Carisma - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

A morte na mística franciscana

Apresentação

A morte na mística franciscana

 

“Vocês conhecem São Francisco de Assis. Morreu à tardinha do dia 3 de outubro de 1226. Conhecido como o santo dos passarinhos. Amigo dos animais. Da natureza toda. Padroeiro da ecologia. O santo da paz. O santo fraterno. Da fraternidade universal, humana e cósmica. Reconciliado com tudo e com todos, até mesmo com a morte, à qual ele chama de Irmã”.

Desta forma, Frei José Ariovaldo abre este Especial sobre a celebração do trânsito de São Francisco, o mesmo tema de Frei Nilo Agostini: “E Francisco vai ao seu encontro (da morte) como quem vai abraçar e saudar uma irmã muito querida”.

São Francisco de Assis, segundo texto de Tomas de Celano, chegava a convidar para louvor até a própria morte, que todos temem e abominam. Leia este texto das Fontes Franciscanas.

Frei Gustavo Medella lembra que Francisco já partiu há quase 800 anos, mas sua experiência continua a inspirar milhões de homens e mulheres em todo mundo. “O Santo de Assis, descobrindo profundamente amado por Deus, o Sumo Bem, Único e Verdadeiro Bem, conseguiu transmitir este amor para além das fronteiras de seu tempo e de seu espaço. Foi modelo de vida até o fim. Francisco bem sabia que tudo aquilo era e tinha havia recebido como dom gratuito, e por isso não queria tomar posse de nada, nem das coisas, nem da natureza, nem da pessoa. Soube viver em profunda gratuidade e, assim, apesar de todos os sofrimentos (físicos inclusive), conseguiu ser uma pessoa realizada e feliz. Quando chegou sua hora, Francisco encheu seu coração de esperança e conseguiu chamar a morte de “novo nascimento”. Não se trata de um fim, mas de uma transformação, do ingresso em uma nova maneira de existir. No Cântico das criaturas, Francisco louva e agradece a Deus por todos os benefícios que Ele realizou (e realiza) na criação. E não deixa de fora a “Irmã Morte Corporal”, escrevendo assim: “Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã a morte corporal, da qual homem algum pode escapar. (…) Felizes os que ela achar conformes à tua santíssima vontade, porque a morte segunda não lhes fará mal!”

Francisco de Assis ensina que a vida é dom, presente de Deus. No momento da partida de alguém querido, esta recordação é muito salutar, pois alia à dor e à tristeza um profundo sentimento de gratidão e esperança.

No seu texto, o Moderador da Formação Permanente, Frei Fidêncio Vanboemmel, diz que Francisco de Assis ao chamar a morte de “Irmã”, ele entende a morte como um processo natural da vida, com todas as finitudes que ela possui (doenças, enfermidades, idade). “Francisco de Assis, como arauto da Paz, jamais diria ‘bem-vinda irmã morte’ quando ela é consequência do pecado humano. Antes, Francisco de Assis gritaria ao mundo de hoje:

Maldita a morte causada por toda a violência armada; maldita a morte causada pela fome em consequência da não partilha; maldita a morte provocada pela privação dos direitos sociais, causada pelo enriquecimento ilícito dos que legislam em causa própria; maldita a morte causada pela disseminação da segregação racial, ideológica e religiosa,

Enfim, maldita a morte que destrói a vida das nossas florestas; maldita a morte, fruto dos produtos tóxicos despejados sobre o alimento; maldita a morte dos nossos rios, resultado da ganância das mineradoras; maldita a morte das nossas praias nordestinas, causada pela omissão dos primeiros responsáveis e pela ganância da indústria petrolífera”, completou o ex-Ministro Provincial ao denunciar a cultura de morte.


Imagem: Jusepe de Ribera (domínio público, Wikimedia)

O que significa a morte para são Francisco?

Frei Fidêncio Vanboemmel

A morte, para São Francisco de Assis, é uma realidade natural pois faz parte da própria vida. Tanto assim que ele, ao sentir a proximidade da morte, compôs a última estrofe do Cântico das Criaturas, na qual ele reza: Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã, a morte corporal da qual humano algum pode escapar. Ai dos que morrerem e pecado mortal! Felizes os que ela achar conformes a tua santíssima vontade, porque a morte segunda não lhes fará mal”.

Francisco, ao longo da sua vida, particularmente na sua pregação penitencial, alertava as pessoas a estarem preparadas para a realidade da morte. Por exemplo:

1º) Na Carta que escreveu aos Governadores dos Povos, admoesta: “Considerai e vede que se aproxima o dia da morte…” Neste mundo ou nesta vida, ninguém é eterno, e dele nada levaremos.

2º) Na Regra não Bulada, Francisco adverte: “Convertei-vos, fazei dignos frutos de penitência, pois sabei que em breve morrereis…”  Diante da eternidade do tempo, o tempo da nossa vida terrena é muito breve.

Quando morremos, o que realmente fica para nós, o que ainda será pertença nossa? Francisco nos adverte que nossos são apenas “os vícios e pecados”.  Daí a advertência que ele faz no Cântico das Criaturas: “Ai dos que morrem em pecado mortal”.  Logo, se a morte é uma realidade natural da vida, devemos estar preparados para acolher a morte como irmã da vida. Assim o problema não está na morte em si, mas morrer em pecado mortal. Assim, morrer em pecado nos leva à segunda morte, isto é, à morte eterna, a eterna ausência do amor de Deus.

Ao passo que as pessoas que vivem uma vida com dignidade, os que se santificaram seguindo a Cristo pelo caminho das Bem-aventuranças, na morte levarão consigo os frutos da penitência para oferecê-los a Deus, e Dele receber a recompensa: “vinde, benditos de meu Pai”.

Enfim, a morte para Francisco é uma realidade inevitável. Por isso devemos estar sempre prontos, vigilantes, preparados para a hora da nossa morte, por mais difícil que seja.

A partir da Experiência de Francisco, como os cristãos podem ressignificar a morte?

Aspectos que considero importantes para nós, cristãos:

Em 1º lugar destaco a compreensão que devemos ter da nossa vida. De Francisco aprendemos que nada possuímos de próprio, nem sequer a vida, pois ela é um dom de Deus. Se a vida é uma dádiva, é a Deus que a devolvemos com tudo o que de belo construímos através deste corpo (não morrer em pecado).

Em 2º lugar destaco a importância do espírito da pobreza, da não apropriação. “Nada retenhais para vós mesmos, para que totalmente vos receba, quem totalmente se vos dá” (CtOr). Francisco, ao longo da vida, foi se despojando de tudo. Nada acumulou para si. E quando chegou a hora da morte, quis morrer nu sobre a terra nua: “Lembra-te, ó homem, que és pó, e em pó hás de voltar”.

Em 3º lugar aprendemos do Evangelho que, através da morte, nos unimos ao mistério pascal de Jesus. Por isso esta “Irmã Morte” é bem-vinda. Francisco mesmo, ao refletir sobre o mistério da morte-ressureição de Cristo, afirma: “deitei-me para dormir, e acordei-me novamente, e o meu santíssimo Pai me recebeu na glória”.

Em 4º lugar diria que o drama e medo da morte não é apenas a separação física de quem amamos, ou uma separação física deste mundo. O que realmente é dramático é o risco de separar-me definitivamente de Deus. Em vida tive tantas oportunidades para fazer o bem, praticar obras de misericórdia, etc… E nada disso eu fiz.

Em 5º lugar, ao chamar a morte de “Irmã”, ele entende a morte como um processo natural da vida, com todas as finitudes que ela possui (doenças, enfermidades, idade). Francisco de Assis, como arauto da Paz, jamais diria “bem-vinda irmã morte” quando ela é consequência do pecado humano. Antes, Francisco de Assis gritaria ao mundo de hoje:

Maldita a morte causada por toda a violência armada; maldita a morte causada pela fome em consequência da não partilha; maldita a morte provocada pela privação dos direitos sociais, causada pelo enriquecimento ilícito dos que legislam em causa própria; maldita a morte causada pela disseminação da segregação racial, ideológica e religiosa,

Enfim, maldita a morte que destrói a vida das nossas florestas; maldita a morte, fruto dos produtos tóxicos despejados sobre o alimento; maldita a morte dos nossos rios, resultado da ganância das mineradoras; maldita a morte das nossas praias nordestinas, causada pela omissão dos primeiros responsáveis e pela ganância da indústria petrolífera.

“A vida prá quem acredita, não é passageira ilusão. E a morte se torna bendita, quando é nossa ressurreição”.

 

 

Dia de Finados

Frei Luiz Iakovacz

Em 2 de novembro, a maioria dos países ocidentais comemora o Dia de Finados. Seu principal objetivo é fortalecer a fé na ressurreição, pois os cristãos convictos creem, firmemente, que a vida continua, após a morte. Por isso, seria melhor falar em “Dia dos Fiéis Defuntos”.

Sabemos pouco de como é a vida depois da morte. Mas o que sabemos é o suficiente: é um “estado de vida” onde todos os seres humanos vivem em total harmonia entre si, e em filial alegria com Deus que é pai e mãe.

Na carta dos Romanos, o apóstolo Paulo nos deixa este precioso ensinamento: “O que nenhuma mente jamais pensou, o que nenhum olho jamais viu e nem sequer passou pelo coração humano – é isso o que Deus preparou àqueles que O amam” (Rm 2,9).

A tradição da Igreja Católica Romana é a seguinte: os primeiros cristãos visitavam, nas catacumbas, os túmulos dos que foram martirizados por causa da fé e, aí mesmo, oravam e celebravam a Ceia. No século IV, já era costume rezar pelos mortos, dentro da própria Missa.

No século X, mais exatamente em 998, o abade Odilon de Cluny estabeleceu que os mosteiros a ele confiados rezassem o Ofício dos Defuntos, no dia 2 de novembro.

A partir do século XIII, esse costume foi sendo assumido por toda a Igreja Católica.

Se, no dia 1º de novembro comemoramos Todos os Santos, uma “multidão que ninguém podia contar” (Apoc 7,9) e que, em sua maioria, não é, oficialmente, canonizada – assim também, no dia 2, lembramos os falecidos pelos quais poucos rezam.

A tradição Católica tem o costume de rezar pelos falecidos que ainda não estão na eternidade, mas no purgatório, à espera da Ressurreição.

Os dois livros de Macabeus contam a revolta daqueles que não aceitaram a imposição da cultura helênica e, em torno deste fato, formou-se um verdadeiro exército de guerra. Após uma batalha, Judas Macabeu, chefe do exército, fez uma coleta em ouro e prata e mandou-a a Jerusalém para se oferecesse um sacrifício pelo pecado dos que tombaram no combate (cf. 2Mc 12,38-43).

Por que fez isso?! O texto diz: “Ele agiu com grande retidão e nobreza, pensando na ressurreição. Se não tivesse esperança na ressurreição, seria inútil rezar pelos mortos. Por isso, mandou oferecer um sacrifício pelo pecado dos que tinham morrido para que fossem libertados do pecado” (2Mc 12,43-45).

Portanto, celebrar o Dia dos Fiéis Defuntos não é dizer que a vida acabou, mas é fortalecer a fé na Ressurreição. Assim como diz um poeta anônimo: “Há quem morre todos os dias: morre no orgulho, na ignorância, na fraqueza. Morre um dia, mas nasce outro! Morre uma semente, mas nasce a flor! Morre o homem para o mundo, mas nasce para Deus”!

 

Como São Francisco de Assis celebra a sua própria morte

Frei José Ariovaldo da Silva

1. Em Francisco, uma original experiência de Deus
Vocês conhecem São Francisco de Assis. Morreu à tardinha do dia 3 de outubro de 1226. Conhecido como o santo dos passarinhos. Amigo dos animais. Da natureza toda. Padroeiro da ecologia. O santo da paz. O santo fraterno. Da fraternidade universal, humana e cósmica. Reconciliado com tudo e com todos, até mesmo com a morte, à qual ele chama de Irmã. O santo que descobriu e viveu profundamente o Amor. Tudo isso e ainda muito mais, a partir de uma profunda experiência de Deus, atestada pelos seus escritos e os de seus biógrafos (1). Não o Deus fabricado por especulações filosóficas ou teológicas, mas o Deus do Evangelho. O Deus de Jesus Cristo. Foi beijando certa vez um leproso que Francisco sentiu profundamente de que jeito Deus é. Beijando um leproso, ele se lembrou de Jesus pobre, desprezado, sofrido, marginalizado, crucificado, abandonado, só por amor de nós e para nos salvar. Foi beijando um leproso e lembrando do Jesus “que se fez leproso” (2) por nosso amor, que Francisco fez esta grande descoberta: Deus é pobre. Sim, Deus é pobre! E a Pobreza – com “P” maiúsculo, esse modo característico de Deus ser! – passa a ser para ele a grande paixão de sua vida, a sua amada, a dama de sua vida e de suas canções, até a hora derradeira, a morte corporal.

2. Francisco: uma vida em celebração
A partir desta experiência de Deus como Pobre e que por isso é Criador e Salvador, Francisco se tornou um cristão que vivia para celebrar este Deus. Lendo os escritos franciscanos mais antigos, notamos como a vida deste santo é toda pautada pela oração, pelo louvor, pela celebração, por um imenso amor à Eucaristia e por uma intensa vida de fraternidade. E o fazia criativamente, com a singeleza e a simplicidade pura de um pobre cheio de Deus. Adorava celebrar. E de corpo inteiro. Pondo emoção, afeto, coração, paixão, em suas celebrações. Por exemplo, para celebrar o nascimento de Jesus – a divina Pobreza encarnada no Menino pobre de Belém – Francisco inventou o presépio. Foi ele quem inventou o presépio de Natal! E assim, desta maneira, ele encena e torna palpável aos olhos, à mente e ao coração, o Deus que se revelou Pobre para nos libertar de nossas misérias.

3. E celebrando sua própria morte
Vou destacar e comentar brevemente para vocês, aqui, um exemplo típico de celebração litúrgica feita por Francisco. Uma celebração memorial, na sua estrutura, até bem parecida com muitas que são feitas hoje em nossas comunidades. Comporta, basicamente, três partes. Há primeiro uma encenação; depois vem uma leitura do Evangelho; e, por fim, um momento de louvor que se prolonga até…

Vejam como Tomás de Celano, o primeiro biógrafo de São Francisco, nos apresenta esta celebração. Vejam como São Francisco de Assis celebra a sua própria morte:
“Estando os frades a chorar amargamente e a se lamentar sem consolação, o pai santo mandou trazer um pão. Abençoou-o, partiu-o e deu um pedacinho para cada um comer. Também mandou trazer um livro dos Evangelhos e pediu que lessem o Evangelho de São João a partir do trecho que começa: ‘Antes do dia da festa da Páscoa’, etc. Lembrava-se daquela sagrada ceia que foi a última celebrada pelo Senhor com seus discípulos. Fez tudo isso para celebrar sua lembrança demonstrando todo o amor que tinha para com seus frades.

Passou a louvar os poucos dias que ainda restavam até sua morte, ensinando seus filhos muito amados a louvar Cristo em sua companhia. Ele mesmo, quanto lhe permitiam suas forças, entoou o Salmo: ‘Lanço um grande brado ao Senhor, em alta voz imploro o Senhor’, etc. Convidava também todas as criaturas ao louvor de Deus e, usando uma composição que tinha feito em outros tempos, exortava-as ao amor de Deus. Chegava a convidar para o louvor até a própria morte, que todos temem e abominam e, correndo alegre ao seu encontro, convidava-a com hospitalidade: ‘Bem-vinda seja minha irmã, a morte!’ Ao médico disse: ‘Irmão médico, diga com coragem que minha morte está próxima, para mim ela é a porta da vida!’ E aos frades:

‘Quando perceberdes que cheguei ao fim, do jeito que me vistes despido antes de ontem, assim me colocai no chão, e lá me deixai ficar mesmo depois de morto, pelo tempo que alguém levaria para caminhar uma milha, devagar’.

E assim chegou a hora. Tendo completado em si mesmo todos os mistérios de Cristo, voou feliz para Deus” (3).

4. A morte de São Francisco como celebração memorial (4)
Lá está Francisco, deitado, muito debilitado. À beira da morte. Os frades começam a chorar. E choram amargamente. Desconsolados, lamentam esta triste situação: A perda de um pai; a desgraça da morte.

Vendo os frades neste estado, Francisco, que queria tanto bem a eles, toma a iniciativa de fazer uma celebração. E assim, desta maneira tão humana e divina, ele consola os frades e os encoraja. Como? Transportando-os, no envolvimento desta celebração, para a Última Ceia de Jesus e, em Jesus, para o sentido positivo da própria morte. E ali está: “Uma comunidade eclesial que celebra liturgicamente, com Francisco, a morte deste” (5).

a) O gesto de partir o pão
Francisco manda trazer um pão. Abençoou o pão. Partiu-o e deu um pedacinho para cada um comer.

Através deste gesto, Francisco encena a Última Ceia que Jesus fez com seus discípulos antes de morrer. Assim recorda o imenso ato de amor e de doação total e perene de Jesus à humanidade, perpetuado na Eucaristia que ele reverenciava o máximo, pois o Corpo do Senhor não é senão o Pobre e Humilde que ele descobriu ao beijar o leproso (6).

O gesto se relaciona com a despedida de Jesus a seus discípulos. Os frades, semelhantemente aos discípulos de Jesus, aqui assistem à representação que Francisco faz de “sua” Última Ceia. Deste modo, Francisco celebra também a sua doação total ao Senhor, servindo aos irmãos, na vida e na morte que se aproxima. “Em obediência total a Cristo, seu Mestre e Senhor, põe em ação sua diaconia revivendo a lembrança daquela santíssima noite com uma celebração litúrgica ‘sui-generis’, à qual associa todos os frades ali presentes” (7). Assim ele “leva os frades a suportar a dor de sua morte, para vivenciar a alegria de quem sente e possui a presença do Senhor” (8).

b) Leitura do Evangelho de João
Francisco mandou trazer também o livro dos Evangelhos. Pediu para alguém ler o Evangelho de João, capítulo 13,1-15. É o texto do lava-pés: Jesus, durante a Última Ceia, levantou-se, cingiu-se com uma toalha, e lavou os pés dos discípulos, como exemplo de humildade e serviço a ser seguido por todos.

Portanto, Francisco completa a representação de “sua Última Ceia” integrando nela esta leitura de João. É bom lembrar que, na época, quando alguém estava para morrer, após lhe serem ministrados os santos sacramentos, se lia um texto evangélico da Paixão do Senhor. Geralmente de Marcos. Aqui, no caso de Francisco, ele é original e criativo:
Ele mesmo escolhe o texto; e um texto condizente com o momento que eles estavam vivendo ali. Um texto que traz vivamente presente, neste “clima” de Última Cela, o exemplo de humildade, de minoridade e de serviço do Senhor Jesus, que ele abraçou com toda a paixão.

c) Tudo Isso para se lembrar da Última Cela e por amor aos frades
Assim, como narra Tomás de Celano, Francisco “lembrava-se daquela sagrada ceia que foi a última celebrada pelo Senhor com seus discípulos. Fez tudo Isso para celebrar o amor que tinha para com os seus frades”.

Em outras palavras. Francisco se transporta e transporta os frades para a centralidade do seu ideal, que supera o horror da morte. Esta centralidade é o Senhor, pobre, humilde, menor, servo de todos que, na Eucaristia, assume a forma humilde de pão e de vinho, e na Palavra revela a presença do seu amor-serviço. O amor de Francisco, iluminado pela lembrança da Última Ceia do Senhor nesta celebração, conduz os frades a uma visão positiva da morte. Em vez de chorar, eles devem agora cantar. Devem passar (Páscoa!) do luto para a festa da vida que chega pelas portas da morte.

d) O momento de louvor
Diz Tomás de Celano que Francisco passou então “a louvar os poucos dias que ainda restavam até sua morte”. E não só isso. Ele o fez, “ensinando seus filhos muito amados a louvar Cristo em sua companhia”.

É o momento de louvor, na celebração. Como em tantas celebrações de nossas comunidades… Tem sempre o momento de louvor, que é o momento alto. Francisco louva, porque sente estar próximo o dia de sua passagem para a vida. Graças a Jesus Cristo. Por isso, os frades, que antes estavam tristes, chorando, desconsolados se lamentando, agora podem com seu pai cantar, louvar o imenso amor de Jesus Cristo que nos salvou.

Francisco louva, entoando o Salmo 141. Convida todas as criaturas ao louvor de Deus. Para tanto, usa inclusive o Poema que ele mesmo havia composto, o célebre “Cântico do Irmão Sol”, através do qual também exorta todas as criaturas ao amor de Deus. Chega a convidar para o louvor até a própria morte que se aproximava, à qual dá as boas-vindas, como sua irmã. Louva a Deus pela irmã morte. Louva, porque esta, “que todos temem e abominam’, para Francisco é sentida como “a porta da vida”. Louva, pois ele, a esta altura, estava plenamente identificado com a Fonte da Vida: Deus (9). Assim, em Francisco ainda vivo, no embalo desta celebração, a morte já era percebida como tragada pela Vida. Os frades não precisam mais chorar nem se lamentar: mas sim celebrar o mistério do Amor que ali se fazia presente.

5. Concluindo
Vou concluir com as palavras do meu confrade espanhol. J. Tresserras Basela: Vimos como, pela narração de Tomás de Celano, se destaca “o caráter de celebração-memorial que a morte de Francisco tem”. Vemos aí “o caminho ascendente do Pobrezinho de Assis que se prepara para participar da Ressurreição. E não querendo permanecer só, neste momento, ele envolve nesta celebração os frades e toda a criação para que com ele gozem da plenitude deste momento” (10)

Para nós, para as nossas comunidades e para as equipes de liturgia, fica este exemplo de São Francisco: Uma celebração será boa, isto é, viva, criativa, envolvente, convincente, e produzirá frutos de evangelização, se ela vier carregada de uma mística, se ela vier carregada de uma experiência de Deus, do Deus Pobre que está do lado do pobre.
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(1). Cf. São Francisco de Assis, Escritos e biografias de São Francisco de Assis. Crônicas e outros testemunhos do primeiro século franciscano, Vozes/CEFEPAL, Petrópolis 1981. Cf. também L. Boff, São Francisco de Assis: Ternura e Vigor, Vozes, Petrópolis 1982.
(2). Cf. São Boaventura, “Legenda Maior” I, 6, em: São Francisco de Assis, Escritos e biografias…, op. cit, p. 468: I Fioretti, 25, em: Ibidem, p. 1130.
(3). Cf. São Francisco de Assis, Escritos e biografias…, op. clt., p. 441.
(4). Cf , J. TRESSERRAS Basela. La muerte de San Francisco como celebración memorial Análisis de la “Vita secunda” 217 de Tomás de Celano, comparación con otras biografias. Editrice Antonianum, Roma, 1990.
(5). Ibidem, p. 135.
(6). Cf. D. FLOOD. Frei Francisco e o Movimento Franciscano, Vozes/CEFEPAL. Petrópolis 1986. p. 158-178.
(7). J. TRESSERRAS Basela, op. cit.. p. 143. ‘Francisco era apenas diácono, não quis usurpar o poder sacerdotal de consagrar, mas quis imitar Jesus até o fim. Foi então que realizou a celebração da aliança nova e eterna’ {L. Boff. op. cit., p. 176).
(8). J. TRESSERRAS Basela. op. ciL, p. 149.
(9) L.BOFF, op, cit, p.172-180; Idem, “Uma irmã de São Francisco: a morte”, Grande Sinal 36 (1982) p. 451-464
(10). J. TRESSERRAS Basela, op. Cit., p.212.

Texto publicado na Revista Grande Sinal, Revista de Espiritualidade, de propriedade da Província da Imaculada Conceição do Brasil e editada pelo ITF, Petrópolis, 1994, Ano 48.

Morte e Vida de São Francisco de Assis

Frei Nilo Agostini

Todo debilidato, com voz fraca, sumida, entoa Francisco o Salmo 142: Você mea ad Dominum clamavi (“Com minha voz clamei ao Senhor…”). O Salmo vai sendo entoado pouco a pouco, e ao chegar ao versículo Educ de custodia animam meam (“Arranca do cárcere minha alma, pra que vá cantar teu nome, pois me esperam os justos e tu me darás o galardão”). Faz-se grande e profundo silêncio. Acabara de morrer, cantando, Francisco de Assis.

Quem é este que transfigura o trauma da morte em expressão de liberdade tão suprema? Desaparece o sinistro da morte. E Francisco vai ao seu encontro como quem vai abraçar e saudar uma irmã muito querida.

Ano de 1226. Francisco se acha muito debilitado. Seu estômago não aceita mais alimento algum. Chega a vomitar sangue. Admiram-se todos como um corpo tão enfraquecido, já tão morto, ainda não tenha desfalecido. Transportado de Sena para Assis, Francisco ainda encontra forças para exortar os que acorrem a ele. E aos irmãos diz: “Meus irmãos, comecemos a servir ao Senhor, porque até agora bem pouco fizemos”. Ao chegar a Assis, um médico se apresenta e constata que nada mais resta a fazer. Ao que Francisco exclama: “Bem-vinda sejas, irmã minha, a morte!” E convida aos irmãos Ângelo e Leão para cantarem o Cântico do Irmão Sol, ao qual Francisco Acrescenta a última estrofe em louvor a Deus pela morte corporal.

Cria-se uma atmosfera tão jovial e alegre que o Ministro Geral da Ordem, Frei Elias, interpela Francisco para que pare com toda aquela atmosfera, vista como “cantoria”, para que enfim ele morra “convenientemente”, pois poderia escandalizar os moradores de Assis. “Com tudo o que sofro, me sinto tão perto de Deus que não posso senão cantar!” – respondeu-lhe Francisco.

Aproximando-se a hora derradeira, Francisco deseja ser levado para a capelinha de Nossa Senhora dos Anjos, na Porciúncula, onde tudo havia começado. Lá, num gesto de despojamento, de identificação com o Cristo crucificado e de integração com o Pai, pede que o deixem, nu, sobre a terra e diz aos frades: “Fiz o que tinha que fazer. Que Cristo vos ensine o que cabe a vós”. Despede-se de todos os irmãos; abençoa-os; lembra-lhes que “o Santo Evangelho é mais importante que todas as demais instituições”. Ainda deseja que Irmã Jacoba lhe traga alguns daqueles deliciosos biscoitos. Anima o seu médico, dizendo-lhe: Irmão médico, dize com coragem que a minha morte está próxima. Para mim, ela é a porta para a vida!” E, então, canta o Salmo 142. Francisco parte cantando, cortês, hospitaleiro e reconciliado com a morte.

O canto de Francisco está baseado em uma percepção realista da morte: “Nenhum homem pode escapar da morte”. Mas como pode ser irmã aquela que engole a vida, que decepa aquela pulsão arraigada em cada um de nós, fundada em um “desejo” que busca triunfar sobre a morte e viver eternamente? Francisco acolhe fraternalmente a morte. Nele realiza-se, de forma maravilhosa, o encontro entre a vida e a morte, em um processo de integração da morte.

Francisco acolhe a vida assim como ela é, ou seja, em sua exigência de eternidade e em sua mortalidade. Tanto a vida como a morte são um processo que perdura ao longo de toda a vida. A morte faz parte da vida. Como e despertar e o adormecer, assim é a morte para o ser humano. Ela não rouba a vida; dá a esse tipo de vida a possibilidade de outro tipo de vida, eterna e imortal, em Deus.

A morte não é então negação total da vida, não é nossa inimiga, mas é passagem para o modo de vida em Deus, novo e definitivo, imortal e pleno. Francisco capta esta realidade e abriga a morte dentro da vida. Acolhe toda limitação e mostra-se tolerante com a pequenez humana, a sua e a dos outros.

A grandeza espiritual e religiosa de Francisco no saudar e cantar a morte significa que já está para além da própria morte; ela, digna hóspede não lhe é problema; ao contrário, ela é a condição de viver eternamente, de triunfar de modo absoluto, de vencer todo embotamento do pecado que a transforma em tragédia. Francisco soube mergulhar na fonte de toda a vida. “Enquanto Deus é Deus, enquanto Ele é o vivente e a Fonte de toda a vida, eu não morrerei, ainda que corporalmente morra!” (L. Boff).

Morte, drama sagrado,
não uma tragédia.
Morte, bem-vinda,
não uma inimiga.
Morte, uma irmã,
não uma ladra.
Morte, abertura para a plena liberdade,
presença do Reino de Deus, utopia do justos.
“Deus enxugará as lágrimas dos seus olhos, e a morte não existirá mais,
nem haverá mais luto, nem pranto, nem fadiga, porque tudo isso já passou” (Ap 21,4).

“Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã,
a morte corporal, da qual nenhum vivente pode escapar” (São Francisco, Cântico do Irmão Sol).

Sermão proferido por Frei Nilo Agostini, na Festa de São Francisco de Assis, 04/10/1991

Sobre o passamento do santo pai

Capítulo 162 – Como exortou e abençoou os irmãos no fim

214
1 No fim do homem – diz o Sábio – suas obras serão desnudadas (cfr. Eclo 11,29).
2 Neste santo vemos que isso se realizou por completo, e gloriosamente. Ele percorreu com alegria da mente o caminho dos mandamentos de Deus, chegou ao alto passando pelos degraus de todas as virtudes e viu o fim de toda consumação como uma obra amoldável, aperfeiçoada pelo martelo das múltiplas tribulações.
3 Quando partiu livre para os céus, pisando as glórias desta vida mortal, resplandeceram mais as suas obras admiráveis, e ficou provado pelo juizo da verdade que tudo que tinha vivido era divino.
4 Achou que viver para o mundo era um opróbrio, amou os seus até o fim e recebeu a morte cantando.
5 Sentindo já próximo seus últimos dias, em que a luz perpétua substituiria a luz que se acaba, demonstrou pelo exemplo de sua virtude que não tinha nada em comum com o mundo.
6 Prostrado pela doença grave que encerrou todos os seus sofrimentos, fez com que o colocassem nu sobre a terra nua, para que, naquela hora extrema em que ainda podia enraivecer o inimigo, estivesse preparado para lutar nu contra o adversário nu.
7 Na verdade esperava intrepidamente o triunfo e já apertava em suas mãos a coroa da justiça.
8 Assim, posto no chão, sem a sua roupa de saco, voltou o rosto para o céu como costumava e, todo concentrado naquela glória, cobriu a chaga do lado direito com a mão esquerda, para que não a vissem.
9 E disse aos frades: “Eu fiz a minha parte; que Cristo vos ensine a cumprir a vossa!”
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1 Vendo isso, os filhos sucumbiram à dor imensa da compaixão, soltando rios de lágrimas e dando longos suspiros.
2 O seu guardião, contendo os soluços e adivinhando por inspiração divina o que o santo queria, levantou-se, foi correndo buscar uma calça, o hábito de saco e o capuz, e disse ao pai:
3 “Fica sabendo que te empresto, em virtude da obediência, este hábito, as calças e o capuz!
4 Mas para saberes que não tens nenhum direito de propriedade, tiro-te o poder de dá-los a quem quer que seja”.
5 O santo se alegrou e se rejubilou de alegria do coração, vendo que tinha mantido a fidelidade para com a Senhora Pobreza até o fim.
6 Fizera tudo isso por zelo da pobreza, a ponto de não querer ter no fim nem o hábito próprio mas como emprestado por outro.
7 Usara na cabeça o capuz de saco para esconder as cicatrizes da doença dos olhos, quando teria necessidade de um gorro de lã cara, que fosse bem macio.
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1 Depois disso, o santo levantou as mãos para o céu e louvou a Cristo porque, livre de tudo, já estava indo ao seu encontro.
2 Mas, para demonstrar que era um verdadeiro imitador do Cristo, seu Deus, em todas as coisas, amou até o fim os frades e filhos, a quem amara desde o começo.
3 Pois fez chamar todos os irmãos presentes e, aclamando-os com palavras de consolação, por sua morte, exortou-os com afeto de pai ao amor de Deus.
4 Falou também sobre a observância da paciência e da pobreza, dizendo que o santo Evangelho era mais importante do que todas as instituições.
5 Estando todos os frades sentados ao seu redor, estendeu sobre eles a sua destra e, começando por seu vigário, a impôs sobre a cabeça de cada um.
6 E disse: “Filhos todos, adeus no temor do Senhor! Permanecei sempre nele!
7 E como a tentação e a tribulação estão para chegar, felizes os que perseverarem no que começaram.
8 Eu vou para Deus, a cuja graça recomendo-vos todos”.
9 Nos que estavam presentes, abençoou a todos os frades que estavam por todo o mundo e os que haveriam de vir depois deles, até o fim dos séculos dos séculos.
10 Que ninguém usurpe para si mesmo essa bênção que, nos presentes, deu aos ausentes. Assim como se acha escrita em outro lugar parece ter algo de especial, mas isso é um desvirtuamento.

Capítulo 163 – Sobre a sua morte e o que faz antes de morrer
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1 Enquanto os frades choravam amargamente e se lamentavam inconsoláveis, o pai santo mandou trazer um pão. Abençoou-o, partiu-o e deu um pedacinho para cada um comer.
2 Também mandou trazer um livro dos Evangelhos e pediu que lessem o Evangelho de São João a partir do trecho que começa: “Antes do dia da festa da Páscoa”, etc.
3 Lembrava-se daquela sacratíssima ceia que foi a última celebrada pelo Senhor com seus discípulos.
4 Fez tudo isso para celebrar sua lembrança, demonstrando todo o amor que tinha para com seus frades.
5 Passou em ação de graças os poucos dias que ainda restavam até sua morte, ensinando seus filhos muito amados a louvar Cristo em sua companhia.
6 Ele mesmo, quanto lhe permitiam suas forças, entoou o Salmo: “Lanço um grande brado ao Senhor, em alta voz imploro o Senhor” (Sl 141,2-8), etc.
7 Convidou também todas as criaturas ao louvor de Deus e, usando uma composição que tinha feito em outros tempos, exortou-as ele mesmo ao amor de Deus.
8 Chegou a exortar para o louvor até a própria morte, terrível e aborrecida para todos, e, correndo alegre ao seu encontro, convidou-a com hospitalidade: “Bem-vinda seja a minha irmã morte!”
9 Ao médico disse: “Irmão médico, diga com coragem que minha morte está próxima, para mim ela é a porta da vida!”
10 E aos frades: “Quando perceberdes que cheguei ao fim, do jeito que me vistes despido anteontem, assim me colocai no chão, e lá me deixai ficar mesmo depois de morto, pelo tempo que alguém levaria para caminhar sem pressa uma milha”.
11 E assim chegou a hora. Tendo completado em si mesmo todos os mistérios de Cristo, voou feliz para Deus.

A irmã morte

N.G. Van Doornik

O mistério da vida e da morte é um mistério de pobreza. A vida é de graça. Nada fiz para viver. Os que me deram a vida, com toda sua consciência e bondade, nada sabiam da vida. Não puderam controlar o que deram.

Não puderam segurar a vida terrena deles mesmos.

Nada entendemos da morte, com todo o nosso progresso. Quanto mais o homem progride mais sabe que a morte, como a vida, é um mistério.

Só podemos agradecer. Agradecer pela vida de cada momento, pelo dom de cada momento, e pelos dons da vida dos outros, dos outros seres que a vida nos traz. Só podemos agradecer pelo mistério da vida, que é tão grande que ultrapassa a morte.

Agradecer é viver cada momento intensamente. Agradecer é viver.

Não precisamos ter medo da morte se o Senhor da Vida é Amor e nos prova isso a cada momento. Mas só os agradecidos entendem que Ele é Amor.

É claro que a gente tem um pouco de medo, aquele medo que a gente sempre sente como parte da excitação das experiências muito grandes ou muito novas. É um medo vital, pelo qual também podemos agradecer.

Não somos nada, não temos nada, não levamos nada.

Mas tudo está ao nosso alcance e tudo pode ser vivido por nós intensamente, a cada momento.

O momento anterior já passou. Teve uma oportunidade única de ser vivido e já se fez passado. Mais assustadora que essa morte que dá a impressão de nos interromper o fluxo da vida é essa outra em que perdemos oportunidades de vida, em que algo passa e não é integrado nem aproveitado.

A celebração da Morte

Frei Hugo Baggio

Francisco faz da morte uma celebração, uma liturgia. Por ser ela um fato humano, uma realidade “da qual homem algum pode escapar”, ele a convoca para unir-se aos demais elementos vitais do homem: o sol, a lua, a terra com suas flores e frutas, as estrelas e o vento, a água cristalina e cantante.

Não é ela a mensageira de uma fatalidade, embora homem vivente algum dela possa esquivar-se, não é destruidora da tessitura da vida e separadora de corações e dos elementos naturais. Não é uma criatura deformada, repelente, intrusa ou alheia à criação de Deus. Ela é também uma criatura nascida, como todas, da bondade de Deus.

Se para Francisco todas as criaturas são irmãos e irmãs, também a morte é a irmã, aquela que nos toma pela mão e nos conduz por este trecho do caminho, misterioso e sombrio. Misterioso porque não temos dele nenhuma experiência. Tudo o que da morte sabemos é algo exterior a nós, algo que nos chega de fora.

Por isso, não a conscientizamos. E, conseqüentemente, não a incorporamos à nossa história, procurando afastá-la. E como não o podemos fazer biologicamente, fazemo-lo mentalmente: recusamo-nos a pensar nela e dela falar. Rejeitamo-la. Sombrio, porque as civilizações e as culturas encheram este caminho de negrume e sombras assustadoras.

Para Francisco de Assis, esta saudação não é mera exuberância poética, numa hora de bem-estar espiritual, quando nosso ser suporta até os pensamentos aparentemente mais assustadores e desconfortantes. É uma saudação arrancada, no momento de plena consciência da proximidade de sua dissolução, quando o fenômeno morte lhe está próximo, palpável, no tempo e no espaço.

Nem tampouco é um grito nascido de um “cansado da vida”, porque sua cosmovisão fazia-o degustar a vida, e amá-la, em suas múltiplas alegrias. É a conformidade profunda, nascida da fé que acredita numa realidade meta-histórica, atingível apenas através da morte.

Se a morte é irmã, isto significa que entre ela e o homem existe um parentesco, portanto não se trata de algo estranho, algo punitivo, algo fatal, algo inimigo. Também aqui aparece uma dimensão diferente: o desapego foi libertando o homem, até desejar apenas a realização no plano eterno de Deus. Portanto, não fala, aqui, a emoção estética, ainda que o belo exercesse tão profundo fascínio em Francisco, mas é uma expressão teológica de aceitação alegre. Tudo é bem. Tudo é dádiva. Tudo é gratuidade. Por isso ele usa a expressão: bem-vinda!

A terra é “irmã” e sobre ela quer seu corpo estendido para nela passar à realidade eterna, pelas mãos de outra “irmã”, a Morte. Sempre de novo, na visão de Francisco, aparece a fraternização, que vem marcada pela entrega total. Francisco foi o homem “à disposição” de tudo e de todos, como ensina em suas exortações: o frade está submisso à toda criatura. Mormente à disposição de Deus. Daí a entrega final, generosa e alegre, fraterna e pacificada.

Tinha bem claro que o homem não é um ser-para-a-morte, mas um ser-para-a-vida. Por isso, olha com o mesmo olhar límpido e destemido o sol, a lua, as flores, as águas e a morte, porque em todos eles se manifesta o mesmo mistério do ser e palpita a mesma centelha da vida. Sem dúvida, é resultado de uma longa caminhada. Sobretudo, resultado de um relacionamento equilibrado e iluminado com todos os seres, relacionamento feito de ternura e de amor. O que se ama não se teme, pois os dois termos são excludentes. Esta estrofe não foi um aditamento de última hora, mas um complemento necessário, sem o qual o Cântico das Criaturas ficaria mutilado e incompleto.

O Cântico começa com o SOL e termina com a MORTE sem estabelecer um paradoxo, ou antagonismos, mas é uma continuidade natural, uma decorrência lógica. É o encontro da luz solar com a luz da eternidade. É a explosão da luz. Francisco aproximou o Sol e a Morte, a Vida e a Morte, a Beleza e a Morte, a Alegria e a Morte, dentro de sua simplicidade característica, sem fazer violências a si ou aos outros, mas na aceitação plena de quem sabe que somente quando as folhas da flor caem é que a semente tem possibilidade de tornar-se geradora de uma nova primavera.

Ou somente no apodrecer no seio da terra irrompe a vida do grão. Na tradição franciscana, desde Frei Pacífico, o jogral da corte, dos dias de Francisco até um Alceu Amoroso Lima dos nossos dias, vamos encontrar esta fraterna convivência do homem com a morte, depois de ter exorcizado todos os fantasmas e medos e de ter aceito o parentesco com a Irma Morte.

Por isso, entre a série de elementos com os quais tentamos descrever a riqueza do vocábulo franciscanismo, devemos alinhar, com toda a naturalidade, a concepção da MORTE de Francisco como um dos elementos constitutivos do franciscanismo.

Extraído do livro “São Francisco, vida e ideal”, de Frei Hugo Baggio, Vozes.

Quando algum dos nossos termina a caminhada…

Frei Gustavo Medella 

CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

Caminho… Caminhada… É comum, na espiritualidade, lançar-se mão desta metáfora no intuito de ilustrar o dinamismo da história humana. A vida não é estática. É movimento, mudança, percurso, trajeto. Não poucas vezes, na Sagrada Escritura e na vida dos Santos, o caminho se apresenta como rota de conversão, de amadurecimento, de tomada das grandes decisões. Basta recordar a peregrinação do Povo de Israel, 40 anos pelo deserto, retornando do exílio para a terra prometida, das muitas andanças de Jesus Cristo e de Francisco de Assis, quando este volta das Apúlias para sua terra natal, com desejo ardente de atender ao convite do Senhor. Movimento, mudança, questionamento e insegurança quase sempre são elementos constituintes destas caminhadas.

Na vida individual tal fenômeno também é perceptível: cada pessoa experimenta na própria história os efeitos do caminho empreendido. Relações, decisões, alegrias, decepções e dúvidas dão a tônica desta caminhada, até o dia em que, às vezes lenta, às vezes abruptamente, ela chega ao fim. A certeza da finitude funciona como uma espécie de bússola ou, mais modernamente falando, de um GPS que orienta as escolhas e opções de cada um.

Monteiro Lobato, com arte e maestria, dá voz à personagem Emília: “A vida, Senhor Visconde, é um pisca-pisca. A gente nasce, isto é, começa a piscar. Quem pára de piscar chegou ao fim, morreu. Piscar é abrir e fechar os olhos – viver é isso. É um dorme e acorda, dorme e acorda, até que dorme e não acorda mais […] A vida das gentes neste mundo, senhor Sabugo, é isso. Um rosário de piscados. Cada pisco é um dia. Pisca e mama, pisca e brinca, pisca e estuda, pisca e ama, pisca e cria filhos, pisca e geme os reumatismos, e por fim pisca pela última vez e morre. – E depois que morre?, perguntou o Visconde. – Depois que morre, vira hipótese. É ou não é?”

Apesar de ser caminhada individual, a existência humana é uma obra em aberto, principalmente no que diz respeito às relações que permite criar. No paradoxo humano, cada individualidade é fruto de uma relação que tende a expandir suas tramas configuradas pela consanguinidade, pela identificação, pela simpatia, pela amizade, pela necessidade. E é neste aspecto que o tema da finitude ganha força e repercussão, não na história de quem finda sua caminhada, mas se lança como desafio imperativo para quem permanece na estrada. Lidar com a partida daquele que se ama é tarefa inadiável e intransferível, é o preço que se paga por se viver relacionalmente.

E é sobre este nó da trama vital que a presente reflexão deseja se debruçar, principalmente no que diz respeito à abordagem pastoral da questão, revelando o rosto de uma Igreja companheira e solidária com seus filhos e filhas que atravessam este obscuro vale em sua caminhada de vida: a partida de um ente querido. O termo “Igreja” aqui compreendido de forma ampla, na presença dos ministros, ordenados ou instituídos, na atuação de uma pastoral específica, na disponibilidade de uma comunidade capaz de se solidarizar.

Em um primeiro momento, algumas considerações a partir da espiritualidade cristã. Logo após, o texto se ocupará em tecer comentários a partir de situações que a própria prática pastoral apresenta, a saber: A partida como coroamento de uma longa caminhada; a partida de quem atravessa o calvário da doença; a partida repentina. É evidente que a complexidade e a variação quase infinita dos arranjos das inúmeras possibilidades individuais ultrapassam de longe os poucos aspectos aqui descritos. Eles são apenas alguns acenos aproximativos que buscam provocar a reflexão.

1.  ALGUNS OLHARES A PARTIR DA ESPIRITUALIDADE

1.1  A vida do justo e a sabedoria do Antigo Testamento

O Livro da Sabedoria traz reflexões que abordam diferentes situações da vida, mais ou menos agradáveis. “A vida dos justos está nas mãos de Deus” (Sb 3,1) é uma constatação do autor que aborda a última passagem do ser humano, peregrino e viajante por natureza. É a passagem desta vida para a vida eterna.

A justiça é um bem divino e o ser humano que pauta sua vida na busca e no cultivo dela se aproxima cada vez mais de Deus. Não é à toa que, no Livro de Jeremias, Deus aparece designado como “Senhor, nossa justiça” (Jr 23,6).

Na história da Salvação muitos foram denominados justos; todos aqueles que souberam conduzir suas vidas pelos caminhos do Senhor. No Novo Testamento, aparece, por exemplo, o justo José, pai adotivo de Jesus, que se lançou de corpo e alma como colaborador efetivo do projeto de Deus.

Quem vive justamente parte como justo e é acolhido com amor pelo Senhor. Importante é lembrar que viver retamente não significa passar pela existência sem cometer erros. Os tropeços e enganos fazem parte da história humana. Mais importante do que evitá-los a qualquer preço, às vezes às custas de um escrúpulo paralisante, é cultivar, cada um em si, um auto-reconhecimento das próprias limitações e, apesar delas, seguir em frente, com confiança na misericórdia de Deus.

E o justo sabe bem disso. “A vida dos justos, ao contrário, está nas mãos de Deus, e nenhum tormento os atingirá. Aos olhos dos insensatos, aqueles pareciam ter morrido, e seu fim foi considerado como desgraça. Os insensatos pensavam que a partida dos justos do nosso meio era um aniquilamento, mas agora estão na paz. As pessoas pensavam que os justos estavam cumprindo uma pena, mas esperavam a imortalidade. Por uma breve pena receberão grandes benefícios, porque Deus os provou e os encontrou dignos dele. Deus examinou-os como ouro no crisol, e os aceitou como holocausto perfeito. No dia do julgamento, eles resplenderão como fagulhas no meio da palha. Eles governarão as nações, submeterão os povos, e o Senhor reinará para sempre sobre eles. Os que nele confiam compreenderão a verdade, e os que lhe são fiéis viverão junto dele, no amor, pois a graça e a misericórdia estão reservadas para seus escolhidos”. (Sb 3,1-9).

1.2  O grão de trigo e as “pequenas mortes” de cada dia

“Se o grão de trigo, caído na terra, não morrer, fica só; se morrer, produz muito fruto”.(Jo 12,24). Conforme expresso no Evangelho de João, Jesus Cristo lança mão da comparação com o grão de trigo para referir-se a si mesmo. Ele queria desta forma mostrar que sua morte, ainda que sofrida e injusta, seria fonte de vida para o mundo. E a principal garantia de Cristo era sua total fidelidade ao projeto do Reino de Deus. Ele foi fiel até o fim. Outro elemento a ser destacado é que o sangue derramado na cruz foi o coroamento do processo de toda a vida de Cristo. Em cada gesto de acolhida, em cada palavra de estímulo, em cada cura ou ensinamento, o mestre estava se entregando por inteiro, para que todos tivessem vida, e vida em abundância (Cf. Jo 10,10).

O acontecido ao grão de trigo também se aplica à existência do ser humano. Todo sacrifício realizado em benefício do próximo não deixa de ser uma pequena morte, mas é morte que gera a vida. Bom exemplo é o da mãe que, de madrugada, se levanta para acudir seu bebê que está chorando. Naquele momento ela morreu para seu sono, para sua preguiça, para a vontade de ficar dormindo. Foi capaz de se sacrificar porque alguém que ela ama estava precisando de seu socorro. Outra situação de “morte para si mesmo” é o casamento: mais uma vez se morre para gerar vida. Marido e mulher precisam se transformar mutuamente, um se adequando ao outro. Caminhando desta forma são capazes de construir uma união feliz. A vida, portanto, é um constante morrer, mas esta constatação não deve ser motivo de tristeza ou medo. Ela pretende apenas recordar que vida e morte caminham de mãos dadas, uma gerando a outra.

1.3  São Francisco e seu encontro com a irmã morte

Poucos instantes antes de morrer, por volta de 1226, São Francisco pediu a seus irmãos que o despissem e que o colocassem nu sobre a terra. Era o coroamento de uma experiência profunda de Deus, o Deus da vida. Em Cristo, Francisco conseguiu enxergar a beleza e a grandiosidade do amor do Pai e, por isso, transformou sua vida em um perene louvor a Deus, pautado em profundo amor e respeito por todos os seres humanos e pelos bens da criação.

Francisco já partiu há quase 800 anos, mas sua experiência continua a inspirar milhões de homens e mulheres em todo mundo. O Santo de Assis, descobrindo profundamente amado por Deus, o Sumo Bem, Único e Verdadeiro Bem, conseguiu transmitir este amor para além das fronteiras de seu tempo e de seu espaço.

Foi modelo de vida até o fim. Francisco bem sabia que tudo aquilo era e tinha havia recebido como dom gratuito, e por isso não queria tomar posse de nada, nem das coisas, nem da natureza, nem da pessoa. Soube viver em profunda gratuidade e, assim, apesar de todos os sofrimentos (físicos inclusive), conseguiu ser uma pessoa realizada e feliz.

Quando chegou sua hora, Francisco encheu seu coração de esperança e conseguiu chamar a morte de “novo nascimento”. Não se trata de um fim, mas de uma transformação, do ingresso em uma nova maneira de existir. No Cântico das criaturas, Francisco louva e agradece a Deus por todos os benefícios que Ele realizou (e realiza) na criação. E não deixa de fora a “Irmã Morte Corporal”, escrevendo assim: “Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã a morte corporal, da qual homem algum pode escapar. (…) Felizes os que ela achar conformes à tua santíssima vontade, porque a morte segunda não lhes fará mal!”

Francisco de Assis ensina que a vida é dom, presente de Deus. No momento da partida de alguém querido, esta recordação é muito salutar, pois alia à dor e à tristeza um profundo sentimento de gratidão e esperança.

2.  PARTIDA E PARTIDAS

Embora seja um só fenômeno, parte integrante da existência, a maneira como ocorre varia de acordo com uma série incontável de fatores. Tendo em vista este aspecto, também a lida pastoral difere de caso a caso. A presença da Igreja neste delicado momento da vida das famílias assume matizes diferentes segundo as circunstâncias do ocorrido. A seguir, algumas pistas de atuação e também poucas reflexões diante de três configurações distintas

2.1  A partida como coroamento de uma longa caminhada

É o caso da existência que, seguindo seu curso natural, chega ao fim, à semelhança de uma vela acesa que, consumida, se apaga. Vêm à lembrança aqueles que partem aos 80, 90 anos, levados pelas limitações da própria idade. Em sua existência, é claro, tiveram momentos de dor, sofrimento e aridez. Porém, com sabedoria, tiveram a capacidade de promover uma síntese positiva de sua história. Evidente que deixam saudades. Cônjuges, filhos, netos, bisnetos e amigos lamentam a partida, choram ao despedir-se daquele ser humano que tanto marcou a história deles. No entanto, parece que nestes casos a própria existência oferece os elementos capazes de auxiliar quem fica na busca de um sentido para o fato: “Papai descansou, cumpriu sua missão!” – Não é incomum, nestes casos, ouvir de filhos e filhas, por exemplo, este tipo de afirmação.

Permanece a saudade como sentimento profundo, que pode inclusive gerar poesia e canção, como no caso do músico Sérgio Bittencourt. Ao expressar a saudade que sentia de se pai (Jacó do Bandolim), Sérgio compôs a bela peça musical “Naquela mesa”: “Naquela mesa ele sentava sempre / E me dizia sempre o que é viver melhor / Naquela mesa ele contava histórias / Que hoje na memória eu guardo e sei de cor / Naquela mesa ele juntava gente / E contava contente o que fez de manhã / E nos seus olhos era tanto brilho / Que mais que seu filho / Eu fiquei seu fã / Eu não sabia que doía tanto / Uma mesa num canto, uma casa e um jardim / Se eu soubesse o quanto dói a vida / Essa dor tão doída, não doía assim / Agora resta uma mesa na sala / E hoje ninguém mais fala do seu bandolim / Naquela mesa tá faltando ele / E a saudade dele tá doendo em mim”.

Nestas situações, a presença de uma Igreja que reza junto à família e aos amigos, que se apresenta com palavras de gratidão a Deus e como semeadora de esperança, se torna útil e oportuna. A celebração no velório, com a presença do ministro, a posterior visitação à família para além da missa de sétimo dia, a comunidade que se une em oração são ações que conferem corpo e consistência à presença eclesial. Soma-se aqui a atuação dos serviços pastorais voltados aos idosos e doentes, em especial o trabalho de visitação constante, da comunhão aos enfermos e outras atuações do gênero.

Há os casos ainda – e não são poucos – em que a família, ou o próprio falecido, não tem ligação direta com qualquer comunidade de fé. Aí também cabe uma presença da Igreja, não de caráter proselitista, mas fundada principalmente na lógica do testemunho, da presença amiga e companheira, da especialista no trato humano, oferecendo, como São Pedro à porta do templo, aquilo que ela tem para dar: “Nem ouro, nem prata, mas Jesus Cristo, o Nazareno” (At 3,6). Quem sabe tal testemunho não desperte no coração de algum dos presentes a vontade viva de se aproximar desta Igreja que traz a Boa-Nova de um Cristo amigo e servidor?

2.2  A partida de quem atravessa o calvário da doença

“O Filho de Deus sofreu, morreu, mas ressuscitou, e exatamente por isso aquelas chagas tornam-se o sinal da nossa redenção, do perdão e da reconciliação com o Pai; tornam-se, contudo, também um banco de prova para a fé dos discípulos e para a nossa fé: todas as vezes que o Senhor fala da sua paixão e morte, eles não compreendem, rejeitam, opõem-se. Para eles, como para nós, o sofrimento permanece sempre carregado de mistério, difícil de aceitar e suportar.” (Papa Bento XVI, na Mensagem para o XIX Dia Mundial do Doente – 2011).

Encontrar nas chagas de Cristo e nas próprias chagas um sinal de redenção não é exercício dos mais fáceis, conforme aponta o Papa Bento XVI. O mistério do sofrimento, quando vivido na própria história, ou na vida daqueles que estão próximos, traz em si um caminhão de questionamentos e muito pouco – ou às vezes nada – de resposta. Muitas vezes são anos a fio de limitação, dor e luta vivenciados pelo enfermo e por aqueles que estão a seu redor, especialmente os mais próximos. Não são poucos os que, ao contemplar tamanha provação, sentem profunda dificuldade em enxergar um sentido para vida que seja capaz de ir além daquele sofrimento macerante, a molde do personagem bíblico Jó, quando diz: .”Pereça o dia em que nasci, e a noite que disse: ‘Foi concebido um menino’”. (Jó 3,3).

A partida de alguém depois de um período de enfermidade, principalmente se esta se estende por muito tempo, provoca em quem fica um misto de sentimentos. Aos mais próximos geralmente surge certo sentimento de alívio, aliado à saudade e à dor da perda, é óbvio. Basta pensar, por exemplo, na figura da filha solteira, já de certa idade, que cuidou anos a fio da mãe octogenária acamada. Nos últimos anos o nível de comunicação se reduzira a alguns olhares esporádicos com certa aparência de consciência. Certamente, para esta filha, dentre o turbilhão de emoções que brotam em seu coração, está o suspiro aliviado de quem acompanhou todo o ciclo de sofrimento ocasionado pela doença.

Além de oferecer o conforto aos que sofrem com esta realidade e iluminá-los a partir da perspectiva da fé, o esforço pastoral deve também identificar os fermentos da ação evangélica de quem se dispõe a acompanhar pessoas que atravessam este tipo de situação-limite. Se a enfermidade é, de acordo com a Igreja, oportunidade para o fiel conformar sua cruz à cruz de Cristo, a presença dos “cireneus” que acompanham estes dramas é também fermento fecundo de amor-doação. É um grito silencioso e eloquente de profecia diante da mentalidade vigente de exaltação do lucro, do sucesso e do prazer a qualquer custo. Eis aí uma grande chance para exemplificar na prática a riqueza e a beleza da proposta cristã. Não se trata de exaltação pessoal de quem se dispôs a doar a própria vida ao cuidado de alguém, mas de iluminar a grandeza deste gesto generoso que tende fortemente ao Evangelho.

À medida que o momento da partida se aproxima, no interior de quem sofre ocorre uma verdadeira batalha de sentimentos, conforme escreve J.B Libanio: “No momento em que o enfermo se depara com a proximidade certa da morte, corta-lhe o coração terrível dor. Sou eu mesmo e por quê? Não, não pode ser verdade. Tempo da negação, do isolamento. Momento difícil para acompanhar o enfermo. Rói-lhe o interior o sentimento de injustiça. Por que ele está nesse estado terminal? Tal percepção vem-lhe de uma intuição que nasce do próprio corpo e das circunstâncias. Embora não se fale da gravidade da doença e ele mesmo conscientemente a silencie, no fundo tudo em volta respira tal situação de fatalidade. Trava-se-lhe dentro a batalha da verdade e da aceitação da verdade a respeito da própria situação. Ele corre atrás de algum médico que lhe diga palavra, ainda que não verdadeira, do consolo da cura. Visita os lugares de milagres. Pessoas que estavam longe da religião, entregam-se a devoções na esperança de vencer a doença. E com a atual abundância de pastores e de grupos carismáticos pregando e semeando curas, o paciente corre atrás deles. Mas o verdadeiro cuidado não nasce de promessas que nos escapam. Porque da desilusão de não se curar brota a revolta. Em vez de bem espiritual, ao acenar aos doentes impossíveis curas, quando o caso já chega ao fim, geramos, não raro, ressentimento. Toca-nos ajudar a pessoa a aceitar a morte na esperança da vida eterna. Aí está a grande mensagem do cristianismo!” [Cuidadores de doentes terminais – Disponível em http://www.jblibanio.com.br/modules/wfsection/article.php?articleid=40].

2.3  A partida repentina

Nos dois casos descritos até agora, o momento da partida é precedido por um processo mais ou menos longo. No entanto, há situações em que, tragicamente, vidas são ceifadas de repente. São acidentes, assassinatos, suicídios, males súbitos que trazem espanto, desconsolo e até mesmo desespero. São pais que perdem filhos repentinamente, cônjuges que, de uma hora para outra, se veem desamparados e muitos outros dramas humanos.

O cantor e compositor britânico Eric Clapton passou por um terrível momento quando um grave acidente ceifou a vida de seu filho, Conor Clapton, então com quatro anos, em 1991. O menino caiu da janela de um andar altíssimo de um prédio em Nova York.

A partida precoce do menino inspirou Clapton a compor Tears in heaven, o que ajudou o compositor a lidar com a dor da perda. A publicação da música não foi planejada, mas ocorreu mesmo assim, e ela se transformou em um sucesso conhecido em diferentes partes do mundo.

É uma espécie de diálogo de Clapton com o filho e também uma série de perguntas que o autor lança na esperança de um dia contemplar o céu. Certamente a arte é importante aliada nestes momentos de separação. Ela ajuda a pessoa a dar um passo além, a descobrir-se ligada a algo maior do que ela, a Deus. E a dimensão deste Deus infinito, que abraça a toda a criação, faz a pessoa perceber-se parte de uma obra maravilhosa, integrada com todos os seres humanos, inclusive aqueles que já partiram, e com toda a criação.

No caso de Clapton, cantar a partida do filho (uma das dores que mais castiga qualquer ser humano) foi a forma que ele encontrou de se perceber ligado ao menino mesmo depois do ocorrido. A versão em português que segue é uma tradução livre: “Você saberia meu nome / se eu o visse no céu? / Você seria o mesmo, / se eu o visse no céu? / Eu tenho que ser forte, / e seguir em frente. / Porque eu sei que não pertenço ao céu. // Você apertaria minha mão / se eu o visse no céu? / Você me ajudaria a me levantar / se eu o visse no céu? / Encontrarei o meu caminho / atravessando noite e dia. / Porque eu sei que não posso ficar no céu. // O tempo pode trazer você para baixo. / O tempo pode fazer você dobrar os joelhos./ O tempo pode partir seu coração, / fazer você implorar por favor / Implorar por favor. // Atrás da porta / há paz. / Eu tenho certeza / e sei que não haverá mais / lágrimas no céu.

Diante deste tipo de acontecimento, na grande maioria das vezes, a celebração dos velórios conta com participação maciça de elevado número de pessoas e o clima que se espalha no ambiente é de profunda comoção, de nervos à flor da pele. Eis um cenário desafiador para o ministro que, em nome da Igreja, irá rezar junto a uma assembleia atônita e desestruturada humanamente. O que dizer para este povo? Que palavras de conforto podem ser proferidas diante de tal tragédia? Seguem algumas preocupações especiais do ministro nestas ocasiões:

● Fazer-se ouvir. Parentes, amigos e conhecidos se encontram transtornados.

Qualquer mensagem ou palavra proferida parece não penetrar seus corações sobressaltados. Com calma, prudência e confiança na força que vem de Deus, é conveniente que o ministro, aos poucos, tente criar na assembleia um ambiente de escuta, de concentração, de oração. Colocar-se na humildade, como companheiro(a) nesta hora difícil é uma postura que pode ajudar. Ao perceberem este calor humano e esta solidariedade imediata de quem está próximo, certamente os atingidos mais diretamente pela perda terão maior possibilidade de contemplar em Cristo o companheiro por excelência neste momento de profunda dor.

● Manter-se calmo. Jesus Cristo se compadeceu em diversas situações de dor e perda com a qual se deparou. Exemplo mais conhecido foi no episódio da morte de Lázaro, quando, segundo o relato do Evangelho de João (Jo 11,35), veio às lágrimas diante da partida de seu amigo querido. Comover-se significa “mover-se junto”, sentir-se movido pelo que move o outro. É natural que, neste contexto, o ministro também se sinta comovido, que se emocione, que tenha certa dificuldade em conduzir a assembleia em oração. Manter-se calmo, com os “pés no chão”, no entanto, é uma necessidade nesta hora. Ele será um ponto de referência, de apoio àquelas pessoas que “perderam seu chão”. Elas precisam se firmar e a fé na Ressurreição, por causa de Cristo, é o suporte principal de todo o cristão. Cabe ao ministro, portanto, oferecer elementos que levem as pessoas a se confiarem a esta força divina.

● Encontrar as palavras certas. O ponto de partida é sempre a Sagrada Escritura. O ministro deseja, como a inspiração do Espírito Santo, fazer brotar no coração dos presentes uma esperança fundada na fé. Não pretende apontar possíveis explicações para o fato e, muito menos, associar o acontecido à “vontade de Deus”. Busca, com todas as forças, lançar luzes sobre o drama, sempre evocando o amor

e a misericórdia que provêm do Senhor. Informações prévias sobre as circunstâncias do acontecido, sobre a história de vida de quem partiu, costumam ser importante auxílio, embora a tônica da mensagem deva ser a esperança.

● Falar para todos. Este é um item que demanda muita sensibilidade e perspicácia por parte do ministro. Diferente da missa, ou da celebração da Palavra, onde se presume que todos, ou a imensa maioria, sejam cristãos católicos, estes ambientes geralmente são marcados pele heterogeneidade de pessoas. Há católicos praticantes, outros batizados que nunca mais estiveram ligados à Igreja, cristãos de diferentes denominações, membros de outras religiões, agnósticos, ateus. Daí a preocupação em oferecer uma mensagem fiel ao Evangelho e também capaz de vir carregada de sentido para diferentes públicos.

Além da celebração no velório, o quanto possível, as pessoas que sofreram este tipo de perda necessitam de um acompanhamento próximo. A missa de sétimo dia também é momento de extrema comoção. Geralmente são celebrações lotadas. Há famílias que confeccionam camisetas com a foto da pessoa falecida, preparam homenagens, inúmeros parentes, amigos, colegas e conhecidos marcam presença. Um grande desafio para quem preside a missa de sétimo dia nestes casos é introduzir toda a comunidade, inclusive aqueles fiéis que não têm ligação direta com o fato, em uma oração comum em torno do mistério celebrado: a conformação da ressurreição daquele que partiu à Ressurreição do Senhor.

Em artigo recente, o teólogo J. B. Libanio, já citado anteriormente, descreve a forma pela qual a Ressurreição de Cristo confere luz e sentido à dor, ao sofrimento, ao fracasso: “Os cristãos ressignificam a Páscoa para a ressurreição de Jesus. Misturam-se também a desolação e a festa, a alegria e a terrível tristeza. O destino final de Jesus abateu-se sobre os seus seguidores. Morte pior não poderia ter acontecido. Rejeitado pelo povo, excomungado pela religião judaica, abandonado por Javé, traído por um apóstolo, cercado por dois condenados criminosos, nu, morre pregado numa cruz. Nada a celebrar. Tudo a esquecer. Mas ele ressuscita. Pura vida. No entanto, carrega consigo essa morte para dentro da eternidade. Não a rejeita. Aí estão as chagas para simbolizar a continuidade da cruz no corpo glorioso. Lentamente a comunidade primitiva assimila o trauma da morte de Jesus à medida que o experimenta vivo e senhor de todas as coisas. Milhões e milhões depois dele se entregarão à morte para testemunhar a verdade de sua morte e ressurreição. E bilhões e bilhões o fizeram centro de sua vida até o dia de hoje” [A ressurreição mais além da fé – Disponível em http://www.jblibanio.com.br/modules/wfsection/article.php?articleid=561].

APONTAMENTOS CONCLUSIVOS

O tema da partida é, por sua natureza, desafiante, amplo e complexo. As breves contribuições aqui apresentadas tomam forma de algumas poucas agulhas encontradas em um imenso palheiro. De qualquer forma, fica a provocação dirigida a quem busca se aprofundar no tema, seja por necessidade pastoral, curiosidade existencial ou pela proximidade, no espaço ou no tempo, com a referida temática. Para concluir, seguem alguns pontos já tratados na reflexão, apenas como meio de reforço:

● Elemento constituinte da existência humana, a morte com freqüência se apresenta como desafio principalmente quando diz respeito a alguém de convívio próximo.

● Na perspectiva cristã, não obstante o sofrimento, os questionamentos e a saudade, a Ressurreição de Cristo é o grande alento de força e esperança que enche de luz e dá sentido à partida deste mundo.

● Como momento crucial da história individual da pessoa e do grupo humano à qual ela pertence, a morte demanda, por parte da Igreja, um olhar pastoral repleto de carinho e atenção, que leve em conta as diferentes circunstâncias e situações em que tal fenômeno ocorre.

●  A atuação pastoral nestes casos requer sensibilidade, disposição e testemunho. Mais do que a presença institucional, na condução de cerimônias, faz-se mister uma presença próxima, amiga, companheira e solidária, um verdadeiro ministério de vida e esperança.

●  A presença ministerial nestas ocasiões não se refere somente à figura do ministro ordenado – embora este deva ser o primeiro a nutrir em si e na comunidade esta postura de companheirismo –, mas de toda a comunidade, que, sob iluminação do Espírito Santo, se organiza inteligentemente para dar uma resposta viva, ativa e eficaz a todos que atravessam estes difíceis momentos.

●  Jesus Cristo conferiu sentido à morte por sua ressurreição. Seguindo seus passos, a comunidade cristã busca e sonha contemplar a partida deste mundo como um novo nascimento para a existência plena e definitiva junto ao Senhor.

Que história é esta de chamar a morte de irmã?

Frei Vitório Mazzuco

No Cântico das Criaturas existe o famoso verso de Francisco de Assis: ”Louvado sejas, meu Senhor, pela Irmã nossa, a morte corporal, da qual nenhum homem vivente pode escapar”; ou como relata Tomás de Celano: “Convidava também todas as criaturas ao louvor de Deus e, por meio das palavras que outrora compusera, ele próprio exortava ao amor de Deus. Exortava ao louvor até a própria morte, terrível e odiosa para todos, indo alegre ao encontro dela, convidava-a a sua hospitalidade; disse: “Bem-vinda, minha irmã morte!”(2Cel 217,7). Francisco preparou ritualmente sua morte, fez da sua morte uma celebração, um rito de passagem. Por estar plenamente na vida e na totalidade da existência integrou a morte não como um absurdo, mas como parte natural do ciclo da vida.

Francisco de Assis é uma afirmação da vida por isso pode encarar a morte como um processo da curva biológica que traça a linha do nascer, crescer, envelhecer, morrer no momento oportuno ou prematuramente. Francisco preocupou-se com a vida e não com a doença e morte. Morre cantando a vida e sua essência. Ao celebrar a morte, ele a encarou de frente como aquela que lhe estendia a mão para concretizar o grande sonho humano: a imortalidade! Ele sabe que não está perdendo nada da vida porque encontrou e ganhou a vida plena que estava dentro de si mesmo. Fez do Amor seu projeto de vida, amar a Deus, amar a humanidade, a fraternidade, amar todos os seres. Esta confraternização universal do Amor não conhece a morte e o morrer. Tudo fez parte de sua vida, inclusive a finitude. Ele pode dizer como Santa Terezinha: “Eu não morro… entro na vida!”. Ele pode dizer como Gabriel Marcel: “Amar é dizer: tu não morrerás jamais!”.

Francisco de Assis sente, pensa, sente e age com a certeza de que a morte não é um fim, mas a grande oferenda, a entrega, a restituição de si mesmo para Deus. Conquistou a esperança dos justos, que é imortalizar-se e andar para sempre no florido e fecundo caminho do Paraíso. A força vital que emana de Francisco de Assis o fez dar boas vindas a Irmã Morte.

Francisco de Assis e a irmã morte

Frei Vitório Mazzuco

Tema estranho quando olhamos a partir dos limites de nossa compreensão e aceitação. Mas é natural em se tratando de Francisco de Assis, que preparou o momento de sua passagem deste mundo para a eternidade. Reuniu os Irmãos, recebeu os doces e a presença de sua amiga Jocoba de Settesoli, compôs um hino às Criaturas para ser cantado naquela hora, arrumou um despojado leito na terra nua. Por amar intensamente a vida, não teve medo da morte. Morreu no outono de 1226 em meio às metamorfoses da estação, o amadurecimento das folhas, o cair para o chão, renascer em todos os galhos e florescer; esconder nos confinados canteiros do inverno e renascer na Eterna Primavera.

Francisco venceu-se e, no vencer-se, destruiu seus medos, sobretudo o medo da morte. Porque reconstruiu o Reino, se sentiu seguro nele para sempre. Abraçar a morte fez parte de seu ser livre. Sêneca, na carta a Lucilius, escrevia: “Quem faz assim pratica a liberdade do pensamento, pois quem aprendeu a morrer, desaprendeu ser escravo”. Francisco não se prendeu a nada, foi livre para o regresso ao Paraíso. Ao fazer de sua morte uma celebração tirou o trágico do instante. Viveu a vida moldando cada dia o eterno. Para ele, cada segundo da vida continha toda a vida em sua plenitude, por isso não sabia do último dia. Disse que todos devem recomeçar; fazer a sua parte.

Desejou o Espírito do Senhor e o seu santo modo de operar. Fez disso a expressão de sua vontade. Compilou uma anotação de todas as maravilhas que viu na vida. Cantou um cântico de luz na sombra da morte. Sabia que ia chegar ao céu e ser imediatamente reconhecido por todos os  sofridos leprosos  que chegaram antes, e pelo  Filho do Homem, que ia identificar e contemplar nele a mesma tatuagem da Paixão, as marcas  do Amor, fundidas num  grande e acolhedor abraço!

Acompanhar até o final

José Antonio Pagola

O progresso da medicina fez crescer o número de enfermos aos quais se prolonga a vida durante um certo tempo, ainda que sem possibilidade alguma de cura. Estes enfermos que vivem o duro transe de ir “terminando” sua vida de maneira inevitável requerem hoje uma atenção particular.

Não é difícil entender o que o enfermo terminal vive em seu caminhar para o final. Esgotamento e fraqueza extrema, medo da dor, impotência ao ver que a vida se lhe escapa sem remédio, temor diante do desconhecido, pena imensa de ter que abandonar os entes queridos.

A proximidade da morte não aflige só o enfermo. Faz também sofrer intensamente seus familiares, amigos e todos que amam de verdade essa pessoa. É duro estar junto de alguém que vai morrer. Tenta-se, de muitas formas, mitigar a situação, mas nos sentimos impotentes diante de uma vida querida que termina. O que podemos fazer?

Primeiramente, estar perto, não deixar o enfermo sozinho. Já não se pode curá-lo, mas pode-se cuidar dele, acompanhá-lo e ajudá-lo a viver os últimos dias de maneira digna, serena e confiante. É o momento de envolver a pessoa enferma com o melhor de nosso afeto e ternura.

É importante aliviar ao máximo seu sofrimento para que possa viver seu processo com a maior serenidade possível. Isto significa acalmar a dor física com os meios apropriados, mas também confortá-lo no sofrimento moral e animá-lo no momento da crise ou da depressão.

O enfermo necessita de cuidados sanitários que assegurem sua melhor qualidade de vida, mas também de ajuda para curar feridas do passado, para enfrentar com serenidade sentimentos obscuros de culpabilidade, para reconciliar-se consigo mesmo e com Deus, para poder despedir-se deste mundo em paz. É o momento de atender suas demandas mais profundas: Como se sente interiormente? A companhia de quem quer ter perto de si? Como podemos ajudá-lo melhor? Deseja algo mais?

Quanto ajuda então poder falar com fé e a partir da fé. Poder sugerir ao enfermo, com palavras e gestos simples, a ternura e a bondade de Deus, que nos espera e acolhe no final da vida com amor insondável de Pai. Então talvez escutamos com mais profundidade as palavras de Jesus: “Eu vos asseguro: quem crê tem a vida eterna”.

Pequena meditação para o Dia dos Finados

Frei Almir Guimarães

Novembro, mês dos agapantos brancos e azuis, com esses enormes pescoços baloiçando em nossos jardins ao sabor dos ventos. Novembro, mês em que nos recordamos daqueles que nos precederam na aventura de viver e que nos ajudaram a construir nosso semblante interior. Mês de saudade e de esperança.

♦ Rezamos pelos mortos. O que está por detrás desta prece? Qual o seu pano de fundo? Esses que se foram… será que os amamos? Será que guardamos mágoas de alguns deles? Vida, morte, sepultura. Diante da morte: incompreensão, revolta, paz. Quando rezamos pelos mortos essa teia de sentimentos nos invade: a lembrança do que se foram nos envolve, estão perto, pedimos que o Senhor os liberte de toda sorte de escuridão e que eles sejam estrelas brilhando no firmamento.

Em nossa oração pelos mortos não se trata de compor frases, se mostrar semblante cavernoso, de usar palavras que ninguém entende. Rezamos a partir de nossa fragilidade. Somos seres vulneráveis e simples, feridos e cheios de expectativas, voltamos para um além de nós mesmos que esperamos ou que nos espera. Cada vez que levamos ao cemitério um ser que amamos é nossa morte que se desenha no horizonte.

A oração pelos que partiram não nos poupa de viver e de pensar em nossa própria finitude, em nossa própria morte. Pensamos nela com serenidade. Esperamos, não se sabe como, estar em companhia daqueles que nos precederam. Será preciso olhá-la sem pavor, face a face. Essa meditação parece mais densa quando levamos o corpo de um ente querido ao cemitério. Será preciso preparar-se da melhor forma para o gran finale.

A oração pelos mortos nos ensina que os laços de amor subsistem após a morte. A oração incita o nosso coração a continuar a amar para além do visível e do imediato. Tudo se torna dilacerante quando a morte ocorre em situações dramáticas. Mais fortemente rezamos pelos que se foram.

Este que se foi está ainda perto. Falamos a Deus a seu respeito, mesmo se num primeiro momento nossa oração é tecida de revolta e molhada de lágrimas, circulando num mar de incompreensão. Se rezamos pelos mortos é porque temos a certeza de que Deus “pode ainda fazer alguma coisa”. “Vim para que tenham a vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10).

Há uma reciprocidade entre nós e os que se foram. Pedimos por eles e eles pedem por nós. Os laços que fomos tecendo em vida com eles foram sendo ampliados, purificados, enobrecidos por Aquele que está na origem de todo amor e de toda ternura. Destarte a grande família humana encontra-se mais intensamente unida para além dos limites habituais de espaço e de tempo. A Ressurreição de Cristo dilatou os limites de nossos horizontes para que não houvesse mais distância entre os daqui e os de lá. Há uma única família de vivos e mortos. Péguy: “Não se trata de chegar junto a Deus uns sem os outros. Será preciso ir juntos para a cada do Pai”.

Junto ao túmulo de nossos entes queridos, na liturgia solene, no silêncio de nosso quarto pedimos que nossos entes queridos estejam na glória e sejam nossos intercessores. Bela esta prece de um Ritual dos Finados: “Senhor, tu nos revelaste que junto de ti os mortos vivem para sempre. Os que santificaste finalmente vivem na felicidade. Os olhos de teu servo…… se fecharam definitivamente para a luz do dia e se quisermos reencontrar seu sorriso precisamos, de nossa parte, fechar os nossos olhos. Dá a teu servo…. o que todos desejamos, tu que nos criaste por amor para que pudéssemos conhecer teu rosto. Por Cristo Nosso Senhor. Amém”.

Reflexão em vídeo de Frei Fidêncio Vanboemmel