Carisma - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

800 anos dos Protomártires Franciscanos

Histórico

Mártires em Marrocos (+1220). Canonizados por Sixto IV em 7 de agosto de 1481.

 

Berardo, sacerdote da Primeira Ordem, foi ótimo pregador e conhecedor da língua árabe, e seus companheiros Pedro e Oto foram sacerdotes, enquanto Acursio e Adjuto, clérigos. Todos deram a vida por Cristo em Marrakech, em 16 de janeiro de 1220.

O bem-aventurado Francisco, movido pela inspiração divina, escolheu seis de seus filhos e os enviou a pregar a fé católica entre os infiéis. Puseram-se a caminho pela Espanha e chegando ao reino de Aragão, Frei Vidal ficou doente, os cinco dispuseram a levar avante o trabalho. Foram a Coimbra e dali para Sevilha.

Um dia, confortados espiritualmente, saíram com o propósito de visitar a mesquita principal, mas os sarracenos os impediram, empurrando-os com força, gritos e golpes. Foram depois conduzidos ao palácio do soberano, diante do qual disseram ser os mensageiros do Rei dos reis, Cristo Jesus. Fizeram uma exposição das principais verdades da fé católica e animaram os ouvintes a se batizarem. O rei, enfurecido por essa ousadia, mandou que fossem decapitados imediatamente. Mas o Conselho presente ali sugeriu ao rei que suspendesse a sentença, mandando-os irem a Marrocos em conformidade com o desejo deles. Em Marrocos, sem perderem tempo, pregaram o evangelho. A notícia chegou até o Sultão que pediu a prisão deles.

Aí permaneceram vinte dias sem comida nem bebida, confortados apenas com a refeição espiritual. Acabado o tempo da reclusão, depois de interrogados, seguiram firmes na decisão de continuar na fidelidade à religião católica. Encolerizado, o Sultão mandou que fossem açoitados e separados uns dos outros em diversas prisões e submetidos às grandes torturas. Os policiais, após algemar os santos homens, ataram seus pés e com cordas ao redor do pescoço, arrastaram-nos com tanta violência, que quase saíram suas entranhas pelas feridas abertas em seus corpos; sobre as feridas derramaram óleo e vinagre quente. A noite toda durou esse tormento, sob a guarda de trinta sarracenos, que os flagelavam sem nenhuma consideração.

Chamados pelo Sultão, ficaram semidesnudados e descalços. O interrogatório foi repetido com as mesmas respostas, o soberano mudou de tática trazendo belas mulheres. Estas os convidavam a participar da religião maometana, as quais seriam suas próprias esposas e seriam honrados por todos no reino. A contestação foi unânime: “Não queremos mulheres, nem dinheiro, nem honras; renunciamos a tudo isso por amor a Cristo”. Oto disse: “Não tentes mais os servos de Deus; crês que com tuas promessas vais fraquejar a nossa vontade? Não sabes que Deus vela continuamente sobre nós? Nós somos soldados intrépidos de Cristo! Nosso sangue derramado por uma causa santa e nobre, fará germinar novos cristãos”. O rei encolerizado empunhou a espada e um por um abriu uma brecha na cabeça, e logo, com sua própria mão cravou na garganta três flechadas.

Assim, morreram aos 16 de janeiro de 1220. Seus restos mortais foram transladados para Coimbra. Repousam num monumento e são venerados pelos fiéis, alcançando-lhes abundantes graças. A expedição iniciada por eles a Marrocos deu início à carreira missionária da Ordem ao longo dos séculos.

Foi por causa do martírio destes frades que Santo Antônio, ainda então agostiniano, ingressou na Ordem dos Frades Menores, com o desejo de ser martirizado assim como aqueles frades que ele próprio conhecera.

Em 1210, Fernando de Bulhões Taveira de Azevedo ingressa no Mosteiro de São Vicente, dos Cônegos Regulares de Santo Agostinho, nos arredores de Lisboa. Em 1220, já ordenado sacerdote e encarregado da hospedaria, ele recebe os cinco frades, que empreendiam a viagem ao Marrocos. Ele ficou admirado com o feito daqueles religiosos. Pouco tempo depois, os frades são martirizados em Marrakesh e seus restos mortais são sepultados na Igreja dos Cônegos de Santa Cruz.

O fato comoveu tanto aquele jovem religioso que ele decidiu deixar a Ordem Agostiniana para ingressar na Ordem Franciscana, mudando seu nome para Frei Antônio. Foi assim que Santo Antônio de Pádua e de Lisboa, como conhecemos, apaixonou-se pelo ideal de Francisco de Assis e tornou-se um dos santos mais conhecidos em todo o mundo.

Fonte: “Santos Franciscanos para cada dia”, Ed. Porziuncola.

A missão no Marrocos

Frei Jorge Lázaro de Souza, OFM*

Marrocos atual

Mais de 90% dos cristãos que vivem no Marrocos hoje são provenientes da África Subsaariana. Existem sessenta lugares de culto cristão oficialmente registrados no país, incluindo quarenta católicos, doze protestantes e alguns ortodoxos. Os cristãos que frequentam os lugares de culto no Reino do Marrocos não passam de 20 mil (o país tem 34 milhões de muçulmanos).

Os cristãos estrangeiros podem desfrutar com total liberdade sua fé e são protegidos pelas autoridades, com a condição de que não façam proselitismo, o que pode acarretar uma pena de três anos de prisão ou expulsão do país.

O Marrocos é uma monarquia constitucional com um parlamento eleito. O Rei do Marrocos tem vastos poderes executivos e legislativos, especialmente sobre os militares, a política externa e os assuntos religiosos. O poder executivo é exercido pelo governo, enquanto o poder legislativo é investido tanto no governo como nas duas câmaras do parlamento, a Assembleia de Representantes e a Assembleia de Conselheiros. O rei pode emitir decretos chamados “dahirs”, que têm força de lei. Ele também pode dissolver o parlamento depois de consultar o primeiro-ministro e o presidente do Tribunal Constitucional.

A cultura marroquina é uma mistura de árabes, berberes nativos, africano subsaariana e influências europeias. As línguas oficiais são o árabe e tamazight. O dialeto marroquino, referido como Darija, e o francês também são muito falados. O Marrocos é membro da Liga Árabe, da União para o Mediterrâneo e da União Africana. Tem a quinta maior economia do continente africano.

Presença Franciscana

“Se, pois, os irmãos, sob a inspiração de Deus, querem ir entre os sarracenos e outros infiéis, eles vão, com a aprovação do seu ministro e servo.” (RnB 16, 3).

O início do capítulo 16 da Regra não Bulada é para nós, frades da Custódia dos Santos Mártires do Marrocos, como nossa Carta Magna. Ele nos recorda que este chamado para viver junto aos muçulmanos está além de nós e que isso só pode vir de Deus. Ele também nos mostra que este chamado, que todos nós experimentamos, está registrado numa longa tradição que começou com os protomártires de Marrakesh (1220) e Ceuta (1226), fazendo do Marrocos a 1ª missão da Ordem junto aos muçulmanos e que se prolonga através dos séculos até o período recente com os apelos urgentes dos Ministros Gerais, freis Giacomo Bini em 1999, José Carballo em 2011, e Michel Perry em 2016. Tudo isto é sinal da importância de a Ordem manter uma presença renovada nesta terra marroquina onde São Francisco, Santa Clara e Santo Antônio teriam desejado estar.

Os Primeiros Mártires franciscanos em Marrakesh

A Igreja dos Santos Mártires, em Marrakesh, no Marrocos, foi construída em 1928 e inaugurada oficialmente em 1929, situando-se em frente da mesquita de Gueliz, dois lugares de culto que são um ponto de referência para a tolerância religiosa, exatamente num  momento em que o Relatório sobre a Liberdade Religiosa da Fundação Ajuda à Igreja que Sofre (AIS) apontou “violações significativas” da liberdade religiosa em 38 países dos 196 pesquisados. É nesta igreja que está a Fraternidade que reside o missionário Frei Jorge Lázaro de Souza, que chegou a Marrakesh no dia 9 de julho de 2017.

A Igreja dos Santos Mártires remete ao tempo de São Francisco. Depois de duas tentativas malsucedidas de partir para a Síria e Marrocos, Francisco continuou a alimentar o desejo de conseguir a coroa do martírio. Uma vez que a Ordem estava organizada em Províncias (1217), procurou enviar missionários a todas as nações europeias. No famoso Capítulo Geral das Esteiras, celebrado na Porciúncula em Pentecostes de 1219, deu licença aos frades Vital, Berardo, Otão (sacerdotes), Pedro (diácono), Acúrsio e Adjuto (leigos) de pregarem o Evangelho aos sarracenos do Marrocos, enquanto ele se dirigiria com os cruzados à Palestina para visitar os Lugares Santos e converter os infiéis do lugar, mesmo ignorando sua língua.

No dia 16 de janeiro de 1220 eram decapitados pelo sultão do Marrocos, Abu Yacub, conhecido como Miramolino. O povo se apoderou dos corpos e das cabeças dos mártires depois de lançados do palácio imperial. Um providencial temporal fez com que a gente fanática se dispersasse, permitindo que os cristãos recuperassem os restos dos frades e os transportassem à residência do infante Pedro de Portugal. Seus restos, depois de secos, foram colocados em urnas de prata. O infante os transportou a Portugal, à Igreja da Santa Cruz de Coimbra, onde foram acolhidos pelo rei e pela rainha bem como pelo povo. Neste lugar ainda são venerados.

O martírio dos franciscanos fez com que amadurecesse no jovem sacerdote Antônio de Lisboa, conhecido também como Santo Antônio de Pádua, a ideia de passar da Ordem dos Cônegos Regulares de Santo Agostinho à Ordem dos Frades Menores com a finalidade de ser missionário e conseguir o martírio.

São Francisco, por sua vez, tomando conhecimento da notícia do martírio dos cinco frades exclamou: “Agora posso dizer que tenho cinco verdadeiros frades menores”.

Uma fraternidade internacional

A Custódia do Marrocos, dependente do Ministro Geral desde 2010, conta atualmente com 22 frades, originários de 11 países e 4 continentes. Ela está presente em 7 cidades: Rabat, Meknés, Larache, Tetouán, Tânger, Alhoucemas e Marrakesh.

Sua grande especificidade se dá no fato de que não há vocação local devido à ausência de vocações cristãs marroquinas. Como resultado, a Custódia permanece totalmente dependente de outras entidades da Ordem para a sua sobrevivência.

Nossa vocação de Frades Menores no Marrocos nos chama “a sermos submissos a toda criatura por causa de Deus e confessar simplesmente que somos cristãos” (Rnb 16,6). Mesmo  se nenhuma conversão é possível, somos enviados para viver com o povo, para encontrá-lo em sua alteridade fundamental e a tecer com ele um caminho de fraternidade que nos fará ver o  Reino em marcha.

* Frei Jorge Lázaro de Souza é frade desta Província e desde 2017 compõe a missão da Ordem dos Frades Menores em Marrocos. Nasceu em 11 de abril de 1966 em Sebastianópolis (SP). Vestiu o hábito de frade menor em 10 de janeiro de 1991 e fez a Profissão Solene em 6 de setembro de 1998.

Os protomártires franciscanos e a purificação da memória

Pietro Messa, ofm*

O oitavo centenário do encontro de Francisco de Assis com o sultão Al-Malik Al-Kamil (1219-2019) foi repleto de conferências, encontros, publicações e assistiu a dois momentos da maior importância, a saber, a visita do Papa Francisco em Abu Dhabi – com a assinatura do documento sobre a “Fraternidade Humana” junto com o grande imã de Al-Azhar – e em Marrocos. E não poderia ter sido de outra maneira, pois nesse evento percebemos o que está acontecendo nos dias atuais, caracterizado por um movimento de povos que resulta em uma sociedade cada vez mais multirreligiosa, com todas as ocasiões, mas também desafios e dificuldades que isso representa.

O oitavo centenário da morte de cinco frades no Marrocos (1220-2020) e conhecido como protomártires franciscanos é mais embaraçoso; de fato, ao contrário do que aconteceu com Francisco no Egito, a reunião se transformou em um confronto sangrento [1]. Nasce, então, a questão se seria apropriado celebrar esse aniversário e, mesmo assim, venerar santos semelhantes ou se é mais conveniente, como aconteceu no caso do Beato Simonino de Trento, suprimir seu culto e remover esse caso.

Antes de tudo, lembrar o que aconteceu no Marrocos significa observar que a história, inclusive a franciscana, é complexa, contraditória e às vezes até absurda; como João Paulo II recordou em 8 de dezembro de 2004, o Senhor não salva da história, mas na história. Isso requer honestidade intelectual e higiene mental para entender mais, em vez de justificar, dar um julgamento descritivo em vez de avaliativo; significa ir às fontes primárias e lê-las em seu contexto, considerando a qual pergunta que elas desejam responder. E assim acontece que, por exemplo, a vida dos protomártires franciscanos – uma verdadeira paixão – é escrita várias dezenas de anos após os fatos e que o objetivo é hagiográfico apologético, que é oferecer uma leitura teológica da história que melhorasse a Ordem dos Frades Menores. A própria frase “Agora posso realmente dizer que tenho cinco frades menores” colocada na boca de São Francisco não passa de um atestado da grandeza dos franciscanos que podem se orgulhar entre suas fileiras mártires de estatura não muito diferente da dos primeiros séculos [2]. Por exemplo, se o assassinato de Santo Estêvão foi o início da conversão de São Paulo (Atos 7,55-60), o sangue dos frades que morreram no Marrocos foi a semente da vocação franciscana do canônico agostiniano Fernando de Lisboa, que se tornou santo Antônio de Pádua!

Assim, celebrar o oitavo centenário dos protomártires franciscanos é uma oportunidade de tomar as páginas da história que, com a mentalidade de hoje, não são mais adequadas – parcial ou totalmente – para serem consideradas como exemplo; e isso será mais eficaz se feito em conjunto por membros de diferentes culturas e religiões. No presente caso entre cristãos e muçulmanos. Certamente, essa operação exige tempo e preparação, mas, a longo prazo, é mais eficaz do que uma remoção, que é apenas um movimento que espera que alguém volte – muitas vezes por outras razões que não as religiosas – como oculto; em termos simples, uma bomba é melhor desativá-la do que removê-la com o risco de encontrá-la e usá-la no futuro.

Além disso, é uma oportunidade de retomar e aprofundar o que foi declarado na exortação apostólica “Gaudete et Exultate” sobre o apelo à santidade no mundo contemporâneo pelo Papa Francisco em relação aos santos: «Talvez a vida deles nem sempre tenha sido perfeita, mesmo no meio de imperfeições e quedas, continuaram a gostar do Senhor ». Daí resulta que a canonização, isto é, o reconhecimento canônico da santidade de uma pessoa, não significa que tudo o que ele fez ou escreveu deve ser tomado como modelo ou inspiração. Assim, pode-se admirar a total afeição por Cristo dos protomártires franciscanos, até derramando seu próprio sangue, mas, entretanto, reconhece como inadequado – pela consciência atualmente alcançada pela Igreja e expressa no Vaticano II – o seu julgamento em relação à fé dos outros.

Se São Francisco, de acordo com o que Jordano de Jano escreve, não queria que a vida dos frades martirizados do Marrocos se espalhasse porque não é bom se gloriar narrando as virtudes de outros, o Beato Egídio de Assis censura os prelados da Ordem dos Frades Menores porque não fazem todos os esforços para que os protomártires franciscanos fossem canonizados pelo papa. De fato, o companheiro do santo de Assis reconhecia que seu testemunho é uma solicitação para responder zelosamente à vocação, ou seja, o chamado para viver de acordo com a forma do Evangelho nos passos de Jesus.

Celebrar os protomártires franciscanos também é uma oportunidade para lembrar muitos franciscanos que deram a vida pelo Evangelho – do capuchinho Fidelis de Sigmaringen ao conventual Maximiliano Kolbe, da polonesa Clarissa Maria Teresa Kowalska ao bispo Luigi Padovese – e também para orar e apoiar muitos cristãos perseguidos e homens privados da liberdade religiosa.

Se os santos Berardo, Oto, Adiuto, Pedro e Acursio – esses são os nomes dos cinco frades mortos por volta de 1220 – viveram o martírio do sangue, existe outro tipo de martírio não menos sangrento e eficaz, ou seja, a paciência com a qual são chamados a maioria dos cristãos. Mas ambos mostram o elo imprescindível entre amor e sacrifício, se o primeiro quer ser credível e alcançável, e o segundo frutífero e fascinante. Os protomártires franciscanos são originários do Sul da Úmbria, a área de Terni que ostenta São Valentim como Padroeiro, o santo padroeiro dos amantes que é comemorado em 14 de fevereiro. Esse fato pode ser lido como fruto do acaso ou até como providencial para lembrar que a união de sacrifício e amor é aquela beleza que, de acordo com as palavras de Dostoiévski, salvará o mundo.

Não se deve esquecer que o próprio Francisco de Assis diz que a evangelização também requer disposição para dar a vida pelo Senhor ou simplesmente indignações e mal-entendidos. E a Regra de Vida dos Frades Menores dedica uma parte àqueles que vão entre não-cristãos, abrindo um aspecto relevante da evangelização que terá resultados como as missões, de cuja figura representativa será Francisco Xavier.

As diversas celebrações deste ano serão anunciadas no perfil: fb.com/www.santantonioterni.it/

*Pontifícia Universidade Antonianum, Roma

[1] Ver, por exemplo, o que F. Cardini escreve, Conclusões, “De From Protomartyrs Franciscan to Santo Antônio de Pádua”. Anais do Dia Internacional do Estudo (Terni, 11 de junho de 2010) editado por L. Bertazzo – G. Cassio, Ed. Centro Studi Antoniani, Padova 2011, p. 203-213.

[2] C. Ferreo Hernández, Inter Saracenos. “Mártires franciscanos no Norte de África e na Península Ibérica” (ss. XIII-XVII), em Frei Francesco 77 (2011), pp. 261-277.

Papa Francisco em Abu Dhabi

Oitocentos anos depois, um novo abraço e um compromisso com a paz

Oitocentos anos depois do encontro entre Francisco de Assis e o sultão al-Malik al-Kamil, o Papa que leva o nome do santo de Assis apresenta-se aos “irmãos muçulmanos” como um cristão sedento de paz”.

E, juntamente com o Grande Imã de Al-Azhar, assina uma Declaração destinada a marcar não só a história das relações entre o Cristianismo e o Islã, mas também a própria história do mundo islâmico. O Papa Francisco, inventor da expressão “guerra mundial em pedaços”, com esta viagem e este gesto se insere no caminho traçado pelos seus antecessores, dando um passo a mais.

Também São João Paulo II, a partir do encontro de Assis em 1986 – quando sobre o mundo pairava a ameaça nuclear que, infelizmente, se pressente hoje – envolveu líderes religiosos para reafirmar que as diferentes  religiões devem promover a paz, a coexistência, a fraternidade. Depois de 11 de setembro de 2001, quando o fundamentalismo terrorista voltou à cena internacional de forma violenta, São João Paulo fez todos os esforços para extirpar justificações religiosas ao abuso do nome de Deus para justificar a violência, o terrorismo e a morte de homens, mulheres e crianças inocentes.

Bento XVI também percorreu o mesmo caminho ao longo de todo o seu pontificado. Em setembro de 2006, Papa Ratzinger disse aos líderes dos países muçulmanos: “É necessário que, fiéis aos ensinamentos das suas próprias tradições religiosas, cristãos e muçulmanos aprendam a trabalhar juntos, como já se verifica em diversas experiências comuns, para evitar qualquer forma de intolerância e se opor a todas as manifestações de violência”.

Em 4 de fevereiro de 2019, o Papa Francisco assinou um documento no qual não só se rejeita firmemente qualquer justificação para a violência cometida em nome de Deus, mas são feitas declarações importantes e vinculativas sobre o Islã e certas interpretações do mesmo. As palavras relativas ao respeito pelos fiéis de diferentes religiões, à condenação de toda e qualquer discriminação, à necessidade de proteger todos os locais de culto e ao direito à liberdade religiosa, bem como ao reconhecimento dos direitos das mulheres, constituem um empenho.

O “Documento sobre a fraternidade humana pela paz mundial e a convivência comum”, assinado na tarde do dia (04/02) em Abu Dhabi pelo Papa Francisco e o Grão-Imã de Al-Azhar Ahmad Al-Tayyib, não é apenas um passo fundamental nas relações entre o cristianismo e o islã, mas representa também uma mensagem com um forte impacto no cenário  internacional. No prefácio, depois de ter afirmado que “a fé leva o crente a ver no outro um irmão a ser ajudado e amado», fala-se deste  texto como «um documento elaborado com sinceridade e seriedade”, que convida «todas as pessoas que carregam no coração a fé em Deus e a fé na fraternidade humana a se unirem e a trabalharem juntos».

O documento se abre com uma série de invocações: o Papa e o Grão Imame falam “em nome de Deus que criou todos os seres humanos iguais nos direitos, nos deveres e na dignidade”, “em nome da inocente alma humana que Deus proibiu de matar”, “em nome dos pobres”, dos “órfãos e das viúvas, dos refugiados e dos exilados, de todas as vítimas das guerras” e “das perseguições”. Al-Azhar em conjunto com a Igreja Católica «declaram que adotam a cultura do diálogo como caminho; a colaboração comum como conduta; o conhecimento recíproco como método e critério».

Com o documento, «pedimos a nós mesmos e aos líderes do mundo, aos artífices da política internacional e da economia mundial, para que se empenhem seriamente em difundir a cultura da tolerância, da convivência e da paz, para que intervenham, o quanto antes, para deter o derramamento de sangue inocente e acabar com as guerras, os conflitos, a degradação ambiental e o declínio cultural e moral que vive o mundo de hoje».

Os dois líderes religiosos pedem aos homens de religião e de cultura, além dos meios de   comunicação, para redescobrirem e difundirem «os valores da paz, da justiça, do bem, da beleza, da fraternidade humana e da convivência comum». E afirmam  que creem «firmemente que entre as causas mais importantes da crise do  mundo moderno há uma consciência humana anestesiada e o afastamento dos valores religiosos assim como o predomínio do individualismo e das filosofias materialistas».

MISSA NO ESTÁDIO ABU DHABI

O Papa Francisco celebrou uma missa ao ar livre diante de milhares de fiéis em um estádio de Abu Dhabi em 5 de fevereiro de 2019, último dia de sua visita histórica aos Emirados Árabes Unidos. Essa é a primeira vez que um pontífice visita a Península  Arábica. De acordo com a agência France Press, quase 170 mil pessoas se reuniram no estádio Zayed Sports City, onde o papa chegou a bordo em um carro conversível.

 

Papa Francisco em Marrocos

Sob o lema: “Papa Francisco: servidor da Esperança”, o Pontífice realizou nos dias 30 e 31 de março de 2019, sua 28º Viagem Apostólica, visitando o Marrocos.

Ao chegar em terras marroquinas, Francisco dirigiu-se à Esplanada da Mesquita “Tour Hassan II”, em Rabat, para a cerimônia de boas-vindas. Ali, o Santo Padre manteve seu primeiro encontro com o povo marroquino, as autoridades civis e religiosas e o Corpo Diplomático, do qual participaram 25 mil pessoas.

O Santo Padre iniciou seu discurso com a saudação em árabe “As-Salam Alaikum”, desejando a Paz para todos: “Estou feliz por pisar o solo deste país, rico de muitas belezas naturais, defensor dos vestígios de antigas civilizações e testemunha de uma história fascinante… Esta visita é, para mim, motivo de alegria e gratidão, porque me permite descobrir as riquezas desta terra, deste povo e das suas tradições, como também pela grande oportunidade de promover o diálogo inter-religioso e o conhecimento mútuo entre os fiéis das nossas duas religiões”.

Aqui, o Santo Padre recordou o histórico encontro entre São Francisco de Assis e o Sultão al-Malik al-Kamil, há oitocentos anos. Este evento profético demonstra a coragem deste encontro e da mão estendida que representam “um caminho de paz e harmonia” para a humanidade, em situações onde o extremismo e o ódio são fatores de divisão e destruição. E o Papa acrescentou: “ Desejo que a estima, o respeito e a colaboração entre nós possam contribuir para aprofundar os nossos laços de sincera amizade, a fim de permitir às nossas comunidades preparar um futuro melhor às novas gerações. ”

O desafio do diálogo inter-religioso

Naquela terra, ponte natural entre a África e a Europa, o Papa reiterou a necessidade de unir os esforços, de muçulmanos e católicos, para dar novo impulso à construção de um mundo mais solidário, mais comprometido com um diálogo honesto, corajoso e necessário, no respeito das riquezas e especificidades de cada povo e de cada pessoa: “Este é um desafio que todos somos chamados a assumir, sobretudo neste tempo em que se corre o risco de fazer das diferenças e mútuo desconhecimento motivos de rivalidade e desagregação”.

Por isso, – afirmou Francisco -, para participar da construção de uma sociedade aberta, pluralista e solidária, é essencial desenvolver e assumir, com constância e sem cessar, a cultura do diálogo, a colaboração como conduta, o conhecimento recíproco como método e critério: “Eis o caminho que somos convidados a percorrer, sem cessar, para nos ajudar a superar, juntos, as tensões e os mal-entendidos, as máscaras e os estereótipos, que sempre levam ao medo e à contraposição. E assim, abrir alas para um espírito de mútua colaboração frutuosa, com base no respeito”.

Com efeito, disse Francisco, “é indispensável contrapor ao fanatismo e ao fundamentalismo a solidariedade de todos os fiéis, com base nas nossas ações os valores que nos acomunam”. Nesta perspectiva, o Papa irá visitar, logo a seguir, o Instituto Mohammed VI, criado pelo rei Mohammed VI, para imames pregadores e pregadoras, com o objetivo de proporcionar uma formação adequada e sadia contra todas as formas de extremismo, que, muitas vezes, levam à violência e ao terrorismo e constituem uma ofensa à religião e ao próprio Deus. E o Papa ponderou: “Um diálogo autêntico convida-nos a não subestimar a importância do fator religioso para construir pontes entre os homens e enfrentar com êxito os desafios. De fato, no respeito das nossas diferenças, a fé em Deus nos leva a reconhecer a dignidade e os direitos do ser humano”.

A construção de pontes entre os povos

Acreditamos – afirmou Francisco – que Deus criou os seres humanos iguais em direitos, deveres e dignidade, e os chamou a viver como irmãos, segundo os valores do bem, da caridade e da paz. Por isso, a liberdade de consciência e a liberdade religiosa – que não se limitam à liberdade de culto, mas consente viver segundo a própria convicção religiosa – estão inseparavelmente ligadas à dignidade humana: “Neste sentido, a construção de pontes entre os homens, na perspectiva do diálogo inter-religioso, deve ser encarada sob o signo da convivência, da amizade e da fraternidade”.

A término do seu primeiro discurso em terras marroquinas, o Santo Padre recordou a grave crise migratória, que constitui para todos um urgente apelo para erradicar suas causas. Sabemos que a consolidação de uma paz verdadeira passa pela busca da justiça social.

Comunidade católica e ação pastoral no Marrocos

Enfim, falando dos cristãos, que ocupam seu lugar na sociedade marroquina, Francisco disse que “querem colaborar para a edificação de uma nação solidária e próspera e do bem comum”. Aqui, recordou a ação pastoral da Igreja Católica no Marrocos: obras sociais, educação em escolas abertas a estudantes de todas as confissões, religiões e proveniência. Enfim, encorajou os católicos e os cristãos a serem, no Marrocos, servidores, promotores e defensores da fraternidade humana. Shukran bi-saf! Obrigado a todos!

Santa Missa: Obrigado pelo testemunho da cultura da misericórdia

O ponto alto da visita do Papa Francisco ao país foi a missa celebrada na tarde do domingo (31), no Centro Esportivo Príncipe Moulay Abdellah, em Rabat.

Na homilia para a comunidade católica, cerca de 10 mil fiéis reunidos no local, o Papa comentou a parábola do Filho pródigo, “um filho ansiosamente esperando. Um pai comovido ao vê-lo regressar”, disse o Pontífice. Diferente do outro filho que não suportou a alegria do pai e não reconheceu o regresso do irmão, preferindo “ser órfão à fraternidade”. De dentro daquela casa, refletiu Francisco, se manifesta “o mistério da nossa humanidade”.

“Deste modo, mais uma vez vem à luz a tensão que se vive no meio da nossa gente e nas nossas comunidades, e até dentro de nós mesmos. Uma tensão que, a partir de Caim e Abel, mora em nós e que somos convidados a encarar: quem tem direito a permanecer entre nós, ocupar um lugar à nossa mesa e nas nossas assembleias, nas nossas solicitudes e serviços, nas nossas praças e cidades? Parece continuar a ressoar aquela pergunta fratricida: Porventura sou eu o guardião do meu irmão? (cf. Gn 4, 9).”

De dentro daquela casa do pai misericordioso, a luta pela fraternidade impedida por “divisões e desencontros, a agressividade e os conflitos”. Mas, também, o brilho que nasce dos desejos do Pai: que ninguém sofra com “orfandade, isolamento ou amargura”.

“Sem dúvida, há tantas circunstâncias que podem alimentar a divisão e o conflito; são inegáveis as situações que podem levar a nos afrontar e a nos dividir. Não podemos negá-lo. Estamos sempre ameaçados pela tentação de crer no ódio e na vingança como formas legítimas de obter justiça de maneira rápida e eficaz. Mas a experiência nos fala que a única coisa que conseguem o ódio, a divisão e a vingança é matar a alma da nossa gente, envenenar a esperança dos nossos filhos, destruir e fazer desaparecer tudo o que amamos”.

A redescoberta de sermos irmãos

O convite, então, vindo do próprio Jesus, disse o Papa, é “contemplar o coração do Pai” para, a cada dia, “nos redescobrirmos como irmãos”. Em condição de filhos amados, acrescentou Francisco, não medimos e nem classificamos as pessoas com base na condição moral, social, étnica e religiosa.

“Só a partir deste horizonte amplo, capaz de nos ajudar a superar as nossas míopes lógicas de divisão, é que seremos capazes de alcançar um olhar que não pretenda obscurecer ou desmentir as nossas diferenças, buscando talvez uma unidade forçada ou uma marginalização silenciosa. Só se formos capazes diariamente de levantar os olhos para o céu e dizer Pai Nosso, é que poderemos entrar numa dinâmica que nos possibilite olhar e ousar viver, não como inimigos, mas como irmãos.”

O incentivo do Papa para a cultura da misericórdia

“A parábola do Evangelho deixa o final em aberto”, disse o Papa, pois não sabemos se o filho mais velho aceitou participar da festa da misericórdia do irmão. Uma lição que pode ser observada também pela gente, disse o Pontífice, já que cada um pode escrever o final “com a sua vida, o seu olhar e atitude” em relação aos outros. Como faz a comunidade católica no Marrocos que dá o seu testemunho, através do Evangelho da misericórdia.

“Obrigado pelos esforços feitos para tornarem as comunidades oásis de misericórdia. Animo vocês e vos encorajo a continuar a fazer crescer a cultura da misericórdia, uma cultura na qual ninguém olhe para o outro com indiferença nem desvie o olhar ao ver o seu sofrimento (cf. Carta ap. Misericordia et misera, 20).”

“ Continuem ao lado dos humildes e dos pobres, daqueles que são rejeitados, abandonados e ignorados; continuem a ser sinal do abraço e do coração do Pai”.

Documento sobre a Fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum

PREFÁCIO

A fé leva o crente a ver no outro um irmão que se deve apoiar e amar. Da fé em Deus, que criou o universo, as criaturas e todos os seres humanos – iguais pela Sua Misericórdia –, o crente é chamado a expressar esta fraternidade humana, salvaguardando a criação e todo o universo e apoiando todas as pessoas, especialmente as mais necessitadas e pobres.

Partindo deste valor transcendente, em vários encontros dominados por uma atmosfera de fraternidade e amizade, compartilhamos as alegrias, as tristezas e os problemas do mundo contemporâneo, a nível do progresso científico e técnico, das conquistas terapêuticas, da era digital, dos mass-media, das comunicações; a nível da pobreza, das guerras e das aflições de tantos irmãos e irmãs em diferentes partes do mundo, por causa da corrida às armas, das injustiças sociais, da corrupção, das desigualdades, da degradação moral, do terrorismo, da discriminação, do extremismo e de muitos outros motivos. De tais fraternas e sinceras acareações que tivemos e do encontro cheio de esperança num futuro luminoso para todos os seres humanos, nasceu a ideia deste «Documento sobre a Fraternidade Humana». Um documento pensado com sinceridade e seriedade para ser uma declaração conjunta de boas e leais vontades, capaz de convidar todas as pessoas, que trazem no coração a fé em Deus e a fé na fraternidade humana, a unir-se e trabalhar em conjunto, de modo que tal documento se torne para as novas gerações um guia rumo à cultura do  respeito mútuo, na compreensão da grande graça divina que torna irmãos todos os seres humanos.

DOCUMENTO

Em nome de Deus, que criou todos os seres humanos iguais nos direitos, nos deveres e na dignidade e os chamou a conviver entre si como irmãos, a povoar a terra e a espalhar sobre ela os valores do bem, da caridade e da paz. Em nome da alma humana inocente que Deus proibiu de matar, afirmando que qualquer um que mate uma pessoa é como se tivesse morto toda a humanidade e quem quer que salve uma pessoa é como se tivesse salvo toda a humanidade. Em nome dos pobres, dos miseráveis, dos necessitados e dos marginalizados, a quem Deus ordenou socorrer como um dever exigido a todos os homens e de modo particular às pessoas facultosas e abastadas.

Em nome dos órfãos, das viúvas, dos refugiados e dos exilados das suas casas e dos seus países; de todas as vítimas das guerras, das perseguições e das injustiças; dos fracos, de quantos vivem no medo, dos prisioneiros de guerra e dos torturados em qualquer parte do mundo, sem distinção alguma. Em nome dos povos que perderam a segurança, a paz e a convivência comum, tornando-se vítimas das destruições, das ruínas e das guerras. Em nome da «fraternidade humana», que abraça todos os homens, une-os e torna-os iguais. Em nome desta fraternidade dilacerada pelas políticas de integralismo e divisão e pelos sistemas de lucro desmesurado e pelas tendências ideológicas odiosas, que manipulam as ações e os destinos dos homens. Em nome da liberdade, que Deus deu a todos os seres humanos, criando-os livres e enobrecendo-os com ela. Em nome da justiça e da misericórdia, fundamentos da prosperidade e pilares da fé. Em nome de todas as pessoas de boa vontade, presentes em todos os cantos da terra. Em nome de Deus e de tudo isto, Al-Azhar al-Sharif – com os muçulmanos do Oriente e do Ocidente – juntamente com a Igreja Católica – com os católicos do Oriente e do Ocidente – declaramos adotar a cultura do diálogo como caminho; a colaboração comum como conduta; o conhecimento mútuo como método e critério.

Nós – crentes em Deus, no encontro final com Ele e no Seu Julgamento –, a partir da nossa responsabilidade religiosa e moral e através deste Documento, rogamos a nós mesmos e aos líderes do mundo inteiro, aos artífices da política internacional e da economia mundial,  para se comprometer seriamente na difusão da tolerância, da convivência e da paz; para intervir, o mais breve possível, a fim de se impedir o derramamento de sangue inocente e acabar com as guerras, os conflitos, a degradação ambiental e o declínio cultural e moral que o mundo vive atualmente.

Dirigimo-nos aos intelectuais, aos filósofos, aos homens de religião, aos artistas, aos operadores dos mass-media e aos homens de cultura em todo o mundo, para que redescubram os valores da paz, da justiça, do bem, da beleza, da fraternidade humana e da convivência comum, para confirmar a importância destes valores como âncora de salvação para todos e procurar difundi-los por toda a parte.

Partindo duma reflexão profunda sobre a nossa realidade contemporânea, apreciando os seus êxitos e vivendo as suas dores, os seus dramas e calamidades, esta Declaração acredita firmemente que, entre as causas mais importantes da crise do mundo moderno, se contam uma consciência humana anestesiada e o afastamento dos valores religiosos, bem como o predomínio do individualismo e das filosofias materialistas que divinizam o homem e colocam os valores mundanos e materiais no lugar dos princípios supremos e transcendentes.

Nós, embora reconhecendo os passos positivos que a nossa civilização moderna tem feito nos campos da ciência, da tecnologia, da medicina, da indústria e do bem-estar, particularmente nos países desenvolvidos, ressaltamos que, juntamente com tais progressos  históricos, grandes e apreciados, se verifica uma deterioração da ética, que condiciona a atividade internacional, e um enfraquecimento dos valores espirituais e do sentido de responsabilidade. Tudo isto contribui para disseminar uma sensação geral de frustração, solidão e desespero, levando muitos a cair na voragem do extremismo ateu e agnóstico ou então no integralismo religioso, no  extremismo e no fundamentalismo cego, arrastando assim outras pessoas a render-se a formas de dependência e autodestruição individual e coletiva.

A história afirma que o extremismo religioso e nacional e a intolerância geraram no mundo, quer no Ocidente quer no Oriente, aquilo que se poderia chamar os sinais duma «terceira guerra mundial aos pedaços»; sinais que, em várias partes do mundo e em diferentes condições trágicas, começaram a mostrar o seu rosto cruel; situações de que não se sabe exatamente quantas vítimas, viúvas e órfãos produziram. Além disso, existem outras áreas que se preparam a tornar-se palco de novos conflitos, onde nascem focos de tensão e se acumulam armas e munições, numa situação mundial dominada pela incerteza, pela decepção e pelo medo do futuro e controlada por míopes interesses econômicos. Afirmamos igualmente que as graves crises políticas, a injustiça e a falta duma distribuição equitativa dos recursos naturais – dos quais beneficia apenas uma minoria de ricos, em detrimento da maioria dos povos da terra – geraram, e continuam a fazê-lo, enormes quantidades de doentes, necessitados e mortos, causando crises letais de que são vítimas vários países, não obstante as riquezas naturais e os recursos das gerações jovens que os caraterizam. A respeito de tais crises que fazem morrer à fome milhões de crianças, já reduzidas a esqueletos humanos por causa da pobreza e da fome, reina um inaceitável silêncio internacional.

A propósito, é evidente quão essencial seja a família, como núcleo fundamental da sociedade e da humanidade, para dar à luz filhos, criá-los, educá-los, proporcionar-lhes uma moral sólida e a proteção familiar. Atacar a instituição familiar, desprezando-a ou duvidando da importância de seu papel, constitui um dos males mais perigosos do nosso tempo.

Atestamos também a importância do despertar do sentido religioso e da necessidade de o reanimar nos corações das novas gerações, através duma educação sadia e da adesão aos valores morais e aos justos ensinamentos religiosos, para enfrentarem as tendências individualistas, egoístas, conflituais, o radicalismo e o extremismo cego em todas as suas formas e manifestações.

O primeiro e mais importante objetivo das religiões é o de crer em Deus, honrá-Lo e chamar todos os homens a acreditarem que este universo depende de um Deus que o governa: é o Criador que nos moldou com a Sua Sabedoria divina e nos concedeu o dom da vida para o guardarmos. Um dom que ninguém tem o direito de tirar, ameaçar ou manipular a seu bel-prazer; pelo contrário, todos devem preservar este dom da vida desde o seu início até à sua morte natural. Por isso, condenamos todas as práticas que ameaçam a vida, como os genocídios, os atos terroristas, os deslocamentos forçados, o tráfico de órgãos humanos, o aborto e a eutanásia e as políticas que apoiam tudo isto.

De igual modo declaramos – firmemente – que as religiões nunca incitam à guerra e não solicitam sentimentos de ódio, hostilidade, extremismo nem convidam à violência ou ao derramamento de sangue. Estas calamidades são fruto de desvio dos ensinamentos religiosos, do uso político das religiões e também das interpretações de grupos de homens de religião que abusaram – nalgumas fases da história – da influência do sentimento religioso sobre os corações dos homens para os levar à realização daquilo que não tem nada a ver com a verdade da religião, para alcançar fins políticos e econômicos mundanos e míopes. Por isso, pedimos a todos que cessem de instrumentalizar as religiões para incitar ao ódio, à violência, ao extremismo e ao fanatismo cego e deixem de usar o nome de Deus para justificar atos de homicídio, de exílio, de terrorismo e de opressão. Pedimo-lo pela nossa fé comum em Deus, que não criou os homens para ser assassinados ou lutar uns com os outros, nem para ser torturados ou humilhados na sua vida e na sua existência. Com efeito Deus, o Todo-Poderoso, não precisa de ser defendido por ninguém e não quer que o Seu nome seja usado para aterrorizar as pessoas.

Este Documento, de acordo com os Documentos Internacionais anteriores que destacaram a importância do papel das religiões na construção da paz mundial, atesta quanto segue:

• A forte convicção de que os verdadeiros ensinamentos das religiões convidam a permanecer ancorados aos valores da paz; apoiar os valores do conhecimento mútuo, da fraternidade humana e da convivência comum; restabelecer a sabedoria, a justiça e a caridade e despertar o sentido da religiosidade entre os jovens, para defender as novas gerações a partir do domínio do pensamento materialista, do perigo das políticas da avidez do lucro desmesurado e da indiferença baseadas na lei da força e não na força da lei.

• A liberdade é um direito de toda a pessoa: cada um goza da liberdade de credo, de pensamento, de expressão e de ação. O pluralismo e as diversidades de religião, de cor, de sexo, de raça e de língua fazem parte daquele sábio desígnio divino com que Deus criou os seres humanos. Esta Sabedoria divina é a origem donde deriva o direito à liberdade de credo e à liberdade de ser diferente. Por isso, condena-se o facto de forçar as pessoas a aderir a uma determinada religião ou a uma certa cultura, bem como de impor um estilo de civilização que os outros não aceitam.

• A justiça baseada na misericórdia é o caminho a percorrer para se alcançar uma vida digna, a que tem direito todo o ser humano.

• O diálogo, a compreensão, a difusão da cultura da tolerância, da aceitação do outro e da convivência entre os seres humanos contribuiriam significativamente para a redução de muitos problemas econômicos, sociais, políticos e ambientais que afligem grande parte do gênero humano.

• O diálogo entre crentes significa encontrar-se no espaço enorme dos valores espirituais, humanos e sociais comuns, e investir isto na propagação das mais altas virtudes morais que as religiões solicitam; significa também evitar as discussões inúteis.

• A proteção dos locais de culto – templos, igrejas e mesquitas – é um dever garantido pelas religiões, pelos valores humanos, pelas leis e pelas convenções internacionais. Qualquer tentativa de atacar locais de culto ou de os ameaçar através de atentados, explosões ou  demolições é um desvio dos ensinamentos das religiões, bem como uma clara violação do direito internacional.

• O terrorismo execrável que ameaça a segurança das pessoas, tanto no Oriente como no Ocidente, tanto no Norte como no Sul, espalhando pânico, terror e pessimismo não se deve à religião – embora os terroristas a instrumentalizem – mas tem origem no cúmulo de interpretações erradas dos textos religiosos, nas políticas de fome, de pobreza, de injustiça, de opressão, de arrogância; por isso, é necessário interromper o apoio aos movimentos terroristas através do fornecimento de dinheiro, de armas, de planos ou justificações e também a cobertura mediática, e considerar tudo isto como crimes internacionais que ameaçam a segurança e a paz mundial. É preciso condenar tal terrorismo em todas as suas formas e manifestações.

• O conceito de cidadania baseia-se na igualdade dos direitos e dos deveres, sob cuja sombra todos gozam da justiça. Por isso, é necessário empenhar-se por estabelecer nas nossas sociedades o conceito de cidadania plena e renunciar ao uso discriminatório do termo minorias, que traz consigo as sementes de se sentir isolado e da inferioridade; isto prepara o terreno para as hostilidades e a discórdia e subtrai as conquistas e os direitos religiosos e civis de alguns cidadãos, discriminando-os.

• O relacionamento entre Ocidente e Oriente é uma necessidade mútua indiscutível, que não pode ser comutada nem transcurada, para que ambos se possam enriquecer mutuamente com a civilização do outro através da troca e do diálogo das culturas. O Ocidente poderia encontrar na civilização do Oriente remédios para algumas das suas doenças espirituais e religiosas causadas pelo domínio do materialismo. E o Oriente poderia encontrar na civilização do Ocidente tantos elementos que o podem ajudar a salvar-se da fragilidade, da divisão, do conflito e do declínio científico, técnico e cultural. É importante prestar atenção às diferenças religiosas, culturais e históricas que são uma componente essencial na formação da personalidade, da cultura e da civilização oriental; e é importante consolidar os direitos humanos gerais e comuns, para ajudar a garantir uma vida digna para todos os homens no Oriente e no Ocidente, evitando o uso da política de duas medidas.

• É uma necessidade indispensável reconhecer o direito da mulher à instrução, ao trabalho, ao exercício dos seus direitos políticos. Além disso, deve-se trabalhar para libertá-la das pressões históricas e sociais contrárias aos princípios da própria fé e da própria dignidade. Também é necessário protegê-la da exploração sexual e de a tratar como mercadoria ou meio de prazer ou de ganho econômico. Por isso, devem-se interromper todas as práticas desumanas e os costumes triviais que humilham a dignidade da mulher e trabalhar para modificar as leis que impedem as mulheres de gozarem plenamente dos seus direitos.

• A tutela dos direitos fundamentais das crianças a crescer num ambiente familiar, à alimentação, à educação e à assistência é um dever da família e da sociedade. Tais direitos devem ser garantidos e tutelados para que não faltem e não sejam negados a nenhuma criança em nenhuma parte do mundo. É preciso condenar qualquer prática que viole a dignidade das crianças ou os seus direitos. Igualmente importante é velar contra os perigos a que estão expostas – especialmente no ambiente digital – e considerar como crime o tráfico da sua inocência e qualquer violação da sua infância.

• A proteção dos direitos dos idosos, dos vulneráveis, dos portadores de deficiência e dos oprimidos é uma exigência religiosa e social que deve ser garantida e protegida através de legislações rigorosas e da aplicação das convenções internacionais a este respeito.

Por fim, através da cooperação conjunta, a Igreja Católica e a al-Azhar anunciam e prometem levar este Documento às Autoridades, aos Líderes influentes, aos homens de religião do mundo inteiro, às organizações regionais e internacionais competentes, às organizações da sociedade civil, às instituições religiosas e aos líderes do pensamento; e empenhar-se na divulgação dos princípios desta Declaração em todos os níveis regionais e internacionais, solicitando que se traduzam em políticas, decisões, textos legislativos, programas de estudo e materiais de comunicação.

Al-Azhar e a Igreja Católica pedem que este Documento se torne objeto de pesquisa e reflexão em todas as escolas, nas universidades e nos institutos de educação e formação, a fim de contribuir para criar novas gerações que levem o bem e a paz e defendam por todo o lado o direito dos oprimidos e dos marginalizados.

Ao concluir, almejamos que esta Declaração:

seja um convite à reconciliação e à fraternidade entre todos os crentes, mais ainda, entre os crentes e os não-crentes, e entre todas as pessoas de boa vontade; seja um apelo a toda a consciência viva, que repudia a violência aberrante e o extremismo cego; um apelo a quem ama os valores da tolerância e da fraternidade, promovidos e encorajados pelas religiões; seja um testemunho da grandeza da fé em Deus, que une os corações divididos e eleva a alma humana;

seja um símbolo do abraço entre o Oriente e o Ocidente, entre o Norte e o Sul e entre todos aqueles que acreditam que Deus nos criou para nos conhecermos, cooperarmos entre nós e vivermos como irmãos que se amam.

Isto é o que esperamos e tentaremos realizar a fim de alcançar uma paz universal de que gozem todos os homens nesta vida.

Abu Dabhi, 4 de fevereiro de 2019.

Sua Santidade
Papa Francisco

Grão-Imã de Al-Azhar
Ahmad Al-Tayyeb

Ofício das Leituras

Próprio da Família Franciscana do Brasil

Memória

Discípulos de São Francisco partiram para a Espanha em 1219, a fim de pregarem o Evangelho aos maometanos. Presos, foram levados a Marrocos, onde continuaram a sua pregação. Presos novamente, na cidade de Marrakesch, foram postos em cadeias e torturados, até serem condenados à morte pelo próprio rei da região, no ano de 1220.

Ofício das Leituras

Segunda Leitura

Da Crônica dos Ministros Gerais da Ordem dos Frades Menores (Analecta Franciscana, IlI, p. 15·19).

Tudo desprezamos por causa de Cristo

São Francisco, por vontade do Senhor, enviou seis irmãos ao reino de Marrocos, para pregarem com constância a fé católica aos infiéis. Quando estavam no reino de Aragão, Frei Vital adoeceu gravemente e vendo prolongar-se a enfermidade, não quis interromper as pregações devido à doença corporal, e ordenou aos outros cinco que cumprissem a ordem de Deus e do Pai Francisco, partindo para Marrocos. Os santos irmãos, obedecendo, ali deixaram irmão Vital doente, e chegaram a Coimbra. Daí os santos partiram. Disfarçaram o hábito e chegaram a Hispal, então cidade dos sarracenos.

Certo dia, no fervor do espírito, sem guia, dirigiram- se à principal igreja deles. Como quisessem entrar, os sarracenos, indignados, com clamores, empurrões e pancadas investiram contra eles e de forma alguma permitiram que entrassem na igreja. Finalmente aproximaram-se da porta do palácio, e declararam ao rei terem sido enviados, quais embaixadores, pelo Rei dos reis, o Senhor Jesus Cristo. Como propusessem ao rei muitos ensinamentos da fé católica, induzindo-o à conversão e à recepção do batismo, o rei, furioso, mandou decapítá-los: no entanto, ouvindo posteriormente o conselho dos anciãos, enviou-os a Marrocos, conforme desejavam.

Tendo entrado na cidade, logo começaram a pregar aos sarracenos na praça. Ao ouvir isso, o rei mandou prendê-Ias no cárcere, onde ficaram vinte dias sem comida nem bebida, reconfortados apenas com a consolação divina. Então o príncipe mandou buscá-Ios. Encontrou-os a confessar com constância a fé católica, e, inflamado de cólera, ordenou fossem torturados com vários tormentos e em diferentes casas; separados uns dos outros, fossem duramente flagelados. Então, os iníquos servos amarraram as mãos e pés dos santos, puseram-lhes cordas ao pescoço e arrastando-os por terra para cá e para lá, de tal modo os flagelaram pesadamente que as vísceras quase apareciam. Sobre as feridas quebraram vasos de óleo fervendo e vinagre e colocaram os fragmentos dos vasos sobre ásperos leitos, onde jogaram os santos e os revolveram. Assim foram afligidos por toda a noite, guardados e cruelmente batidos por uns trinta sarracenos.

O rei de Marrocos, cheio de cólera, ordenou que fossem trazidos à sua presença. Os santos foram levados ao rei com as mãos amarradas, despojados, descalços, e cobertos de sangue pelos carrascos que os fustigavam continuamente. O rei, vendo-os e verificando estarem firmes na fé, mandou introduzir algumas mulheres, fez os outros saírem e disse-lhes: “Convertei-vos à nossa fé, e dar-vos-ei essas mulheres por esposas e muito dinheiro e sereis honrados em meu reino”. Os bem-aventurados mártires responderam: “Não queremos mulheres, nem teu dinheiro, mas tudo desprezamos por causa de Cristo”. Então o rei, irado, tomou de uma espada, e separando os santos, partiu pelo meio a cabeça de um por um. Enfiou-lhes no cérebro três pequenas espadas e assim matou-os, por própria mão, com feroz crueldade.

Responsório:

R. Os santos de Deus não temeram carrascos, açoites, torturas. Pelo nome de Cristo morreram, e assim se tornaram herdeiros na casa do Pai com o Cristo.

Por causa de Deus entregaram sem temor o seu corpo ao suplício. E assim, no suplício e na morte esperavam a ressurreiçã gloriosa.

Oração:

Ó Deus, que consagrastes os primórdios da Ordem dos Menores pelo glorioso martírio dos vossos santos mártires Berardo e seus companheiros, concedei que possamos viver firmes na fé, como eles não hesitaram em morrer por vosso amor. Por nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, na unidade do Espírito Santo.

Oração da manhã:

Ant.: Por amor do coração de nosso Deus, o Sol nascente lá do alto nos fez santos, e iluminou através dos santos mártires aqueles que jazem entre as trevas e na sombra da morte estão sentados.

Oração da tarde

Ant.: Estes mártires santos gloriosos por Deus derramaram seu sangue. Amaram o Cristo na vida, imitaram o Cristo na morte: reinarão para sempre com ele.

O martírio nas Fontes Franciscanas

A palavra martírio é a que ocorre mais vezes nas Fontes Franciscanas em suas várias acepções: em seu sentido estrito de acontecimento, no sentido mais amplo de desejo ou ânsia de martírio bem como uma vida tecida de sacrifícios e obras de penitência. Constitui acontecimento de alegria e de glória para a Ordem Franciscana o fato de que cinco de seus frades morreram como mártires da fé em 16 de janeiro de 1220.

Celano, ao registrar o fato, tinha em mente também a lembrança de outros sete frades, também mortos como mártires (10 de outubro de 1227), como também o martírio de Frei Electus, ainda no tempo da vida de São Francisco (2Cel 208). Dizia que a Ordem era como “vinha que havia crescido”, “havia estendido seus ramos frutíferos de mar a mar” e também que a Ordem “é glorificada, pois muitos daqueles que tinha gerado, tinham alcançado a palma do martírio” (3Cel 2; Ruggero 10). Jordão de Jano lembra o episódio dos cinco protomártires franciscanos e a atitude humilde e comedida de Francisco quando tomou conhecimento do “martírio, da vida e da legenda dos supraditos frades”: “…percebendo (Francisco) que nela (na primeira legenda perdida) se teciam elogios a ele, e notando que os frades gloriavam-se com o martírio deles, visto que ele era o maior desprezador… refutou a legenda e proibiu sua leitura dizendo: ‘Cada um glorie-se de seu próprio martírio e não daquele dos outros” (JJ 8; cf. Adm 6). E o santo saiu em busca pessoal do martírio “com sublime propósito e ardente desejo” (1 Cel 56). “No fervor de sua caridade – escreve Boaventura – sentiu-se inspirado a imitar o triunfo glorioso dos mártires nos quais o fogo da caridade não se extinguia nem se quebrantava a coragem” (LM 9,5).

Mais tarde Clareno lembrará concisamente tanto o desejo quanto as tentativas realizadas pelo santo em ver cumprido seu desejo: “O bem-aventurado Francisco, movido pelo fervor da caridade seráfica, pela qual se sentia totalmente atraído por Cristo, desejando ardentemente oferecer-se a Deus como hóstia viva através da chama do martírio, por três vezes ao menos empreendeu viagem com destino às terras dos infiéis” (Clareno 2,1).

São Boaventura, várias vezes, já havia se referido ao ardor do santo pelo martírio bem como às tentativas de concretizá-lo: “…o fruto que mais o atraía era o martírio, o mérito de morrer por Cristo; desejava a morte por Cristo mais do que os méritos de uma vida virtuosa” (LM 9,6). “O ardor de sua caridade o impelia ao martírio. Pela terceira vez ele tentou partir aos países infiéis para difundir, com o derramamento de seu sangue, a fé na Trindade” (LM 9,7;Lm 5,7; Dante Par. 11, 100-102).

Em outro texto, Boaventura coloca lado a lado as expressões martírio e imolação no mesmo sentido, sempre com relação a São Francisco: “Nada mais desejava senão oferecer-se ao Senhor como hóstia viva” (Lm 3,9). Ânsia tão intensa do santo não ficou sem fruto, como revela ainda Boaventura, que exalta o valor meritório mesmo do desejo, igualando-o em mérito ao próprio martírio: Francisco não tendo recebido o martírio, no entanto, conseguiu “o mérito do martírio desejado” (lbid.). Semelhante ânsia de martírio vem registrada também pela “plantinha” de São Francisco, Clara de Assis que, embora no claustro, nutria esta esperança de coroar a vida com o martírio “por amor do Senhor” (ProcC 6,6), “em defesa da fé e pela sua Ordem”.” (ProcC 7,2).

Acepção equivalente à realidade do martírio é a que exprimem Celano, Boaventura e outras fontes, referindo-se ao espírito do martírio inerente a uma existência vivida como oferenda sacrifical. O modelo preferido é ainda Francisco. A respeito dele escreve Celano com brevidade: “A alma (do santo) era toda sede de seu Cristo e a ele se oferecia inteiramente no corpo e no espírito” (2Cel 94).

Boaventura, por sua vez, exprime-se mais ampla e explicitamente: “…oferecia continuamente a Deus seu corpo e sua alma por amor a Cristo, pois quase a cada instante imolava o corpo com o rigor do jejum e a alma com a chama do desejo: holocausto, seu corpo, imolado fora, no átrio do templo; incenso, sua alma, exalado dentro do templo” (LM 9,3). Estamos diante de uma confluência terminológica de cunho litúrgico que remete para a Eucaristia e o próprio sacrifício da cruz, que Francisco espiritualmente imitava, vivendo-o com a participação do seu próprio ser.

A ideia volta quando o próprio Boaventura fala da transformação que se deu de Francisco em Cristo no Alverne: “…o amante de Cristo estava todo transformado em imagem viva do Cristo crucificado, não mediante o martírio da carne mas antes pelas chamas de amor de seu espírito” (LM 13,3).

Celano, por sua vez, retoma o mesmo relato referindo-se à eucaristia, descrevendo os mesmos conceitos fundamentais: “(Francisco) ardia com fervor do mais profundo de todo o ser para com o sacramento do Corpo do Senhor… oferecia o sacrifício de todos os seus membros e, recebendo o Cordeiro Imaculado, imolava o seu espírito naquele fogo que sempre ardia no altar de seu coração” (2Cel 201). Sempre dentro de um contexto sacrifical, Celano recorda a história dos dois cônjuges. Francisco havia feito uma intervenção em vista de sua pacífica e piedosa convivência (tratava-se de um marido cruel, casado com uma mulher cheia de solicitudes e virtudes). Estes chegaram ao termo de suas vidas depois de terem vivido “por muitos anos em continência” e “tiveram, no mesmo dia, uma morte multo feliz, um como o holocausto da manhã e o outro como sacrifício vespertino” (2CeI38).

Por fim, em duas das cartas de Santa Clara escritas à bem-aventurada Inês de Praga, novamente encontramos a mesma expressão com conotações de vocabulário ligado ao termo vítima. Na segunda carta, Clara, depois de reconhecer a riqueza de virtudes que adorna a destinatária, acrescenta: “…quero exortar-te, por amor daquele a quem te ofereceste como uma santa e agradável oferenda” (2CtIn 3). Na terceira carta, Clara toma a liberdade de dar um conselho para sua destinatária na linha da moderação porque sabia que ela era dada a “quase insensata austeridade”, e diz: “tua vida seja um louvor do Senhor e que prestes ao Senhor um culto espiritual e o teu sacrifício seja sempre temperado com o sal da prudência” (3CtIn 6).

Dicionário Franciscano

Vídeo celebrativo do Jubileu 2020