Carisma - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Especial 800 anos do Cântico das Criaturas

Apresentação

Toda a Igreja, a Família Franciscana e a Ordem dos Frades Menores (OFM) celebram, neste ano de 2025, o Jubileu dos 800 anos do “Cântico das Criaturas”, de São Francisco de Assis, também conhecido como “Cântico do Irmão Sol”.

O texto revela um dos momentos marcantes da vida do Santo Seráfico em seu encontro especial com Deus ao contemplar as maravilhas da criação e, nelas, compreender a presença do Criador, que lhes dá sentido.

Conforme consta nas orientações da Conferência da Família Franciscana (CFF) para as celebrações do centenário:

“Todas as criaturas, espelho das perfeições divinas, são irmãos e irmãs porque são obra e dom do mesmo Autor. Todas juntas constituem o coro da criação, que contempla, louva e agradece a Deus Criador, ‘o grande Esmoler’, que dá amplamente e com bondade (2 Celano 77). O Cântico é a expressão e a confissão conclusiva da vida do Poverello, que recapitula todo o seu caminho de conformação a Cristo, o Filho amado. A sua fé na paternidade de Deus torna-se um canto de louvor que proclama a fraternidade de todas as criaturas e a sua beleza. Na verdade, ‘Francisco via, nas coisas belas, a beleza suprema do Criador, e pelas pegadas que ele deixara impressas nas coisas, ia seguindo o Bem-amado, de tudo se servindo como escada para subir e chegar àquele que é todo desejável’ (Legenda Maior 9,1).”

Essa inspiração manifestada por São Francisco permanece atual e é celebrada em um momento marcado pelas mudanças climáticas que assolam o mundo e chamam a humanidade a olhar para si mesma, para os impactos de suas atitudes na natureza e para a própria existência.

Diante da urgência ambiental, o ano de 2025 também é marcado pela celebração dos dez anos da encíclica Laudato si’, do Papa Francisco, que trata do cuidado com o meio ambiente e com as pessoas, bem como da relação entre Deus, os seres humanos e a Terra. O subtítulo da encíclica, “Sobre o Cuidado da Casa Comum”, reforça seu objetivo.

Da mesma forma, a atualidade também está marcada pelas guerras que matam milhares de pessoas em diferentes localidades do planeta e trazem danos irreparáveis à humanidade.

Neste cenário de guerras motivadas por interesses econômicos, nas quais a humanidade e a natureza estão ameaçadas, a Igreja celebra o Ano Santo da Esperança, momento em que os cristãos católicos são convidados a se unirem a favor da paz, do bem e do amor.

A celebração dos 800 anos do Cântico das Criaturas revela, além do seu valor teológico, espiritual e humano, a urgência de evidenciar ainda mais a temática ecológica e energética. Podemos dizer que é uma resposta à sensibilidade franciscana de olhar para a natureza e ver nela a presença divina.

No Cântico das Criaturas, São Francisco nos chama para o encantamento, cantando a natureza pela sensibilidade do coração, onde Deus habita em nós, de forma que nos permite louvar Aquele que está na origem de tudo.

No seguimento de Jesus Cristo e fiel ao Evangelho, o santo fundador da Ordem dos Frades Menores buscou e encontrou o caminho, como nos mostra o Salmo 8:

Ó Senhor, nosso Deus, como é glorioso teu nome em toda a terra!
Sobre os céus se eleva a tua majestade!
Da boca das crianças e dos lactentes te procuras um louvor contra os teus adversários,
para reduzir ao silêncio o inimigo e o rebelde.
Quando olho para o teu céu, obra de tuas mãos,
vejo a lua e as estrelas que criaste:
Que coisa é o ser humano, para dele te lembrares,
o filho do homem, para o visitares?
No entanto, o fizeste só um pouco menor que um deus,
de glória e de honra o coroaste.
Tu o colocaste à frente das obras de tuas mãos.
Tudo puseste sob os seus pés:
todas as ovelhas e bois, todos os animais do campo,
as aves do céu e os peixes do mar,
todo ser que percorre os caminhos do mar.
Ó Senhor, Senhor nosso, como é glorioso o teu nome em toda a terra!

O Cântico das Criaturas é capaz de unir matéria e humanidade; vida e consciência, para nos mostrar que cuidar da natureza é o melhor caminho para engrandecer e louvar a Deus, bem como promover, valorizar e contemplar a criação.

Como ainda nos lembram as orientações da CFF para esta celebração:

“Estamos perante um desafio antropológico e ecológico que determinará o nosso futuro, porque está ligado ao futuro da nossa Mãe e Irmã Terra. Somos convidados a reencantar a sociedade contemporânea com ‘a língua da fraternidade e da beleza na nossa relação com o mundo’ (Laudato si’ 11).”

Neste especial, trazemos reflexões, por meio de artigos produzidos pelos frades da Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil, que, além dos elementos que compõem o Cântico das Criaturas, como o sol, o fogo, as estrelas, a água e o vento, nos conduzem a um reencontro com Deus e com a natureza. São reflexões que nos impulsionam ao nosso próprio encontro com o divino, de forma que possamos compreender o quanto somos parte de um todo que é interdependente para a sua existência, visto que somos obra da mesma criação.

 

São Francisco de Assis amou todas as criaturas de Deus, vivendo assim uma fraternidade universal!

Altíssimo, onipotente, bom Senhor, teus são o louvor, a glória, a honra e toda a bênção. Só a ti, Altíssimo, são devidos; e homem algum é digno de te mencionar.

Com pés descalços e batas remendadas, São Francisco de Assis (1182-1226) perambulava pela cidadezinha italiana de Assis, a 184 quilômetros de Roma, e arredores. Enquanto a sociedade da época enfatizava a inclinação humana ao pecado, o religioso preferia louvar as belezas da Criação. Reverenciava as virtudes do homem e a perfeição da natureza. Observava em êxtase o vôo dos pássaros. Dormia sob as estrelas. Inalava a brisa perfumada dos campos. O planeta era sua casa sagrada.

Mas isso foi depois que o jovem festeiro, batizado como Giovanni di Pietro Bernardone – o Francesco foi acrescido pelo pai, um rico comerciante, em homenagem à França – rompeu com a rede de confortos que o amparava. Entre outros motivos, porque em três ocasiões ouviu do Cristo na cruz: “Vai, Francisco, e repara minha Igreja, que está em ruínas”.

O pedido foi literalmente atendido. A igrejinha de São Damião, perto de Assis, recebeu os devidos cuidados. No entanto, o episódio representou um chamado mais profundo. Era o Senhor convocando-o a reanimar a fé dos fiéis com seu entusiasmo e simplicidade.

O auge dessa transformação culminou com a entrega definitiva aos desígnios de Deus. Na cena memorável do filme “Irmão Sol, Irmã Lua” (1972, de Franco Zeffirelli), que narra a biografia do santo, o belo rapaz se despe em praça pública e, renascido, atravessa o portal da cidade, rumo à missão de semear o Evangelho junto dos miseráveis e da natureza. Logo outros adeptos se uniram a ele e, com a bênção do Papa Inocêncio III (1161-1216), formou-se a ordem religiosa Franciscana ou Ordem dos Frades Menores (OFM), alicerçada no amor a uma fraternidade universal!

O CÂNTICO DO IRMÃO SOL

Altíssimo, onipotente, bom Senhor,

teus são o louvor, a glória, a honra

e toda a bênção.

Só a ti, Altíssimo, são devidos;

e homem algum é digno

de te mencionar.

Esta é a introdução do Cântico das Criaturas. Nela, São Francisco deixa claro que o único motivo deste cântico é o Altíssimo. Pode-se dizer que neste trecho está a dedicatória de todo seu louvor, de forma simples louva a grandeza de Deus com grande humildade.

Ao compor este cântico, Francisco dá um grande passo para o desenvolvimento de toda a mística posterior à sua morte, pois, mostra que Deus é Todo-Poderoso, mas que ao mesmo tempo é muito próximo do ser humano pela pessoa de Jesus Cristo.

Francisco se coloca entre aqueles que fizeram a experiência mística de Deus e isto não faz dele um homem diferente, mas com esta experiência nos deixa a lição de que também somos capazes de fazer esta experiência com Deus. Francisco em sua relação com a natureza chega ao conhecimento de Deus, pois, a Criação é o espelho do Criador e o Cântico das Criaturas é a prova de que ele experienciou Deus na Criação.

Louvado sejas, meu Senhor,

com todas as tuas criaturas,

especialmente o senhor Irmão Sol,

que clareia o dia

e com sua luz nos alumia.

E ele é belo e radiante

com grande esplendor:

de ti Altíssimo, é a imagem.

Francisco, devido à enfermidade nos olhos, não mais enxergava. Sua alma também estava em escuridão, pois, além das dores corporais sofria pelas grandes dúvidas e começava a não mais enxergar esperança. No entanto, em sua infinita confiança no Criador, canta a forma mais sublime de expressão de Deus na linguagem humana o “Sol”. Toda criatura na face da terra depende do sol para sua sobrevivência. Francisco ao usar a figura do sol quer nos mostrar que não podemos sobreviver sem Deus, que é luz e nos ilumina no caminho de nossa existência. Ao usar a figura do sol, Francisco se liberta da dor e da limitação visual, pois para ele o sol tem beleza única. Retoma uma tradição dos primeiros cristãos: colocar na imagem do sol toda a beleza da Criação. Portanto, o sol é a imagem da indescritível beleza de Deus.

Na maioria das culturas o sol tem um papel primordial, pois ele representa a vida, sem a luz e o calor do sol nada pode sobreviver. Cristo é o novo sol que brilha na escuridão do pecado e da morte, e Francisco em meio a esta escuridão encontra na imagem do Sol, o Cristo que ele tanto amou e louvou.

A mensagem que São Francisco quer nos transmitir, é que tenhamos sempre Deus como nosso sol, como aquele que nos fortalece e nos dá vida, nos conduz por caminhos bons. Sem Deus nada seríamos, assim como sem o sol não conseguimos viver. Francisco tem o sol como “irmão”, pois apesar de sua beleza radiante tem como condição ser criatura do único e verdadeiro sol de nossas vidas: Deus. O sol representa dentro do Cântico das Criaturas a constância, a presença de Deus em nossa vida.

Louvado sejas, meu Senhor,

Pela Irmã Lua e as Estrelas,

Que no céu formaste claras

E preciosas e belas.

E para, então, dar continuidade à luminosidade de Deus em sua vida, Francisco continua seu louvor ao Criador pela Lua. Tudo o que reflete no firmamento da noite, qualquer luz, ele chamou para dentro de sua existência mística. Sabia que a lua e os astros eram reflexos da beleza divina.

A lua não é um astro fixo, ela varia em vários momentos do ano, assim como as estrelas. A lua dentro do Cântico das Criaturas representa a grande variação da existência humana. Nascemos, crescemos e morremos: eis o ciclo da vida. A lua também tem o seu ciclo. Mas assim como a lua tem o ciclo e representa várias etapas no plano dos astros, ela não deixa de refletir a beleza de seu Criador. A existência do ser humano também é assim, por mais que atinja seus altos e baixos, por mais que tenhamos consciência de nossa finitude, o sopro do Criador continua presente em nossas vidas.

Francisco encara a existência humana em sua realidade, colocando-a em seu extremo, assumindo todas as suas vicissitudes, mas sem deixar de louvar o Criador. Assim, também podemos encarar a lua com olhar fixo, diferente do sol. Ao pensarmos nisso, percebemos que Francisco relaciona a realidade com a própria lua, que nas várias fases de sua existência, não deixa de refletir a imagem do Criador.

Louvado sejas, meu Senhor,

pelo Irmão Vento,

pelo ar, ou nublado

ou sereno, e todo o tempo,

pelo qual às tuas criaturas dás sustento

Sem o ar não poderíamos respirar e, assim, iríamos morrer. Sem o vento tudo seria imóvel. Sem as nuvens não teríamos a chuva, que através de sua força regulam a terra e, de forma misteriosa, faz produzir nosso sustento.

O homem depende tanto da natureza e dos elementos que ela contém, quanto de todas as formas de expressão sobre ela, que incluem grande suavidade e beleza. A natureza e seus elementos têm este poder incrível de suscitar no homem tão grande admiração e apreço, seja aos olhos da carne, seja aos olhos da fé.

Francisco sempre nos lembra de nossa finitude e de nossa relação com a Criação. Não somos autossuficientes, dependemos da Criação, pois somos parte dela. O homem só vai conseguir entender o verdadeiro sentido de sua existência quando tomar consciência de pertença à Criação e de todo o meio ambiente.

Louvado sejas, meu Senhor

pela Irmã Água,

que é mui útil e humilde

e preciosa e casta.

Francisco tem na água a imagem da mais perfeita louvação a Deus, pois ela é pura, humilde, preciosa e casta. A água em sua forma mais simples de louvar a Deus demonstra real valor na grande utilidade que tem. Nenhum ser vivente pode sobreviver sem água, que louva a Deus na sua relação de intimidade com a natureza.

A água, assim como Deus, está presente em todos os lugares, na composição do ser humano, na natureza, no espaço. Ela louva a Deus nas outras criaturas. Francisco a contempla como casta, pois assim como a castidade faz com que direcionemos todas as nossas forças a Deus, a água, em todos os lugares onde está e em todas as suas formas, está sempre louvando a Deus, através de si mesma e das criaturas.

Água é vida e através dela nós iniciamos uma nova vida. A água do batismo nos lava e nos introduz no mistério de Cristo. A água está presente em todas as etapas da vida do ser humano. Através da água conseguimos ativar todos os sentidos do corpo. A água é tão necessária que sua existência é simplesmente absoluta e misteriosa.

Para nós cristãos a água representa a simplicidade de Deus. Francisco nos ensina a termos um total cuidado para com a água. Diante deste ensinamento podemos nos perguntar: “Cuidamos da irmã água como ela deve ser cuidada?”.

Louvado sejas, meu Senhor,

pelo Irmão Fogo

pelo qual iluminas a noite.

e ele é belo e jovial

e vigoroso e forte.

Francisco louva o “irmão fogo” também como algo indispensável para a vida humana. O fogo junto com o ar, a água e a terra formam os quatro elementos indispensáveis na vida do homem. Francisco quis louvar a Deus por tudo isso, pelas criaturas finitas, para que através delas se revelasse a infinitude do Altíssimo. Vê no fogo uma constante ascensão. Um dos símbolos da Igreja é o fogo, que representa o Espírito Santo, que deve, como o fogo, sempre queimar dentro de nós.

Francisco tinha plena consciência da utilidade e da grandeza do fogo, pois sua devoção para com ele partia do reconhecimento deste como símbolo de Deus. Porém, se limitou a louvar a Deus através de sua beleza, sua luz e seu brilho.

Temos na história da humanidade uma etapa conhecida como a “era do fogo” onde o homem toma consciência do uso do fogo. Infelizmente nem todos os homens sabem usar o fogo, atacando a natureza e a si próprio. O fogo possui um caráter dualístico, pois pode representar o bem e o mal; um exemplo: “o fogo ardente da paixão e o fogo destruidor da ganância e do ódio”. O fogo foi assim colocado como símbolo de sentimentos humanos, devido a sua grande importância na existência e no desenvolvimento da humanidade.

Francisco vê no fogo a presença de Deus, que ao mesmo tempo em que pode ser suave ao aquecer adequadamente um ambiente, pode ser forte e destruidor. Deus não se define pelas qualidades de suas criaturas, mas reflete a sua imagem nelas.

Louvado sejas, meu Senhor,

por nossa Irmã a Mãe Terra,

que nos sustenta e governa,

e produz frutos diversos

e coloridas flores e ervas.

Francisco considera a terra como mãe e irmã. Mãe no sentido daquela que nos acolhe, a casa da humanidade e irmã, no sentido de obra da Criação. Ao exaltar louvores a Deus pela irmã terra, nos lembra que somos feitos do pó da terra, do pó viemos e para o pó voltaremos, não em uma caminhada sem sentido, mas caminhando rumo ao Reino de Deus. Nosso corpo volta para a sua origem, a terra, e nossa alma volta para a sua origem, o Criador. Deus opera maravilhas em nossa vida, utilizando a terra como meio de ação. Deus nos concedeu a terra para nela trabalharmos e tirarmos o nosso sustento, que vem de um harmonioso encontro entre a nossa boa vontade em trabalhar e a generosidade da terra em nos conceder os seus frutos.

Francisco em seu cântico demonstra o grande amor que tem pela terra, Casa Comum da humanidade. Nos ensina que devemos cuidar da harmonia desta casa, pois fazemos parte dela. Toda a terra com tudo que ela possui é criação Divina, feita por livre e espontânea vontade de Deus, fruto de seu eterno amor por nós.

Louvado sejas, meu Senhor,

pelos que perdoam por teu amor,

e suportam enfermidades

e tribulações.

Bem-aventurados os que as

sustentam em paz,

que por ti, Altíssimo, serão coroados.

Este trecho do Cântico surgiu por razão de um conflito na cidade de Assis, entre o bispo e o prefeito. Francisco, ao ficar sabendo do fato, compõe este verso e manda que seus frades o cantem em praça pública, promovendo a reconciliação entre o prefeito e o bispo da cidade de Assis.

Mas Francisco agora chega ao auge da Criação, o “HOMEM”. Só o homem é capaz de gerar dentro de si o sentimento de perdão. Os animais não têm esta consciência. O homem foi colocado pelo Altíssimo no topo de toda e qualquer beleza criada, para que fosse dentro da obra da Criação, ponto de convergência, o seu harmonizador.

Francisco foi o “Arauto da Paz”, pregou a paz não com palavras soltas ao vento, mas pregou com o testemunho. A sua vida inteira foi um protesto de paz entre os homens, um protesto para que os homens pudessem olhar para dentro de si mesmo, pudessem contemplar a beleza que possuíam em si mesmo. Ele tinha autoconhecimento, por isso pregava a paz e o perdão. Só pode falar de paz e perdão quem conhece a si e vive dentro de si estes sentimentos.

A paz é resultado de um processo familiar, se houver paz dentro de nossas casas, haverá paz em toda a sociedade. Francisco nos ensina que devemos ser pessoas de paz e ensina mais ainda a seus frades, na Regra de 1223, que as primeiras palavras de um frade ao entrar em uma casa sejam estas: “Paz a esta casa!”.

A paz é questão de igualdade entre todos. Se queremos viver em paz conosco, com os irmãos e com a Criação devemos então começar a agir com igualdade. Francisco se faz igual a todos como criatura e menor de todos como irmão. Deus com sua Criação nos dá uma grande lição de paz, “pois Ele faz chover sobre justos e injustos”. Se começarmos a tomada de consciência pela igualdade, começaremos a caminhar rumo à sociedade que tanto sonhamos.

Louvado sejas, meu Senhor,

por nossa Irmã a Morte corporal,

da qual homem algum pode escapar.

Ai dos que morrerem em pecado mortal!

Felizes os que ela achar

conformes à tua santíssima vontade,

porque a morte segunda não

lhes fará mal!

Francisco integra em seu texto este trecho provavelmente no ano de 1226, quando sua passagem à vida eterna estava próxima. Francisco nos lembra mais uma vez de nossa finitude enquanto criaturas. Quando Francisco compôs este trecho ele já visualizava suas angústias. As dores no seu corpo eram muitas e não só Francisco era atormentado, mas também os primeiros companheiros.

Francisco era cantor por natureza, sempre desejou ardentemente cantar. Naquela tarde quando ele contempla a irmã morte, pede então a seus frades que cantem com louvor e devoção o Cântico das Criaturas, que já teria se tornado o canto oficial dos Frades Menores.

Francisco encara a morte não como fim último do homem, mas encara a morte como caminho para Deus. Não podemos chegar a Deus se não morrermos. Por isso, Francisco a chama de irmã morte, pois ela como irmã nos leva à presença de Deus.

A morte é o grande enigma da humanidade, ninguém sabe explicar ao certo o que seria este fenômeno “morte”. A visão cristã nos apresenta Cristo morto, porém, Ressuscitado. O próprio filho de Deus passa pelo mistério da morte, mas ressuscita de forma gloriosa para nos dizer que a morte foi vencida com sua própria morte e ressurreição. A morte para o cristão é o fim de uma existência meramente material, mas uma continuação de uma existência na eternidade junto a Deus. E Francisco vive esta certeza no seu itinerário existencial, e nos dá grande lição ao encarar a morte com naturalidade.

Francisco também nos alerta sobre a questão do pecado e quando ele diz “ai de quem morrer em pecado mortal”, nos diz que devemos todos estar preparados para a passagem para junto do Pai. O pecado na vida do ser humano não deve ser entendido como algo moral ou que esteja ligado ao comportamento social. O pecado é agir contra a dignidade do homem e, assim sendo, não cumprir com o projeto Divino é estar fora da Graça de Deus. O amor de Deus deve nos unir como irmãos, este é o grande mistério da vida de Francisco. O pecado existe quando nos fechamos em um egoísmo, chegando ao ponto de dividir o nosso próprio “eu”.

Francisco não age de forma moralista, condenando a todos, mas nos alerta sobre nossa humanidade que sempre está propensa ao pecado. Ele nos alerta que a graça de Deus está sempre presente em nossas vidas e que não podemos deixar que se acabe por razão de nossos pecados. Em nossa existência está presente o pecado, mas muito maior é a graça e a misericórdia de Deus. Francisco viveu e cantou esta realidade com a própria vida.

Louvai e bendizei a meu Senhor,

E dai-lhe graças e servi-o com grande humildade.

Francisco ao compor o Cântico das Criaturas não pensa em um solista, mas convida todos a cantarem louvores ao Altíssimo. Este convite feito de forma espontânea e muito tranquila não nos obriga a louvar a Deus, pois somos livres. No entanto, ao tomarmos consciência de que nosso fim é louvar o Criador em tudo o que fazemos, a nossa existência toma novo sentido e novo sabor.

Francisco tem plena consciência da limitação humana, mas ele não se preocupa com isso, pelo contrário, usa da humanidade para louvar a Deus. Usa todos os elementos que tem a seu favor para louvar e bendizer a Deus. O que faz do Cântico das Criaturas uma obra de arte tão bela e uma experiência mística tão forte é a grande humildade que se encontra em todos os seus versos. Em nenhum momento Francisco se vangloria de sua forma de escrever e de seu modo de louvar a Deus, mas se coloca sempre humilde, como a menor de todas as criaturas que se coloca em perene louvor diante de Deus.

Francisco nos ensina que devemos louvar sempre a Deus, porque desde o início de nossa existência ele já nos amava com gratuidade total. Podemos nos perguntar: o que é a criatura diante de tanto amor? Como diz o salmo 8, “o que é o homem para dele assim vos lembrardes e o tratardes com tanto carinho?”. Assim como Deus constituiu toda a Criação por amor, ela continua a ser amada por Ele e por isso devemos louvá-lo. O pensamento racional nos mostra que somos seres que caminham em busca de respostas. Francisco contraria este pensamento e nos responde que somos seres que caminham para o amor de Deus. Tomar consciência deste amor de Deus para conosco faz com que o louvemos com mais intensidade e foi isto que aconteceu com Francisco de Assis. Tomou consciência de sua existência, de sua relação com os irmãos e com a Criação e, principalmente, tomou consciência do amor de Deus, e isto fez surgir dentro de seu peito inflamado sempre mais amor pelo “amor que não é amado”, e o Cântico das Criaturas, é a mais bela e humilde expressão franciscana de amor.

Francisco nos deixa uma lição de vida: para chegarmos a amar como Jesus amou, devemos ser mais humildes, servir e louvar a Deus nos irmãos a todo instante.

CONCLUSÃO

Francisco, no Cântico das Criaturas, demonstra que possui uma sensibilidade existencial imensa, dentro da espiritualidade humano-cristã. Francisco, ao escrever este Cântico, tem o intuito de nos mostrar quão frágil é o ser humano e quão esplêndido é Deus. Ele não faz comparativos entre animais racionais e irracionais, ele engloba todo o cosmo, e este como criação divina, como fraternidade universal.

O amor de Deus é expresso em todas as realidades e esta é a mensagem que Francisco nos transmitiu. A experiência mística de Francisco se foca em seguir o Cristo pobre, humilde e crucificado que, ao se encarnar, coloca toda a Criação em pé de igualdade e louvor diante de Deus. Dizia Francisco “em Deus somos, nos movemos e existimos”, ou seja, nossa realidade existencial só tem sentido em Deus.

O Cântico das Criaturas é o convite universal que Francisco faz. Convite este que nos convoca a louvarmos a Deus por toda a eternidade, não louvores criados por nossa inteligência e capacidade, mas louvores que se dão com o nosso próprio modo de ser. “Diante de Deus somos aquilo que somos”.

A realidade divina na Criação não é escravocrata, mas de gratuidade cordial. Louvamos a Deus em gratuidade de espírito. Portanto, no Cântico das Criaturas, que procede da experiência mística de Francisco de Assis, está sintetizado de forma simples e objetiva, o sentido de toda existência criacional, louvar a Deus.


Frades da Fraternidade  Nossa Senhora da Penha

Luz da Vida e da Salvação

“Louvado sejas meu Senhor, com todas

as tuas criaturas, especialmente o Senhor

Irmão Sol, que clareia o dia e com sua luz

nos alumia. E ele é belo e radiante com grande

esplendor: de ti, Altíssimo é a imagem”

Sol …o centro de nosso sistema planetário, estrela média diante de outras milhares, mas essencial em nossas vidas (cf, Mt. 5,45). Sem o sol não haveria calor, vida, alimentos. Francisco, admirado com a graça que Deus concedeu a todos nós pode exclamar: “Louvado Sejas meu Senhor…”  Louva dois sóis… o primeiro refere-se ao astro luminoso fonte de radiação pela fusão de hidrogênio transformado em hélio…mesmo sem saber dessa reação radioativa e diga-se, o que importa é que nos aquece e faz tudo florescer, sabe que é dom de Deus que tudo provê ao ser humano. (tg.1,17)

O segundo sol é Jesus Cristo… o Sol da justiça que ilumina tudo e todos nesse mundo e que deve aquecer os nossos corações com o amor e a misericórdia. Se o astro-rei, o sol é o centro do nosso sistema planetário, Jesus Sol de Justiça, deve ser o centro de nossas vidas, seja pessoal, seja comunitária. De que forma? Usando dos atributos desse Sol de Justiça: amor e misericórdia. O amor leva à comunhão fraterna, devo amar meu irmão, corrigi-lo, admoestá-lo, sempre buscando a comunhão e nunca a divisão. Alguma vez lemos ou ouvimos dizer: S. Francisco se vingou…deu o troco…? Pelo contrário, as muitas e diversas narrativas de sua vida mostram sempre o amor apesar do erro, falha ou pecado. Poderíamos citar muitos textos, mas quero recordar aquele dos ladrões que ao pedirem comida a Fr. Ângelo receberam dura reprimenda …e depois Francisco, ao saber, mandou-o desculpar-se em seu nome. (Fior 26) Exemplo de amor a todos …”Deus não faz acepção de pessoas” (At 10,34). Portanto, não excluamos nenhum confrade de nossas fraternidades, deve haver correção e conversão, sempre…sem vencidos ou vencedores pois, quem vence é o amor ensinado pelo Rei que ilumina tudo e todos. O Evangelho é claro, se não há conversão, permaneço à sombra por escolha pessoal.

Quando Francisco compôs o cântico e também a melodia, que ensinou a seus companheiros, tinha em mente algo precioso: deveria ser declamado para abrir os olhos e o coração das pessoas insensíveis, proporcionando a conversão. (Cf. Vivere il Cantico delle creature pg.33. Ed. Menssaggero, Padova).

Amando aprenderemos a ter misericórdia. Ser misericordioso não é ser bobo, fazer que nada vê e nada sabe. Quantas vezes fingimos não ver esse sol.…vivemos no faz de conta, ao passo que misericórdia (miserere = ter compaixão, e cordis = coração) exige que tenhamos um coração bondoso, compassivo, que perdoa, mas que corrige com amor. (cf.Ad X).

Um verdadeiro pai não pune, ensina e converte através do exemplo, assim entre tantos textos, temos o da parábola do filho pródigo (Lc.15,11-31). Francisco, através sua profunda experiência de oração e conhecimento da Sagrada Escritura sabe que “Deus nos salvará unicamente por sua misericórdia. ” (RNB 23,24). A misericórdia divina está na origem da vocação franciscana (1 cel 3) e de seu amor para com os leprosos. “Ele recebe e transmite a misericórdia; de objeto se torna sujeito”: “Eu tive misericórdia com eles” (Test 2.  Verbete misericórdia in dicionário Franciscano pág. 434) Daí também ser chamado “ sol de Assis”, brilhou e hoje brilha no mundo como um sol que transmite a nós todos, o cântico das criaturas. Nosso desafio pessoal e fraterno é gigantesco: vivermos em profunda sinceridade o amor e a misericórdia, amando o filho que foge, banhando e abraçando o leproso, atendendo o irmão que chora, permitir que o pobre ao menos possa bater em nossas portas e receber algo a comer e conclamando o povo a louvar a Deus nosso Pai por tudo que nos deu, pelo amor e misericórdia e dizer a cada dia como Francisco: Altíssimo, Onipotente e Bom Senhor, Teus são o Louvor, a honra e toda glória. Amém.


Frei Gilberto Marcos Sessimo Piscitelli

Irmã Lua e as Estrelas

“Louvado sejas, meu Senhor,

pela irmã lua e pelas estrelas, no céu

 as formaste claras e preciosas e belas”

Com essa estrofe do Cântico das Criaturas somos convidados a refletir sobre virtudes e valores fundamentais sob três aspectos: transparência nas relações, autoestima e o reconhecimento da dignidade do outro.

O tema proposto é inspirador, mas apresenta um desafio considerável para um redator inexperiente. Antecipadamente, é bom dizer que o leitor precisa soltar a imaginação para ir além dos rudimentos que abaixo seguem.

A motivação de São Francisco

Para compreender a profunda motivação de São Francisco ao louvar o Criador por meio de suas criaturas, é interessante considerar as qualidades que ele atribui à irmã Lua e às Estrelas, descrevendo-as como “claras, preciosas e belas”. As qualidades vêm de uma questão anterior que precisa ser compreendida. É preciso voltar um pouco atrás, meio ao estilo do que disse certa vez um antigo professor de filosofia: “Para fazer um salto de distância, o atleta não vai logo para frente, mas para trás, a fim de fazer uma corrida e pegar impulso”. Voltar a outros textos de São Francisco, anteriores ao Cântico das Criaturas, ajuda-nos a compreender as motivações dele ao compor o Cântico.  Uma das qualidades motivacionais que levaram São Francisco a prorromper num cântico de louvor das criaturas pode ser encontrada na Carta enviada a toda a Ordem: “Onipotente, eterno, justo e misericordioso Deus, dai-nos a nós, míseros, por causa de vós fazer o que sabemos que quereis e sempre querer o que vos agrada, para que, interiormente purificados, interiormente iluminados e abrasados pelo fogo do Espírito Santo, possamos seguir os passos de vosso dileto Filho, Nosso Senhor Jesus Cristo” (Ord 50-51). Essa percepção iluminada e abrasada pelo Espírito Santo pode ser entendida como um reflexo de sua experiência de Deus, na qual e, a partir da qual, ele percebe reflexos do Criador na beleza das criaturas.

Transparência nas relações

“(…) seu guardião, que também era seu companheiro, adquirindo uma pele de raposa e levando-a até ele, disse: ‘Pai, padeces a enfermidade do baço e do estômago. Suplico a tua caridade no Senhor que debaixo da túnica permitas que seja costurada esta pele. Se não a queres toda, pelo menos permite que se aplique sobre o estômago’. Respondeu-lhe o bem-aventurado Francisco: ‘Se queres que eu permita isso sob minha túnica, manda que me seja aplicado exteriormente um remendo da mesma medida, o qual, costurado por fora, indique aos homens a pele escondida interiormente’” (2Cel 130).

Uma das virtudes de Francisco que brotam da experiência da grandeza e bondade do Criador é a transparência nas relações com os irmãos. Transparência no sentido de fidelidade à verdade fundamentada nos valores do Evangelho. Mas, a verdade revestida de caridade, porque ele é cortês e reverencial. Vejamos o que ele diz numa de suas admoestações: “Bem-aventurado o servo que tanto ama e respeita seu irmão quando [este] estiver longe dele como quando estiver com ele; e não disser por trás dele aquilo que, com caridade, não pode dizer diante dele” (Ad 25). Essa transparência é respeitosa e quando diz alguma coisa é com caridade, porque vem de uma relação que deve ser amorosa. As criaturas têm traços do Criador e por isso Francisco é reverencial na relação com elas. Depois que ele fez a sua experiência de Deus como “Sumo Bem” (LD) se tornou uma nova criatura e isso qualificou o seu relacionamento com os irmãos e com todas as criaturas.

Na Regra Bulada ele institui, como norma, os mais finos modos de relacionamento, instruindo os irmãos a serem afáveis entre si, a manifestarem confiantemente as suas necessidades e a cultivarem um amor diligente maior que o de uma mãe:

“E onde quer que estiverem e se encontrarem os irmãos, mostrem-se afáveis entre si. E, com confiança, manifeste um ao outro as suas necessidades, porque,  se uma mãe ama e nutre seu filho carnal (cf. 1Ts 2,7), com quanto maior diligência não deve cada um amar e nutrir a seu irmão espiritual?” (RB 6,7-9). Este amor e dedicação, até maior que o de uma mãe, vem do fato de ser um irmão espiritual, ou seja, um irmão que está na dimensão do espírito do Senhor (Ad 12). Caso o irmão não esteja nesta dimensão, Francisco também é transparente em manifestar o que pensa, e convoca o irmão à conversão. Isso transparece na Carta enviada a toda a Ordem: “Aqueles irmãos, porém, que não quiserem observar estas coisas (a Regra e os ensinamentos da Carta a toda a Ordem), não os tenho como católicos nem como meus irmãos; também não quero vê-los ou falar-lhes, enquanto não fizerem penitência” (Ord 44). Cabe ao irmão, ou irmãos, fazer penitência – entrar no processo de mudança de vida que o leva a ser um irmão espiritual (RB 6,9). Na Carta aos Fiéis, Francisco esclarece sobre a questão de fazer penitência, dizendo que “todos os que amam o Senhor de todo o coração (…) (Mc 12,30) e amam seu próximo como a si mesmos (cf. Mt 22,39), e odeiam seus corpos com os vícios e pecados, recebem o corpo e o sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, e produzem dignos frutos de penitência: Quão bem aventurados e benditos são aqueles e aquelas ao fazerem tais coisas e nelas perseverarem, porque pousará sobre eles o Espírito do Senhor (cf. Is 11,2) e fará neles habitação e um lugar de repouso (cf. Jo 14,23)” (cf. 1Fi 1-2). Para Francisco a relação dos irmãos é uma relação que eleva a dignidade da pessoa, porque a coloca em relação com o espírito do Senhor “que é beleza, mansidão, segurança, quietude, regozijo, esperança, alegria, justiça, temperança e toda nossa riqueza até a saciedade” (cf. LD).

No cuidado dos irmãos que erram, ele também indica mais um modo de proceder: “E cuidem todos os irmãos, tanto os ministros e servos como os demais, para não se perturbarem ou se irritarem por causa do pecado ou do mal do outro, porque o demônio quer, por causa do pecado de um só, corromper a muitos; mas ajudem espiritualmente, como melhor puderem, aquele que pecou, porque não são os sadios que precisam de médico, mas os enfermos (cf. Mt 9,12; Mc 2,17)” (RnB 5,7-8). Percebe-se que a intenção dele é sempre a de recuperar o irmão com espírito de caridade.

Autoestima

“Muito eloquente, tinha o rosto alegre e o aspecto bondoso” (1Cel 83).

Alegre e eloquente, Francisco vibra com as maravilhas do Senhor manifestadas nas suas criaturas. O Cântico das Criaturas revela a sua conexão amorosa e relacional com todo o universo, porque é procedente das mãos d’Aquele que é o “Sumo Bem” (LD). Ele mesmo é parte desse universo e está embevecido do amor do Criador. Se a autoestima é a percepção e avaliação que uma pessoa tem de si mesma, e tem a ver com o valor da própria vida, algo que até o Evangelho faz alusão quando fala de amar ao próximo como a si mesmo (cf. Mt 22,39), então, Francisco é um exemplo de autoestima saudável, porque ele não busca a validação da própria vida em padrões externos ou comparações, mas no reconhecimento da interconexão com o mundo, no qual ele de rosto alegre e eloquente louva o Criador. Daí a sua recomendação: “E cuidem [os irmãos] para não se mostrar exteriormente tristes e sombriamente hipócritas; mas mostrem-se alegres no Senhor, sorridentes e convenientemente simpáticos” (RnB 7,16). Tomás de Celano diz que ele “viu uma vez um companheiro seu que apresentava um rosto desanimado e triste e, sentindo-se incomodado, disse-lhe: ‘Não convém que o servo de Deus (cf. Dn 6,20) se mostre triste e carrancudo (cf. Is 42,4) aos homens, mas se mostre sempre gracioso. Dissipa tuas ofensas em teu quarto (cf. Ecl 10,20), chora e geme diante de teu Deus (cf. Gn 6,8). Quando voltas para junto dos irmãos, tendo deposto a tristeza, conforma-te aos outros’”(2Cel 128).

Francisco exulta em Deus de forma experiencial. Isso ele deixa transparecer nas expressões que usa no Bilhete a Frei Leão: “Vós sois amor, caridade; vós sois sabedoria, vós sois humildade, vós sois paciência (Sl 70,5), vós sois beleza, vós sois mansidão, vós sois segurança, vós sois quietude, vós sois regozijo, vós sois nossa esperança e alegria, vós sois justiça, vós sois temperança, vós sois toda nossa riqueza até a saciedade” (LD). Essas grandezas de Deus plenificam a sua vida até o fim de sua de sua trajetória terrestre, quando ele, à semelhança do velho Simeão, que não teme morrer (cf. Lc 2, 29), diz: “Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã, a morte corporal” (Cnt 12). Ele tem confiança de que vai descansar em paz em comunhão com Aquele que é o “Sumo Bem”(LD).

Clara, que se denomina de “plantinha do bem-aventurado pai Francisco” (RSC 1,3), também tem uma expressão máxima de autoestima, quando diz no último instante de sua vida: “Bendito sejais Vós, Senhor, que me criastes!” (LSC 46,5).

Francisco e Clara são pessoas que souberam louvar e agradecer a Deus pelo dom da vida. Souberam, também, viver e transmitir uma cordial experiência de amor aos irmãos e a todas as criaturas. O exemplo de vida deles nos leva a pensar que o carisma franciscano deveria ser uma lição de vida para as pessoas carentes de uma saudável autoestima no mundo de hoje.

Reconhecimento da dignidade do outro  –  Contemplação do Criador nas criaturas

“Reconhece nas coisas belas aquele que é o mais Belo; todas as coisas boas (cf. Gn 1,31) lhe clamam: ‘Quem nos fez (cf. Sl 99, 3) é o Melhor’” (2Cel 165).

Como passar da contemplação da beleza e bondade do Criador à percepção de que as criaturas têm traços dessa beleza e bondade, e consequentemente, têm a sua dignidade?

Alguns dos escritos de Francisco nos ajudam a perceber que ele reconhecia a dignidade do outro por uma motivação muito profunda. Veja-se, por exemplo, o que ele diz, na Regra Bulada, a respeito do relacionamento dos irmãos entre si: “(…) se uma Mãe ama e nutre seu filho carnal (cf. 1Ts 2,7), com quanto maior diligência não deve cada um amar e nutrir a seu irmão espiritual? (RB 6,9). Para Francisco a compreensão do irmão espiritual é a dignidade mais elevada de uma criatura, porque ela é participante da filiação divina, do Deus que é espírito e só em espírito pode ser visto (cf. Ad 1,4-6).  Surge, assim, uma postura reverencial. A partir dessa compreensão o irmão espiritual, deve ser tratado com maior diligência. Essa “diligência”, entendida como: interesse, cuidado ou dedicação pelo irmão, vem expressa em alguns de seus escritos:

“Onde quer que se encontrem os irmãos, mostrem-se familiares entre si” (RB 6,8);

“E, se algum deles cair doente, os outros irmãos o devem servir, como gostariam de ser servidos”(cf. Mt 7,12)(RB 6,10);

(Aos irmãos que pecam) “Os ministros, com misericórdia lhes imponham a penitência” (RB 7,3);

“E cuidem todos os irmãos, tanto os ministros e servos como os demais, para não se perturbarem por causa do pecado ou do mal do outro, porque o demônio quer, por causa do pecado e um só, corromper a muitos; mas ajudem espiritualmente, como melhor puderem, aquele que pecou, porque não são os sadios que precisam de médico, mas os enfermos (cf. Mt 9,12; Mc 2,17)” (RnB 5,7-8);

“Nenhum irmão faça mal a outro ou diga mal dele; muito pelo contrário, através da caridade do espírito, sirvam e obedeçam uns aos outros (Gl 5,13) de boa vontade” (RnB 5,13).

É importante observar que Francisco, na sua atitude reverencial, vê com um olhar de grandeza todas as criaturas sensíveis e insensíveis (2Cel 165); desde a árvore que serve para  lenha, a vegetação da horta, a pedra, o verde das ervas, a beleza das flores, até os vermezinhos (cf. 2Cel 165). A todos e a tudo ele acolhia e tratava bem. Tomás de Celano diz que a bondade fontal (Deus) era a origem  a partir da qual ele via a grandeza e a dignidade de todas as coisas: “Na verdade, toda aquela bondade fontal, que há de ser tudo em todos (cf. 1Cor 12,6), já se manifestava a este santo como tudo em todos (cf. 1Cor 12,6)” (2Cel 165).

Francisco nos ajuda a perceber que no lado secreto ou manifesto de todas as criaturas e, por excelência, do ser humano, há uma gota de virtude ou dignidade que pode manifestar-se, nem que seja como aquela do ladrão no último momento de sua vida (cf. Lc 23,42).


Frei Valdir Laurentino

Irmão Vento

“Louvado sejas, meu Senhor,

pelo irmão Vento, pelo ar, ou nublado

ou sereno, e todo o tempo pela qual às

tuas criaturas dás sustento”

Pelo vento, São Francisco percebe a ação do Senhor, invisível e suave, mas marcante. O Deus transcendente se torna sensível no vento e assim manifesta a São Francisco a presença do Altíssimo.

Pelo vento, ar, nuvens e sereno, Deus dá o sustento às criaturas. O vento é colaborador do Criador e nos dá sustento. Ligado à significação bíblica, o vento é expressão da presença ativa de Deus que continua a criar por meio do ser humano, seu colaborador e do vento, na irmandade do racional e irracional que se completam. Há também uma colaboração do vento e o ar para o bem da vida do ser humano. O ar e o vento são a simbologia do Deus invisível que sustenta a vida do ser humano e de toda a Criação. Não só no passado, Deus criou, mas continua criando e sustentando o hálito de vida do ser humano e de toda a Criação. O Espírito (ruah) que pairava sobre as águas (Gn 1,2), continua sendo o irmão que acompanha o Criador e as criaturas na aventura e no dom que é a vida.

São Francisco celebra com o irmão vento a itinerância, a criatividade, a liberdade e o eterno recomeçar, de quem vive a experiência mística da desapropriação, mendicância e caminha sobre o impulso do Espírito do Senhor, pois “sopra onde quer” (Jo 3,5). Ele é um peregrino guiado pela ação do vento. Por isso, é todo disposição à escuta do Espírito do Senhor, que é o suporte fraterno da Criação e dos que como ele se colocam no caminho do Senhor.

São Francisco se dedica ao pobre e aos irmãos que com ele seguem o Senhor, a partir de uma escuta atenta com o objetivo de servir ao Senhor nos irmãos e irmãs que vivem com ele. E ao perceber a presença invisível do Criador no irmão e na irmã, ele se coloca em sintonia com o Criador, buscando ser como o vento, suporte para os irmãos e irmãs: não negando sua presença e seu tempo a eles. Com a mesma intensidade que busca o Senhor em longos períodos de silêncio e oração, se dedica também à escuta e ao cuidado dos confrades, dos enfermos e das pessoas mais necessitadas. Por isso, ele exorta a todos os frades a seguirem no mesmo caminho: “Como a mãe ama e nutre seus filhos, devem os irmãos cuidar uns dos outros”.

Por fim, a linguagem simbólica do vento se converte em expressão daquilo que a alma do ser humano procura profundamente. “O irmão vento não é celebrado simplesmente como artífice de uma tarefa cósmica, mas como expressão de uma presença atenta e ativa de Deus em toda a Criação. Eloi Leclerc caracteriza e reconhece que Francisco celebra com o irmão vento a substância fraterna. Na realidade, o vento, como substância fraterna é dinâmico e expressão simbólica daquilo que a própria alma encerra de mais forte e divino no fundo mais profundo de suas energias e que continuamente se oferece a ele: o próprio Sopro do Criador”.

O irmão vento é colaborador para o sustento das criaturas de Deus. E nós, em sintonia com aquele que nos dá o sustento contínuo e sustenta toda a Criação, somos vocacionados a ser também essa presença na vida dos irmãos e irmãs. Presença suave, que respeita e reconhece a liberdade do outro, mas que está em contínuo diálogo, escuta e serviço, como o Criador que sustenta a Criação.


Frei Jorge Paulo Schiavini

Bibliografia: Brás José da Silva. A Fraternidade Cósmica na Perspectiva do Cântico das Criaturas – https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/37870/37870_6.PDF. Pág.: 316-318.

 

Irmã Água

“Louvado sejas, meu Senhor,

pela Irmã Água, que é mui útil

e humilde e preciosa e casta”.

Virtudes e valores: relações saudáveis com os irmãos e com o povo, disposição ao serviço, promoção da vida.

Neste ano, a Família Franciscana celebra os oitocentos anos da composição do Cântico das Criaturas, a presente edição das Comunicações convida a refletir sobre a água, fonte da vida e sua espiritualidade. O simbolismo da água, profundo e presente em todas as culturas, reflete seu significado espiritual e prático. A água é considerada um elemento sagrado e frequentemente vista como um símbolo de renovação, pureza e vida.

Em diversas tradições religiosas, a água é venerada e tem um papel fundamental na sustentação e na ligação com o “sagrado”. No Antigo Testamento, há vários exemplos, começando pelo relato da Criação: “O espírito de Deus pairava sobre as águas”, “Deus separa as águas [as de baixo e as de cima do firmamento]” (Gn 1,2). A água é tida como um novo recomeço no dilúvio (Gn. 6,13-19). Moisés, quando criança, foi retirado das águas (Ex 2). A água do mar vermelho está no centro da libertação do povo do Egito (Ex 14,1-28; 15,1-22). Moisés faz jorrar água da pedra (Nm 20,10-18). Nos salmos encontram-se inúmeras passagens que mencionam a água, como exemplo o salmo 46, “nos braços de um rio vem trazer a alegria à cidade de Deus, à morada do Altíssimo”. O profeta Ezequiel também fala sobre a água que jorra no templo e corre para o leste, transformando-se em um rio que gera a vida (Ez 47).

No Novo Testamento, Jesus tem uma relação direta com a água. Ele mesmo se deixou batizar no Jordão. Ele chamou alguns dos seus discípulos que dependiam da água como pescadores. O encontro com a Samaritana junto ao poço de Jacó, na última ceia, quando ele lavou os pés dos discípulos e, no alto da cruz, perfurado, jorrou do seu corpo sangue e água.

Não restam dúvidas de que água é fonte da vida. Por outro lado, ela também simboliza a morte. Em algumas culturas, mergulhar nas águas pode significar voltar ao caos, ao pré-formal, ao preexistente, dissolvendo a vida. O mar é o lugar dos monstros, do desconhecido e até dos demônios.

A água é sagrada, é irmã, usada na missa como purificação, símbolo da humanidade na preparação do cálice com vinho, levada também pelos fiéis nas novenas para ser abençoada, com ela abençoamos as pessoas, aspergimos os mortos e os objetos. Passar pelas águas pode significar adquirir uma nova identidade ou um novo começo.

Celebrar, recordar e proteger a água sagrada

No dia 22 de março de 1992, a Organização das Nações Unidas (ONU) criou o Dia Mundial da Água. Ela mobiliza a comunidade internacional para colocar em pauta questões essenciais que envolvem os recursos hídricos, garantindo que a água limpa e segura e o saneamento básico são direitos humanos.

Em 2004, a Igreja no Brasil, com a campanha da fraternidade, convidou aos fiéis e a sociedade brasileira a refletirem sobre a fraternidade e a água, com o lema: “água, fonte da vida”. O objetivo da campanha era conscientizar a sociedade que a água é fonte da vida, necessidade de todos os seres vivos e um direito humano, e a CNBB desejou mobilizar a sociedade para que este direito à água com qualidade seja efetivado para as gerações presentes e futuras.

O Papa João Paulo II escreveu uma carta por ocasião da abertura da Campanha da Fraternidade de 2004. Ele expressou a necessidade de cuidar da água: “Como dom de Deus, a água é instrumento vital, imprescindível para a sobrevivência e, portanto, um direito de todos. É necessário prestar atenção aos problemas decorrentes da sua evidente escassez em muitas partes do mundo, e não só do Brasil. A água não é um recurso ilimitado. Seu uso racional e solidário exige a colaboração de todos os homens de boa vontade com as autoridades governamentais, para conseguir uma proteção eficaz do meio ambiente, considerado dom de Deus (cf. Exortação Apostólica Ecclesia in America, 25). É uma questão que necessita, portanto, ser enquadrada para estabelecer critérios morais baseados precisamente no valor da vida e no respeito pelos direitos e pela dignidade de todos os seres humanos”.

A Campanha da Fraternidade de 2004 buscou refletir sobre tal tema devido aos grandes problemas que o Brasil e o mundo enfrentavam e enfrentam. Todas as formas de vida dependem da água. Não se pode separar vida e água, pois sem ela não existe vida. O manual da Campanha apresentou uma estatística da ONU, no qual denunciava que 40% da humanidade teriam problemas com o abastecimento de água até 2025. Além disso, a Campanha da Fraternidade quis lembrar que poluir as águas, danificar os rios, os lençóis subterrâneos, destruir as nascentes são atentados contra a vida.

Frei Francisco de Assis e a “Irmã Água”

Buscando observar a palavra “água” nas fontes franciscanas, encontramos três passagens, a primeira dos quais vem por excelência do Cântico das Criaturas: “Louvado sejas, meu Senhor, pela Irmã Água, que é mui útil e humilde, e preciosa e casta”.  A segunda passagem presente em Frei Tomás de Celano, afirma que Francisco tinha um afeto e compaixão pelos peixes que eram capturados, e que os lançava de volta as águas (cf. 1Cel 61).

Em outra passagem hagiográfica Frei Francisco, muito doente, passando pelo eremitério de Santo Urbano, pediu um copo de vinho. Não tendo, pediu um copo de água, fez o sinal da cruz e a água se transformou em vinho (cf. LM 5,10). Dada a pobreza do lugar e os mistérios de Deus, pode-se compreender que na convalescença Frei Francisco experimentou um novo sabor, vinhos novos em odres novos, ou talvez a água e o vinho simbolizem o despojamento do homem velho para se revestir do novo.

Outra palavra associada à água é “fonte”, quando usada no âmbito franciscano, vem em mente, o santuário Fonte Colombo. O local encontra-se a cinco quilômetros da cidade de Rieti, na Itália. Segundo a tradição, Frei Francisco esteve no local pela primeira vez em 1217 e, junto a uma pequena fonte, deu o nome de Fons Columbarum.

Sabe-se que, Frei Francisco escreveu a Regra definitiva em Fonte Colombo. A fonte de água pura saciou a sede de Frei Francisco e de muitos outros frades que residiram ou passaram por Fonte Colombo. A Regra de Vida dos frades é água pura recolhida da fonte. O Santo Evangelho é a fonte, dele fluem a graça e a vida que purificam e sustentam.

Virtudes e valores: relações saudáveis com os irmãos e com o povo, disposição ao serviço, promoção da vida.

As virtudes e os valores evangélicos e franciscanos são itinerário de realização para um novo estilo de vida?

Não há dúvidas que Frei Francisco de Assis, quando jovem na Idade Média, construiu sua vida sobre os princípios da Cavalaria. Entre estes encontravam-se virtudes e valores.

Na “Saudação às Virtudes”, o Pobre de Assis dá uma categorização valiosa do que ele entendia por virtudes e chamava de santa. São elas: sabedoria, pura simplicidade, pobreza, humildade, caridade, obediência.

No contexto atual, em meio ao caos econômico global, as guerras e a destruição ambiental, a reflexão teológica, franciscana e ecológica, aliada à crise do atual tempo, leva a repensar as relações e a necessidade urgente de uma transformação antropológica do atual modo de estar no mundo. Hoje, é urgente repensar a questão do consumo e a necessidade de gerar lucros crescentes às custas da Terra e de outras pessoas. Sabe-se que o maior problema são os grandes empresários e políticos que lutam para manter esse sistema.

Sim, segundo Frei Francisco de Assis, as virtudes e os valores são um itinerário para um novo estilo de vida. A santa sabedoria confunde Satanás e todas as suas malícias, liberta a humanidade da sedução do acusador (Satã) que pode levar: ao isolamento, à autossuficiência, as relações superficiais e à falta de confiança, gerando um grande vazio existencial.

A Santa Simplicidade confunde toda a sabedoria deste mundo. A Santa Pobreza confunde a ganância e a avareza. Neste sentido, recorda-se também o voto de não ter nada de próprio, que liberta o ser humano de qualquer ilusão, “eu sou pó e ao pó retornarei”: nem a vida é propriedade do indivíduo.

A Santa Humildade confunde a soberba, a Santa Caridade confunde as tentações e a Santa Obediência confunde a vontade própria. A mudança de época que estamos vivendo pode favorecer um novo estilo de vida. O estilo de vida franciscana vai sendo novo à medida que é redescoberto o valor da novidade evangélica e que esta responda as urgências do atual contexto.  A expressão “tudo está interligado” também se refere ao carisma franciscano, especialmente aos votos, os quais são valores que ajudam a viver e a manter relacionamentos saudáveis, nas relações de fraternidade e com o povo.

Na 27ª Admoestação, Frei Francisco exorta afirmando que a virtude afugenta o vício.

Onde há…                                                                                    Aí não há… 

Caridade e sabedoria                           x                                     temor e ignorância

Paciência e humildade                        x                                      ira e perturbação

Pobreza e alegria                                  x                                      ganância nem avareza

Quietude e meditação                         x                                       preocupação e divagação

Temor do Senhor                                x                                      o inimigo fazendo morada

Misericórdia e discernimento           x                                       superficialidade e rigidez

Se por um lado as virtudes e os valores ajudam a construir novas relações, a “Irmã Água” consegue purificar e curar as relações fragilizadas. Quem não se lembra de ter caído quando criança, e de como os arranhões ardiam, e de como falava sua mãe: “Lava isso aí, lava bem, com sabão”. Mais do que nunca, precisamos lavar, lavar a existência humana esfolada pelas experiências nocivas. Irmã Água, muito útil e humilde, preciosa e casta. Água virtuosa, água pura, que segundo Frei Francisco, regenera, limpa e refresca.

Aqui também se compreende a frase do Evangelho de João (3,5): “nascer da água e do espírito”. O novo estilo de vida se inaugurará nas fontes: imersão e emersão, banho, limpeza, vida nova. O Espírito, que é Santo, nos auxiliará para não envelhecermos com as vaidades do tempo presente e enfraquecer nas relações.

Construir pontes, interconectar e criar vínculo faz parte do carisma franciscano, assim como serviço.

A chave é a disposição de servir, como Jesus Cristo. Ele lavou os pés dos discípulos e da humanidade. Meditar sobre a irmã água ajuda a recordar que nós também somos água, criaturas de Deus. Celebrar a “Irmã Água” e bebê-la todos os dias confere um novo significado à própria vida, permitindo-nos ser um pouco mais “humildes, preciosos e castos” nas relações e no serviço.

Então, quem sabe, talvez possamos continuar a lavar os pés daqueles que estão cansados, desiludidos da vida, deprimidos e oprimidos, quase sem fôlego. Se não houver oportunidade de lavar os pés, pegue a moringa de barro, derrame a água na caneca de alumínio e a leve a quem precisa, recomeçar na alegria franciscana: “porque pouco ou nada fizemos” (1Cel 103).


Frei Gilberto da Silva

 

Irmão Fogo

O louvor do Senhor pelo Irmão Fogo

“Louvado sejas meu Senhor, pelo irmão fogo, pelo qual iluminas a noite. E ele é belo e jucundo e vigoroso e forte”. 

São Francisco de Assis

Cântico do Irmão Sol

Para lembrar…

Para as pessoas que viveram na Idade Média, a vida era impensável sem o fogo, bem como para nós sem as nossas, hoje diversas, fontes de energia. O domínio do fogo representou na história da humanidade uma grande revolução.

Nos tempos de São Francisco de Assis o fogo exercia papel fundamental em diversas áreas e circunstâncias do cotidiano de sua sociedade. Essencial para a sobrevivência: no rigoroso inverno as lareiras aqueciam as casas abastadas e as fogueiras os casebres dos pobres, bem como iluminava casas, castelos, ruas e praças; o fogo cozinhava e assava alimentos deixando-os mais seguros para o consumo. Também era usado para ressecar, defumar alimentos (carnes e embutidos).

Coisas que praticamos até os nossos dias

Nos rituais e cultos religiosos, lá estava o fogo a queimar velas e incensos para solenidade das celebrações nas igrejas e catedrais.

Pelo fogo se fundia metais usados para tudo, desde arados, instrumentos para o cultivo da terra; ferramentas para artesanatos; instrumentos cirúrgicos… o fogo fundia metais para os sinos e outros artesanatos ligados à liturgia e outros cultos sagrados.

Espadas e outras armas de guerra surgiam das forjas igualmente alimentadas pelo fogo. E quem nunca assistiu a algum filme onde se mostra o quanto o fogo foi utilizado em larga escala tanto para o ataque quanto para a defesa de muros, fortalezas, castelos e cidades?!…

O fogo foi também instrumentalizado como expressão de poder no âmbito religioso e profano, basta lembrar as fogueiras onde ardiam bruxas e hereges nas praças públicas.

As florestas desde o início da dominação do fogo tem sido a fonte do combustível para seu uso tão intenso.

São Francisco e o Irmão Fogo

Ao mencionar o Irmão Fogo em seu “Cântico do Irmão Sol”, São Francisco não o faz apenas por compor os quatro elementos constitutivos de toda a matéria, mas por cultivar por este irmão uma especial afeição.

“De manhã, quando nasce o sol, todos os homens deveriam louvar a Deus que o criou para nossa utilidade, porque é por ele que nossos olhos são iluminados durante o dia. À tarde, quando a noite cai, todos os homens deveriam louvar a Deus pelo Irmão Fogo, pelo qual nossos olhos se iluminam de noite. Pois todos somos como cegos e, por estes nossos dois irmãos, o Senhor ilumina nossos olhos” (1EP 119).

Ao lado do sol, o fogo é para São Francisco o irmão pelo qual o Senhor ilumina os olhos. O irmão fogo é essencial para o santo cuja personalidade transbordava em sentidos e percepções. Iluminar os olhos para ver, contemplar e amar aquilo que se vê.

O fogo tornou-se para São Francisco o superlativo ideal para descrever o que há de melhor ou de pior. Seu poder de arder e consumir se aplica ao máximo da graça como também da perdição: “Ai daqueles que não morrerem na penitência, porque serão filhos do demônio, cujas obras realizam, e irão para o fogo eterno” (RnB 21,8).

“Ó Santíssimo Pai Nosso: criador, redentor, consolador e salvador nosso. Que estais nos céus; nos anjos e nos santos, iluminando-os para o conhecimento, porque vós Senhor, sois luz; abrasando-os para o amor, porque vós, Senhor, sois o sumo e eterno bem, do qual procede todo bem, sem o qual não há nenhum bem” (PN 1-2).

Reza dizendo: “Te rogo, Senhor, que a força abrasadora e melíflua de seu amor absorva de tal modo minha mente, separando-a de todas as coisas, que eu morra por amor do teu amor, já que por amor do meu amor te dignaste morrer”.

Também seus biógrafos se apropriam da imagem do fogo para referir-se a ele: “Estava unido aos espíritos angélicos, abrasados de um fogo sagrado com o qual se alegram em Deus e procuram inflamar as almas dos escolhidos” (1Cel); “Abrasado no incêndio da caridade, ambicionava alcançar o glorioso triunfo dos mártires” (1 Cel); “A palavra dele era como fogo ardente que penetrava o mais íntimo do coração e enchia as mentes de todos de admiração” (1Cel).

“De tal modo crescido no santo incêndio do amor divino, que parecia estar abrasado em chamas de grande atividade” (Fior).

A vida de São Francisco e seus irmãos estava profundamente ligada ao fogo. As fontes nos recordam alguns episódios que nos dão a medida de sua relação com este irmão:

Nos Fioretti se encontra o episódio em que o santo se serve de sua afinidade ao irmão fogo para converter à fé cristã o “sultão da Babilônia” e uma tal “mulher belíssima de corpo, mas vil de alma, a qual mulher maldita” o convidou a pecar. O irmão fogo foi a testemunha fiel e incontestável da santidade de São Francisco e da veracidade de sua fé.

Fioretti nos conta ainda, de um grande incêndio em Santa Maria visto pelo povo de Assis que corre aflito na esperança de conter as imensas chamas. Tal incêndio era nada mais do que a imagem ideal para descrever o amor entre os santos Francisco, Clara e seus irmãos e irmãs reunidos em uma santa e pobrezinha refeição.

Boaventura em sua Legenda Maior reporta o episódio da penitência imposta a um frade “que fizera algo contra a lei da obediência”.

São Francisco lhe retira o capuz e o atira ao fogo que mesmo agindo por algum tempo não o consumiu e em nada sofreu pela ação das chamas. O capuz foi retirado do fogo e devolvido ao frade sinceramente arrependido de sua desobediência.

Boaventura conclui: “E assim aconteceu que Deus, com este único milagre, mostrava tanto a virtude do santo homem, quanto a humanidade da penitência”.

O apreço de São Francisco pelo Irmão Fogo era tanto, que sequer admitia que o apagassem, nem suas brasas fossem extintas.

Certa ocasião, estando no Monte Alverne, um irmão acendeu o fogo na cela onde o santo comia. Enquanto foi a uma outra cela, o fogo subiu até a cobertura da cela e já quase a tomava por completo, ao que os frades acorreram para conter as chamas.

Nos diz o Espelho da Perfeição que São Francisco não queria apagar o incêndio, mas tratou apenas de salvar uma pele que usava para se cobrir à noite e saiu para a floresta. Depois de apagado o fogo, “São Francisco voltou para comer: após a refeição disse ao seu companheiro: Não quero mais ter essa pele sobre mim, porque por causa de minha avareza, não quis que o irmão fogo a devorasse”.

Já tendo composto a primeira e segunda parte do Cântico do Irmão Sol, São Francisco aceita se submeter ao procedimento de cauterização na esperança de ao menos aliviar as dores dos olhos já praticamente cegos.

Antes do dolorosíssimo procedimento feito com ferro incandescente, ele se dirige com humildade e fraternidade ao fogo: “Meu irmão fogo, nobre e útil entre outras criaturas que o altíssimo criou, sê cortes comigo nessa hora, porque outrora te amei e ainda te amarei por amor daquele Senhor que te criou: Peço também ao nosso criador, que te criou, que de tal modo tempere o teu calor que eu possa suportar. E terminada a oração, fez o sinal da cruz sobre o fogo” (CA).

Terminado o procedimento São Francisco testemunhou que nada sentiu, dor alguma e que se fosse necessário queimar ainda mais a carne, não teria problema algum, pois o irmão fogo havia sido gentil para com ele, para espanto do médico e dos irmãos.

Já perto de sua partida para o Pai, São Francisco pede aos frades que levem a uma grande amiga (Fra Jacoba) uma carta para que lhe traga pano para uma túnica mortuária; os doces (mostacciolli) que tanto gostava e cera para as velas, pelas quais estaria presente em sua despedida, seu querido irmão fogo.

Para terminar…

Desde criança, como todas as pessoas de seu tempo, São Francisco conviveu e se serviu do fogo, mas não há dúvidas de que por ele desenvolveu e cultivou estreita relação de admiração, respeito e amor.

Certamente muito do que viveu ensinou a seus irmãos, ele o fez se aquecendo e iluminado ao redor do Irmão Fogo. As primeiras “formações franciscanas” se deram ao calor e luz do Irmão Fogo.

O fogo com seu calor e luz tornou-se o irmão necessário, imprescindível para o surgimento e evolução da experiência única que se chamou fraternidade franciscana.

Para refletir:

Convidado ao Louvor do Senhor por Nosso Pai Seráfico Francisco, o Irmão Fogo e suas características por ele exaltadas nos oferece possibilidades de reflexão, como por exemplo:

O Irmão Fogo trazia luz e calor a São Francisco e os primeiros irmãos favorecendo a fraternidade em torno de si. Em que medida podemos também ser elementos agregadores em nossas fraternidades? Nos momentos de penumbra ou até de escuridão temos feito algum esforço para ser luz? Não faltam também em nossa vida diária momentos de frieza. Nós mesmos praticamos a frieza. Com seu calor, o Irmão Fogo nos recorda que somos chamados a aquecer e derreter o gelo que muitas vezes se instala dentro de nós e transbordando, esfria nossas relações fraternas.

São Francisco canta a alegria do Irmão Fogo. Alegria autentica, transparente e verdadeira. O Irmão Fogo nos inspire a cultivar a “perfeita alegria” e a afastar de nós aquela alegria midiática, panfletária…

Por fim, São Francisco descreve o Irmão Fogo como vigoroso e forte. Que nosso vigor e força não se converta em rigidez e dureza de coração.

Que o vigor e força que buscamos não nos faça “perder a ternura jamais”.

Que o fogo do Espírito Santo (Ministro geral da Ordem) nos aqueça, ilumine e inspire em nosso caminhar como irmãos e menores.


Frei Benedito Geraldo Gomes Gonçalves