime.
Colocado o dinheiro nas mãos da Fraternidade, esta torna-se o local do discernimento sinodal de como melhor destiná-lo, recordando sempre que já foi ofertado a Deus com quem se quer aprender a bem destiná-lo.
O caixa comum e o discernimento fraterno no uso do dinheiro passam a ser a solução para a grande maioria dos problemas. E, quem sabe, a solução dos nossos problemas em relação a Deus, pois, na confiança praticada com os irmãos, aprendemos a criar a fundamental, necessária e decisiva confiança em Deus.
Relação com Deus
Os danos causados pelo mau uso do dinheiro nas relações entre os irmãos são os mais facilmente constatados, falados, criticados e denunciados. Pouco, todavia, se faz referência aos danos causados por este tipo de uso na relação com Deus. Aqui estamos diante do ponto central e decisivo quanto ao uso do dinheiro. Quanto mais usado a partir de critérios pessoais e subjetivos sem ser levado ao discernimento da Fraternidade, além de expressar a desconfiança nos irmãos, coloca-nos a serviço do próprio dinheiro, enfraquecendo a confiança em Deus.
Vivermos presos ao dinheiro impede-nos de ter um coração humilde e livre que saiba acolher a condição de criatura limitada e pecadora que viva de modo não egoísta nem possessivo os laços e os afetos, capaz de vencer a tentação de onipotência que cria em nós a ilusão de ser imortal, incapazes de confiar em Deus e deixar que Ele deposite em nós a sua confiança. A liberdade em relação ao dinheiro permite superar a impressão de que bastaria mais dinheiro para comprar os dias desejados de vida nesta terra e, ainda, que não posso confiar nos meus irmãos no dia do meu sepultamento, dia este para ao qual reservo uma expressiva quantidade de dinheiro que me assegure condições “dignas e justas” às honras às quais me elevei.
Nós acreditamos em um Deus que é relação, comunhão. Deus não vive fechado em si mesmo, reservando para si aquilo que Ele tem. Ele é relação e tem um povo: “Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó” (Ex 3,6). Acreditamos num Deus que é sensível, que sofre com quem sofre. A ideia de um Deus distante, insensível, que reserva para si toda a sua onipotência, contamina a sensibilidade relacional e nunca nos provocará a termos a sensibilidade e disponibilidade do bom samaritano. Pelo contrário, poder-se-á, inclusive, ser levado a defender um deus onipotente que me dê a impressão de também eu ser onipotente, portador de uma sensibilidade possessiva, egoísta, concentrada sobre meus próprios méritos e fadigas, não reconhecendo a gratuidade do amor e nem me tornando capaz de doar-me com tudo aquilo que sou e tenho.
Estamos diante de um desafiante trabalho de formação permanente. Formarmos nossa sensibilidade para a confiança em Deus e nos irmãos, expressas também no uso do dinheiro. Deixarmos de lado a ditadura que nos é imposta pelos nossos sentimentos e deixarmo-nos novamente atrair pelo chamado vocacional que nos foi dirigido um dia expressando nossa resposta também por meio de uma nova economia do uso do dinheiro: a verdadeira, a bela e a boa economia que nos conduz a Deus, por meio dos irmãos.
Frei Robson Luiz Scudela
Definidor Provincial
Capítulo V
O modo de trabalhar
Para celebrar os 800 anos da Regra Bulada, apresentamos neste mês de maio que, por coincidência, inicia-se com o Dia do Trabalho ou do Trabalhador, o capítulo V da Regra escrita por Frei Francisco de Assis e confirmada pelo Papa Honório III, com a Bula Solet Annure, de 29 de novembro de 1223. No início desta reflexão sobre o trabalho, encontram-se algumas passagens alicerçadas nas Sagradas Escrituras e temas como: o trabalho como graça; ressignificar a graça do trabalho; trabalhar fiel e devotamente e a nossa sustentabilidade no espírito de pobreza.
O trabalho é graça
Há duas citações no Livro do Gênesis que ajudam a refletir sobre o trabalho e suas dimensões. Em Gênesis 2,15 lemos: “Tomou, pois, o Senhor Deus ao homem e o colocou no Jardim do Éden para o cultivar e o guardar”. Nesta passagem, o ser humano ainda não pecou, mas já recebeu a graça de cultivar e guardar o Jardim como herança.
Em Gênesis 3,19, aparece a seguinte frase após o pecado: “No suor do rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, pois dela foste tomado; porque tu és pó e ao pó tornarás”. Alguns estudiosos interpretam essas passagens como se o trabalho fosse consequência do pecado (castigo), outros como uma missão dada ao ser humano por Deus (cultivar).
No Novo Testamento, Cristo é operário do Pai, o trabalhador do Reino, o missionário da vida. No Evangelho segundo João 5, 1-17, Jesus ao ser interrogado porque fazia certas coisas no sábado (curar o paralítico), respondeu: “Meu Pai trabalha até agora, e eu trabalho também”.
Nos relatos dos Atos dos Apóstolos (18,3), Paulo também pregou o Evangelho e falou da necessidade de trabalhar com as próprias mãos. Em Corinto, na casa de Áquila e Priscila, ele voltou ao seu antigo trabalho de fabricante de tendas. Em 1Cor 9,18 e 1Cor 9,14, o Apóstolo renuncia ao direito que o Evangelho lhe dá de ser sustentado por ser pregador.
Inspirado por Cristo e pelos Apóstolos, Frei Francisco de Assis reafirmou o trabalho como graça na sua Regra de Vida. Ele, um homem medieval, filho de comerciante, sabia o que era trabalhar. Além do trabalho no negócio do pai, pôde acompanhar o crescimento e o desenvolvimento da cidade de Assis, bem como o novo conceito de trabalho, com o desenvolvimento político, econômico e cultural de sua época.
Quando Francisco iniciou o seu processo de discernimento, reconstruiu algumas igrejas com as próprias mãos. Com a chegada dos primeiros companheiros, eles se põem a trabalhar nas lavouras e nas colheitas com os camponeses, muitas vezes sem receber salário. Não sendo pagos, os frades pediam esmola e, quando a recebiam colocavam tudo em comum.
Na Regra não Bulada e no Testamento, Frei Francisco deixou uma grande herança aos frades, o trabalho como fundamento da vida Evangélica. A herança deixada pelo Pobre de Assis evoca nos frades a busca do justo equilíbrio entre a oração e devoção, a formação intelectual, a vida de simplicidade e o trabalho manual.
O trabalho, dentro da visão franciscana, é definido como graça, pois o ser humano e as suas atividades são vistos desde a suas origens como “dom gratuito de Deus”. Nesta perspectiva, o trabalho é visto como “ação de graças”. Frei Francisco de Assis e seu movimento entenderam em seu tempo que o único “capital” que pode frutificar é o ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus. Frei Francisco contrapõe o “produtivismo” e as suas seguranças, apontando o mundo como “a mesa do Senhor”, onde a fraternidade franciscana não concentra a sua força em direitos ou lucros, mas na esmola e na partilha (Cf. Dicionário Franciscano, 748).
Ressignificar a graça do trabalho
No itinerário formativo dos Frades Menores, por exemplo, em todas as etapas, os jovens se envolvem de maneira responsável e progressiva no trabalho, tão necessário para toda sua vida, e como diz um caro confrade: “vai para o campo” testemunhar. Deste ponto de vista, não faltam entre os frades testemunho. Quem não se lembra ou conviveu com bons frades, que sem dizer muitas palavras, motivava o trabalho pelo seu exemplo. Bons religiosos: marceneiros, padeiros, sapateiros, artistas, professores, formadores, missionários, etc. O que mantinha nesses homens a disposição para o serviço?
Não precisamos ficar presos ao passado. O que motiva o Frade Menor a trabalhar hoje? O tempo em que vivemos, com suas rápidas transformações, exige do franciscano uma sólida formação com fundamentos claros, sem prepará-lo para uma única profissão. O sujeito deve transitar por diversas áreas do conhecimento. Fica cada vez mais claro que os estudos filosóficos e teológicos não são suficientes para enfrentar os desafios da primeira transferência após a formação acadêmica.
Neste ponto, surge uma pergunta que pode ajudar a refletir: o que significa redefinir a graça do trabalho hoje?
Com a diminuição e o envelhecimento dos religiosos e o possível aumento das atividades, os frades não estão trabalhando muito? Ou talvez, por certas comodidades e garantias, ou por perca do entusiasmo religioso, não se trabalha pouco com horário marcado e dias da semana estabelecidos?
Cada um pode examinar a sua consciência e o seu projeto de vida, porque aqui, mais que uma resposta de como ressignificar o trabalho, a questão agora é a fé do sujeito e a sua identidade religiosa.
Para os Frades Menores, o trabalho é uma graça que enobrece a vida e a torna fecunda. O trabalho, qual seja, intelectual ou acadêmico, religioso e pastoral, manual e doméstico, formativo e educacional, é um ato sagrado e diz a quem o franciscano pertence. O Frade Menor, que vive o trabalho como graça, compreenderá ao longo da vida que a sua ação é digna e ajuda na edificação do Reino de Deus.
Trabalhar fiel e devotamente
Lendo o capítulo V da Regra Bulada, pode-se concluir que o objetivo do trabalho é duplo: manter os frades longe da ociosidade, a qual é a verdadeira inimiga do homem e da alma, e não perder o espírito de oração e devoção. A força do trabalho, vivida como graça, combate a perversão, a murmuração, o espírito de ganância e acumulação, o desejo de exploração do ambiente e dos outros.
Existem vários versículos no Livro dos Provérbios que descrevem o ser humano que parece não entender o trabalho e suas dimensões: “O preguiçoso ambiciona e nada alcança, mas os desejos daquele que se empenha na obra serão plenamente satisfeitos” (Pr. 13,4); “O preguiçoso não ara a terra devido ao clima frio; no entanto, na época da colheita procura por frutos, mas nada encontra” (Pr. 20,4); “O preguiçoso é aquele que morre ‘desejando’, mas nunca põe de fato as mãos no trabalho!” (Pr. 21,25).
Frei Francisco chama o frade que não quer trabalhar de “irmão mosca”. Aquele que vive à toa, sem abraçar o projeto de vida da Fraternidade. São Paulo é claro e direto: “Quando ainda estávamos convosco, vos ordenamos isto: se alguém não quiser trabalhar, também não coma” (2Tes. 3,10).
Na Regra Bulada, Frei Francisco também expressa o espírito com que se deve trabalhar: “Aqueles irmãos aos quais o Senhor concedeu a graça de trabalhar, que trabalhem com fidelidade e devoção, para que, tendo banido o ócio, inimigo da alma, não extingam o espírito de santa oração e devoção ao qual todas as outras coisas temporais devem servir” (RB,5). Neste ponto não há dúvida de que as características franciscanas do trabalho são a “fidelidade” e a “devoção”.
O trabalho fiel pode ser compreendido como realização, ser constante, dedicado, vigoroso a cada dia. Trabalhar fielmente não é somente fazer bem feito. Trabalhar fielmente significa fazê-lo com fé, no caso dos franciscanos, reconhecendo sua identidade e missão e direcionando seus esforços no trabalho pelo Reino.
A devoção é a dedicação, cuidado e estima pelo considerado mais importante. Na tradição cristã, a devotio ad Deum é um trabalho permanente, é todo esforço e reconhecimento da centralidade que Deus deve ocupar na vida de quem crê. No caso dos religiosos, a devotio é também permitir que Deus trabalhe na vida, ou seja, trabalhar com ele, na Fraternidade, na Ordem, na Igreja e no mundo.
Talvez valha a pena notar que a devoção é a Deus, e não a si mesmo. O trabalho em alguns casos pode se tornar quase uma idolatria, vaidade das vaidades, uma eficiência superficial como uma primeira demão de verniz que, até brilha, mas por pouco tempo.
O trabalho com devoção é o trabalho na gratuidade pelo Reino. Quando um religioso faz algo para alguém (trabalho), muitas vezes ele se surpreende com o brilho nos olhos, com um muito obrigado, com um abraço, ou com um Deus te abençoe, esses gestos valem mais, muito mais, do que o dinheiro que se tem e que, também é necessário para o sustento.
A nossa sustentabilidade no espírito da pobreza
Para Frei Francisco de Assis, o dinheiro não determina nem condiciona o trabalho. No capítulo V da Regra, ele escreveu: “Quanto à paga do trabalho, recebam o que for necessário ao corpo, para si e seus irmãos, exceto dinheiro de qualquer espécie; e isto realizem com humildade, como convém aos servos de Deus e seguidores da mais santa pobreza”.
Não tem como refletir as palavras de Frei Francisco neste capítulo da Regra sem uma referência com o capítulo anterior, com o título: “Que os irmãos não recebam dinheiro”. No período pós-conciliar, no trabalho de “retorno a fontes” do carisma originário, chegou-se à conclusão de que os pobres e os trabalhadores usavam o dinheiro e que assim funcionava o mundo. Os frades decidiram usar o dinheiro e receber o que fosse necessário para o seu sustento e sua missão evangelizadora.
O trabalho deste período pós-conciliar, com a criação dos serviços de ecônomo geral, provincial e das Fraternidades, visava uma maior transparência econômica e um projeto fraterno, também no modo de trabalhar, no uso e na administração dos bens.
Quase 60 anos após do início dos trabalhos pós-conciliares de renovação da Ordem dos Frades Menores, não se pode deixar de fazer um exame de consciência e avaliar se a maneira de trabalhar do Frade Menor é um eficaz testemunho evangelizador, que passa pela dimensão pessoal e chega à dimensão fraterna. É difícil refletir sobre o trabalho e a vida de pobreza sem cair no moralismo. Entretanto, o modelo ideal de trabalho e de vida de pobreza para os Frades Menores é sempre Cristo, sua Mãe e seus discípulos, Frei Francisco e Irmã Clara de Assis.
No cenário de renovação conciliar, a vida de trabalho e o uso do dinheiro foram pensados para o Frade Menor ser coerente com a sua própria Forma de Vida. Antes desse período, os franciscanos não eram administradores e as propriedades que usavam pertenciam à Santa Sé. As relações com o mundo do trabalho também eram outras. Os franciscanos trabalham muito, não há dúvida, contudo, quando não se abraça um projeto de Igreja, de Ordem, de Província e de Fraternidade, mais cedo ou mais tarde, os bens e o trabalho se perdem pelo caminho, e as dívidas e o falimento aparecem.
O fato é que todos os Frades Menores são administradores, cada um a seu modo, da atividade que desenvolve. Trabalhar e administrar o seu tempo com Deus, trabalhar e administrar os afazeres do dia. Frei Francisco recorda que a força e o discernimento para a vida de trabalho vêm da busca constante do espírito de oração e devoção.
A sustentabilidade do Frade Menor no espírito de pobreza não consiste num “reinventar da roda”, mas em viver o que está contido no Evangelho e na Regra. Assumir um projeto fraterno de vida e missão, trabalhar com fidelidade e devoção, administrando suas necessidades e usando o dinheiro com responsabilidade, colocando em comum com generosidade o que se recebe. Se o frade trabalha diretamente com a administração, deve ter consciência que os bens não são seus, e sim da Fraternidade. Se administra a economia, ela deve ser transparente, verdadeira e confiável. Assim, se sabe de onde vem o que se tem e para onde vai o que se recebeu. Em um ambiente saudável, a prestação de contas é um instrumento fraterno de cuidado e não de controle e opressão.
Portanto, o modo franciscano de trabalhar não será um problema de identidade e nem de fé. A generosidade e a partilha fraterna fazem com que o Frade Menor reconheça, ame e escolha sempre a Senhora Pobreza, mulher evangélica, elegante e perfumada, que instiga o desejo de não trocar o Eterno por coisas passam.
Para comemorar os 800 anos da Regra Bulada, recorre-se as palavras de Frei Francisco, que reafirma a necessidade de um trabalho honesto e justo, sem se escravizar, esconder-se, ou ainda, sem sequer fazer do trabalho um instrumento de poder e opressão, lucro e acúmulo.
O trabalho faz parte constituinte do carisma franciscano, é ação de graças, é restituição, é dom oferecido por Deus e para Deus, é dedicação, seja com as próprias mãos ou pelo intelecto. O trabalho é suor, é alegria, é realização. Tomás de Celano na Primeira Vida de São Francisco (1Cel 103), nos apresenta a convocação do Pobre de Assis que ainda diz muito em os nossos dias: “Comecemos, irmãos, pois até agora pouco ou nada fizemos”, resta aos Frades Menores, continuarem seu trabalho, na fidelidade e devoção, na minoridade e simplicidade. Bom trabalho!
Frei Gilberto da Silva
Professor e vice-mestre da Teologia
Fontes:
Dicionário Franciscanos. Petrópolis: CEFEPAL-Vozes, 1993.
Cacciotti Alvaro – Melli Maria. La grazia del lavoro. Milano: Biblioteca di Frate Francesco, 2010.
La grazia di Lavorare. Lavoro, Vita consacrata, francescanesimo. Org. Paolo Martinelli – Mary Merlone. Bologna: EDB, 2015.
Fontes Franciscanas e Clarianas, Petrópolis: Vozes – FFB, 2004.