2023 – 800 Anos da Regra de Vida dos Frades Menores
- 2023 - 800 Anos da Regra de Vida dos Frades Menores
- Capítulo I
- Capítulo II
- Capítulo III
- Capítulo IV
- Capítulo V
- Capítulo VI
- Capítulo VII
- Capítulo VIII
- Capítulos IX e XII
- Capítulo X
- Capítulo XI
2023 - 800 Anos da Regra de Vida dos Frades Menores
Apresentação
A Conferência da Família Franciscana convida-nos a celebrar o grande Centenário Franciscano, isto é, a articulação de vários centenários de 800 anos num único Centenário que começa em 2023 e termina em 2026: Regra Bulada e o Natal de Greccio neste ano de 2023, os Estigmas em 2024, o Cântico das Criaturas em 2025 e a Páscoa de São Francisco em 2026.
A Província nomeou uma equipe, isto é, uma ‘comissão de trabalho’, para juntos pensar o envolvimento da Fraternidade Provincial na celebração destes centenários, e, sempre que possível, local e regionalmente, em comunhão com a Conferência da Família Franciscana do Brasil (CFFB).
A Formação Permanente, através desta Revista Comunicações da Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil, oferecerá mensalmente um artigo para destacar os 800 anos da Regra Bulada, aprovada pelo Papa Honório III no dia 29 de novembro de 1223. Estas partilhas mensais, elaboradas por confrades da Província, seguem os capítulos da “Regra e vida” da Ordem dos Frades Menores, com a finalidade de ajudar nossas Fraternidades a bem celebrar os Capítulos Locais, bem como orientar nossos retiros mensais e anual, em conformidade com as Constituições Gerais: “A fim de revigorar o espírito de oração e devoção, no tempo marcado, os irmãos façam fielmente o retiro mensal e o retiro anual” (CCGG 30,1).
Assim, as partilhas mensais seguirão esta ordem:
Janeiro: Ressignificar o fundamento evangélico e eclesial da nossa vida franciscana.
Fevereiro: Os que quiserem abraçar esta vida. Os primeiros passos de toda uma vida penitencial (permanente conversão). A distribuição dos bens aos pobres. O ser recebido na obediência. A profissão e suas consequências. As vestes evangélicas e a forma de viver esta vida. Tema que será lido e rezado a partir da prioridade do Serviço da Animação Vocacional.
Março: Ressignificar a vida de oração da Fraternidade. O ofício divino, o jejum corporal e o ir pelo mundo como construtores da paz.
Abril: Ressignificar a Pobreza: Sem dinheiro nem pecúnia, mas solícitos com os irmãos. A nossa economia fraterna e solidária também necessita de cuidados.
Maio: Ressignificar a graça do trabalho. Trabalhar fiel e devotamente. A nossa sustentabilidade no espírito da pobreza.
Junho: Ressignificar a Pobreza e a itinerância. Herdeiros do Reino e familiares entre si (irmãos espirituais).
Julho: Ressignificar a misericórdia e o perdão. Não se irar com o pecado do irmão.
Agosto: Ressignificar a importância dos Capítulos e o serviço dos Ministros.
Setembro: Ressignificar o espírito da Evangelização: A pregação dos irmãos e a Missão “ad gentes”.
Outubro: Ressignificar a compreensão das relações fraternas entre autoridade e obediência. Possuir o Espírito do Senhor e os comportamentos fundamentais do irmão menor.
Novembro: Ressignificar a castidade e as relações afetivas, com prudência e vigilância.
Dezembro: Celebrar o Natal de Greccio – Recordar a pobreza, humildade e simplicidade do Filho de Deus.
A celebração dos 800 anos da Regra Bulada é uma ocasião propícia, um tempo favorável, para ressignificar o “próprio” da nossa vocação franciscana, isto é, rever, revisitar e revigorar a nossa identidade carismática, em vista da missão evangelizadora professada por cada um de nós: “Eu possa tender constantemente para a perfeita caridade, ao serviço de Deus, à Igreja e aos homens” (CCGG art. 5).
O texto inspiracional da Conferência da Família Franciscana, “Um Centenário articulado e celebrado em vários centenários” (p. 6), ajuda-nos a ampliar o horizonte da ressignificação da nossa identidade carismática, particularmente das ‘constantes’ (“profecias”) das quais Francisco jamais renunciou:
“É importante recordar que Francisco compõe a Regra Bulada durante um período da sua vida em que tem de enfrentar numerosas tensões e crises em nível fraterno, mas ele não renuncia à profecia de viver como irmão de todos e convida-nos a fazer o mesmo. Hoje, a Igreja, ao promover a sua dimensão sinodal e comunitária, apresenta a figura de Francisco de Assis como modelo de fraternidade, chamando-o de “santo do amor fraterno” (Fratelli Tutti 2), porque os seus gestos e palavras ainda podem, ao fim de 800 anos, iluminar o caminho de uma comunidade eclesial que procura tornar-se uma Igreja em saída, sinodal, ouvindo todos, perto dos mais pequenos, portador de uma boa notícia que tem a força para preencher com alegria e significado a vida de quem a acolhe” (cf. Evangelii Gaudium 21).
Imagem: “Confirmação da Regra”, de Giotto di Bondone (1295-1299), na Igreja Superior da Basílica de São Francisco de Assis
Capítulo I
Celebrar a Regra Bulada (1223-2023)
“A Regra e a vida dos Frades Menores é esta: observar o santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo” (cf. RB 1 e RB 12, 4-5).
A celebração dos 800 anos da Regra Bulada, longe da tentação de nos enaltecermos com a vida dos santos confrades que prestaram atenção ao Bom Pastor e “o seguiram na tribulação e na perseguição, na vergonha e na fome, na enfermidade e na tentação” (cf. Ad 6, 1-2), se apresenta a nós como anúncio profético para acolher o refrão do Papa Francisco: “sair das nossas zonas de conforto” e, como Frades Menores, sermos capazes de “despertar o mundo”, como São Francisco de Assis fez no seu tempo: “Francisco, vai e restaura a minha casa que, com o vês, está toda destruída” (2Cel 10,5), e ainda, conforme o mandato eclesial: “Irmãos, ide com o Senhor e pregai a todos a penitência, como o Senhor se dignar inspirar-vos” (1Cel 33,7).
Assim, a partir do primeiro Capítulo da Regra Bulada, permitamos que os “gestos e palavras” de São Francisco e da primitiva fraternidade iluminem cada frade e sua respectiva Fraternidade Local para juntos perfazer o caminho de “uma comunidade eclesial que procura tornar-se uma Igreja em saída, sinodal, ouvindo todos, perto dos mais pequenos, portador de uma boa notícia que tem a força para preencher com alegria e significado a vida de quem a acolhe” (Um Centenário… p. 6).
A Regra e sua moldura evangélica
É muito significativo para nós, Ordem dos Frades Menores, celebrar com toda a Família Franciscana o jubileu dos 800 anos da aprovação da Regra Bulada. Todos professamos em fraternidade a mesma intuição carismática de São Francisco, apresentada no seu Testamento: “O mesmo Altíssimo me revelou que devia viver segundo a forma do Santo Evangelho. E eu assim o fiz escrever em poucas e simples palavras, e o Senhor Papa mo confirmou” (Test. 14-15). Esta intuição carismática compõe a moldura e fundamenta os conteúdos centrais da nossa Regra. Esta moldura, ou melhor, esta “forma evangélica” é anunciada no primeiro versículo da Regra (RB 1,1) e no último (RB 12, 5). Em outras palavras, a mesma “chave” que abre a porta para introduzir-nos neste modo próprio (forma) de vida e de como observá-la (“A Regra e a vida dos Frades Menores é esta: observar o Santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo”, RB 1,1) é também a chave que fecha, isto é, que encerra a totalidade do conteúdo da sagrada aliança que deve ser cumprida e observada por meio do Voto feito a Deus: “… e observemos a pobreza e a humildade e o santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo que firmemente prometemos” (RB 12,5).
Este Voto tem sua visibilidade concreta na observância do santo Evangelho, particularmente na vivência dos três Conselhos Evangélicos: “Observar o santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo em obediência, sem propriedade e em castidade” (RB 1,2).
Portanto, enquadramento evangélico aqui não pode ser compreendido como espaço cerrado ou delimitado, mas assegura o elementar do nosso modo próprio de seguir em liberdade os passos de Nosso Senhor Jesus Cristo (cf. 1Cel 22, 2-3 e AP 10-11). Um caminho que ilumina o irmão que vem por ‘divina inspiração’ a abraçar o largo horizonte da nossa liberdade evangélica e carismática, tão bem definida na alegoria da aliança celebrada entre Francisco e irmãos com a Senhora Pobreza, no relato do Sacrum Commercium: “claustro que tem as dimensões de todo o orbe” (SC 30,25).
Ressignificar a nossa vida franciscana a partir da Regra Bulada
Esta Regra e vida foi muito bem assimilada pela primitiva fraternidade. O relato de Frei Tomás de Celano que segue, mais que uma narrativa histórica, apresenta-nos a aceitação e a compreensão bíblico-espiritual que a Fraternidade tinha da Regra, aprovada oralmente pelo Papa Inocêncio III em 1209, e definitivamente no dia 29 de novembro de 1223 pela Bula Solet Annuere do Papa Honório III, há menos de três anos antes da morte de Francisco de Assis. Celano escreve que Francisco, “zelava ardorosamente pela profissão comum e pela regra e dotou-a com bênção especial aos que zelassem por ela. Pois dizia aos seus que ela é o livro da vida, a esperança da salvação, a medula do evangelho, a via da perfeição, a chave do paraíso, o pacto da eterna aliança. Queria que todos a possuíssem, que todos a conhecessem e por toda parte ela conversasse com o homem interior como palavra de alento no [momento de] aborrecimento e recordação do juramento prestado. Ensinou-lhes que ela deve sempre ser trazida diante dos olhos para recordação da vida a ser praticada e, o que é mais importante ainda, com ela eles deviam morrer” (2Cel 208).
São Francisco se revelou através da Regra. E não apenas ele! A regra é também o retrato fiel da primitiva fraternidade de irmãos que, na dinâmica da itinerância evangélica, experimentam tanto as conquistas como aprendem a lidar com as fragilidades humanas nas diferentes circunstâncias da vida. Por isso, antes de ser um texto formal ou jurídico, a Regra foi a vivência cotidiana do santo Evangelho, a escuta orante da Palavra, a organização da vida a partir da Palavra e o consequente anúncio da Palavra. Foi dessa forma que eles, revestidos de túnicas que traziam a imagem da cruz (cf. 1Cel 22), foram a Roma para apresentar ao Papa Inocêncio III “uma forma e regra de vida, utilizando principalmente palavras do santo evangelho” (1Cel 32). A “fé na Igreja” é marcante, é uma das notas “constantes”, assim codificada na Regra: “Frei Francisco promete obediência e reverência ao senhor Papa Honório e seus sucessores canonicamente eleitos e à Igreja Romana” (RB 1, 3). E quando interpelados pela identidade, isto é, por esta “forma de vida”, com lucidez e clareza respondem: “Somos penitentes e nascemos na cidade de Assis” (AP 19).
Portanto, a Regra foi primeiramente vivida e rezada, discernida de capítulo em capítulo como que em espírito de sinodalidade, e dada a nós como testamento, herança e bênção. Aliás, muito bem recordada por São Francisco no seu Testamento: “para que observemos mais catolicamente a regra que prometemos ao Senhor” (Test 34)
A fidelidade professada
A Regra e vida que professamos por meio de um voto a Deus, nos introduziu na Ordem dos Frades Menores. Desistências e abandonos também ocorreram ao longo da nossa história. Contudo, a exortação final da Regra Bulada, a chave da nossa sagrada “clausura”, como já foi dito acima, é a expressão da mais profunda convicção de São Francisco diante do benefício da vocação acolhida por inspiração divina: “E observemos a pobreza e a humildade e o santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo que firmemente prometemos” (RB, 12, 5). Professar a Regra, fazer o Voto de observar esta Regra e vida, gera um compromisso, cria uma aliança sagrada aos moldes da compreensão bíblica do livro do Eclesiastes: “Quando fizerdes um voto a Deus, não demores em cumpri-lo, porque não lhe agradam os insensatos. Cumpre o que prometeste! É melhor não prometer do que prometer e não cumprir” (Ecl 5, 3-4).
A vida cristã franciscana se concretiza no Evangelho, ou seja, no modo de ser e viver de Nosso Senhor Jesus Cristo e dos Apóstolos. Por isso, o Evangelho se tornou a medula, o respiro e a vida de São Francisco. A Regra professada é vida e liberdade evangélica e não um conjunto de leis que apequena o coração. Por isso, na linguagem de Frei Tomás de Celano, a Regra é o coração, o centro vital, a medula que é Nosso Senhor Jesus Cristo. Nele nos identificamos como Frades Menores e com Ele somos identificados pelo povo de Deus como irmãos menores. Daí a recordação do Papa Francisco, em 2015, aos Frades Capitulares: “Vocês conquistaram uma autoridade moral junto ao povo de Deus com a minoridade, com a fraternidade, com a brandura, com a humildade, com a pobreza. Por favor, conservem-na! Não a percam! O povo quer bem a vocês, ama vocês”.
Conclusão
Convido-lhes a fazer o caminho da ressignificação da nossa vida, tendo a Regra Bulada como medula, essência e vigor em nossa vida franciscana. Convido-lhes a estar mais atento às “constantes” da nossa vocação e missão das quais São Francisco jamais abriu mão. Dessa forma, parafraseando o Papa Francisco, podemos celebrar os 800 anos da Regra Bulada no espírito de “olhar o passado com gratidão, viver (ressignificar) o presente com paixão e abraçar o futuro com esperança”.
Frei Fidêncio Vanboemmel, OFM
Moderador da Formação Permanente
Capítulo II
“Dos que querem abraçar esta vida e de como devem ser aceitos”
1. Como é bom ter uma regra
A fé cristã é um fazer memória. E não é porque vivemos “de passado”. Mas na recordação de um feito buscamos o atualizá-lo, na sede de manter vivo o sentimento daquilo que é lembrado. Por isso é um casamento daquilo que foi com o que se vive para motivar o que vem a seguir. E somos ruminadores do antigo não porque o atual é sem graça: no exercício do reencontro com o passado, o hodierno ganha ainda mais sentido. E nessa dança entre o que foi, o que é e o que será bailamos nos embalos da música do mistério que se revela, se esconde, se mostra, se retrai. É antigo e sempre novo!
Neste sentimento, a Ordem quer reviver a emoção da aprovação da Regra. Mesmo 800 anos depois, numa empreitada assaz pretensiosa, os frades querem fazer memória e sentir na pele o como é bom ter uma Regra (e vivê-la). Logo no início, a diretriz deixa claro os passos que devem ser dados pelos corajosos que aceitam o desafio de “avançar para águas mais profundas” do seguimento de Cristo ao modo de Francisco de Assis. E é sobre este segundo capítulo da Regra que vamos aprofundar nossa reflexão, entendendo-o a partir do prisma vocacional, sendo corroborado pelo Ano Vocacional da Igreja no Brasil e da nossa Província.
2. “Dos que querem abraçar esta vida e de como devem ser aceitos”
Até o período Neolítico, na pré-história, o ser humano era basicamente nômade. Sua vida girava em torno de questões de subsistência: alimentação e defesa. Entretanto, percebendo que era possível desenvolver meios agrícolas, aos poucos, a humanidade se sedentarizou. Surgiram as ferramentas, as aldeias. Entretanto, algo ali chama a atenção: prorrompem os primeiros indícios de elementos que não tinham uma finalidade apenas pragmática, mas que possuíam mais cuidado na fabricação: arte. Com o tempo se desenvolve o senso de cultura, de estética, de subjetividade diante de um objeto ou situação, que passa a adquirir um sentido maior do que simplesmente uma ferramenta, e torna-se um símbolo.
Com isso, paulatinamente, a sobrevivência não se limitou apenas à caça de alimentos e proteção, mas uma “caça” de sentido de vida. Castilho assevera que “nós humanos somos humanos porque possuímos uma capacidade simbólica e somos capazes de expressar nossas experiências simbólicas”[1].
Tais vivências crescem também com a adesão a certos costumes, tradições e modos de vida. Alguns surgem até como figuras a serem imitadas pelo exemplo. Eles suscitam nos outros o desejo de pretender viver um modo de vida específico, com suas simbologias próprias. Apresentando um itinerário, uma reflexão, aguçam o desejo humano, não só por alimento, mas por “norte”, por sentido, por objetivo.
E é aos desejosos de viver evangelicamente que Francisco escreve a Regra, asseverando que a ninguém é impreterível fazer isso: “Dos que QUEREM abraçar esta vida”. Estes almejam no fundo do seu coração, a partir de sua liberdade, ganhar o prêmio do Reino Eterno à medida que se configuram a Cristo. Isto é o seu simbólico. No entanto, primeiro experimentam um hiato entre a crise do que deverão vir a ser e, por outro lado, a certeza do que querem (discernimento). E o elemento que faz a ligação entre essas duas realidades é o desejo. Sobre ele, o Papa Francisco afirma:
“O desejo, todavia, não é a vontade do momento. A palavra italiana vem de um termo latino de-sidus, literalmente ‘a falta da estrela’, do ponto de referência que orienta o caminho da vida; ela evoca um sofrimento, uma carência e, ao mesmo tempo, uma tensão para alcançar o bem que falta. Então, o desejo é a bússola para compreender onde estou e para onde vou. (…) Obstáculos e fracassos não sufocam o desejo; pelo contrário, tornam-no ainda mais vivo em nós”.[2]
Os que estão fascinados por esta vida se tencionam para poder exercê-la. Como afirmou Castilho, a partir das experiências simbólicas o ser humano as expressa: ingressar na Ordem Franciscana, por exemplo, é uma expressão deste simbólico vivido. E assim tem a continuação do título da Regra: “De como devem ser aceitos”. Os que querem abraçar esta vida, a partir do mais puro desejo, precisam de um itinerário para o ingresso. Uma passagem: entre o incerto e o certo.
3. Primeiros passos (hábitos) de penitência e observância da catolicidade
O vocacionado a ser frade menor, desejoso de corresponder ao convite do Senhor, expressa esse simbólico por meio de uma nova vida. Mas esse processo acontece aos poucos, de penitência em penitência. Por isso necessita ser casmurro para construir novos hábitos. Para tal finalidade o hábito lhe é oferecido no ano da provação: para ser sinal de sua nova busca, para ser símbolo do seu primeiro passo e fazer memória constante da sua vocação, que não é apenas impulso pessoal, mas resposta contundente ao amor de Deus. Acerca da resposta à Graça de Deus, Konings afirma: “A consciência da fé cristã não é voluntarista, ávida de auto-afirmação. É agradecida, cheia de recordação e atenção. Pensa a partir da fonte da qual brotou: o amor de Deus que se manifesta em Jesus”[3].
Nos tempos modernos, o candidato já faz uma penitência durante o acompanhamento vocacional: nesta época, onde tudo deve ser instantâneo, a gradualidade, a gradatividade é penitência. O tempo de ir provando (acompanhamento vocacional) acontece com parcimônia para que a pessoa vá assimilando o novo modo de vida desejado, evitando assim que “engula quente” a experiência, não se saciando e degustando o momento verdadeiramente.
A penitência, aos poucos assumida para sempre, se torna via para abrir mão de qualquer coisa que possa desvirtuar o caminho, a fim de abraçar o que realmente conduz à plenitude da vocação franciscana. A pessoa despreza o pensar apenas em si mesmo (negação da autorreferencialidade) e assimila que a sua felicidade é fazer os outros felizes através da minoridade, da pobreza, da fraternidade e do serviço. Este é o seu novo hábito, que ora é mais fácil de vestir, ora mais exigente, mas nunca desprezível para quem quer se fazer frade menor. “A renegação jamais é um fim ou um ideal em si mesma. A coisa mais importante não é a apódose: ‘negue-se a si mesmo’, mas a prótase: ‘Se alguém quer vir após mim’. Dizer não a si mesmo é o meio, dizer sim a Cristo é o fim”[4].
Observar a catolicidade do candidato, como manda São Francisco, pode ser a busca por perceber se aquele chamado do irmão é uma resposta ao amor de Deus ou qualquer outra coisa que depois não sustenta sua vocação. É tomar o desejo da pessoa nas mãos e tentar com ela identificar se o mesmo é factível a partir daquilo que se torna evidente: se nasce de um Encontro com Jesus. Se a pessoa tem primeira eucaristia ou crisma passa a ser algo óbvio, pois seu desejo de ingressar é fruto da experiência eclesial que realiza. E se esperou demais ou assumiu outro compromisso na vida ou possua algo que a impede de ser religioso também é notório que ser frade não é o caminho: para cada realidade há a sua medida. Não é o provincial nem o animador vocacional que diz sim ou não. É a própria pessoa que apresenta a sua idoneidade e responde a si mesma. Cabe às instâncias clarear isso.
4. É tempo de fazer memória!
A profissão que realizamos é o assentimento ao simbólico que nos motiva. Fazer memória da Regra é ter a certeza de que assumimos um caminho porque queremos estar nele! Neste Ano Vocacional da Igreja do Brasil e de nossa Província, queremos restaurar as nossas motivações para aquilo que professamos. Queremos sentir na pele de novo, viver a memória da escrita e aprovação da Regra. E sonhamos espalhar este sentimento a mais corações desejosos por responderem ao chamado do Senhor e desejam fazer isso de modo franciscano.
Nós, confrades do Serviço de Animação Vocacional, por vezes ouvimos que somos os responsáveis por suscitar vocações. Pode ser que utilizemos de diferentes ferramentas (e devemos aprimorar muito isso) para estar no mundo dos jovens, apresentar o nosso carisma e provocá-los. Além disso, podemos nos qualificar para acompanhar estes casos. Mas cada irmão pode sempre incitar o convite, por palavras e atos, mostrando a vivacidade daquilo que professamos. O nosso fazer memória da Regra é uma sempre viva Tradição que nos impulsiona ao que vem à frente, uma vez que aderimos com o mais profundo desejo de corresponder ao chamado do Senhor a esta vida de penitência.
Frei Gabriel Dellandrea
Frei Jeâ Paulo Andrade
Serviço de Animação Provincial.
[1] CASTILHO, José M. A humanidade de Jesus. Petrópolis: Vozes, 2017, p. 21.
[2] https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2022-10/papa-francisco-audiencia-geral-discernimento-desejo.html
[3] KONINGS, Johan. Ser cristão: fé e prática. 4ª edição. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 98.
[4] CANTALAMESSA, Raniero. Pastores e pecadores: retiro espiritual para bispos, sacerdotes e leigos engajados. São Paulo: Ave-Maria, 2021, p. 33-34.
Capítulo III
Uma Espiritualidade que perpasse a Vida
O 8º Centenário da aprovação da Regra Bulada foi assumido pela Ordem dos Frades Menores como convite à ressignificação de sua própria identidade enquanto fraternidade de homens consagrados a Deus. Como forma de ajudar a corresponder a este convite, este artigo se soma à proposta de lançar luz sobre o texto da Regra em vista da recordação daquilo com que cada Frade Menor se comprometeu buscar e viver por toda sua vida.
Depois de apresentar os fundamentos de nossa Forma de Vida: o Evangelho, os votos e a comunhão eclesial (Cap. 1), e de estabelecer o modo como cada irmão deverá ser recebido “na obediência” da Ordem quando descobrir-se chamado pelo Senhor (Cap. 2), a Regra se volta para a vida de oração e jejum, assim como para o modo como os frades deverão apresentar-se diante das pessoas (Cap. 3). Sem se deter nos detalhes das temáticas abordadas – o que pode ser acessado pela leitura do próprio capítulo da Regra – buscar-se-á dar acento à intenção presumida de São Francisco de Assis e os secretários da Ordem.
A PARTIR DA ORAÇÃO… (vv. 1-5)
O terceiro Capítulo da Regra Bulada, ao falar da oração, determina que os frades rezem a Liturgia das Horas e participem da celebração eucarística, seguindo a prática de toda a Igreja e, para aqueles que não sabem ler, rezem o “ofício dos Pai Nossos”. Além disso, estabelece que cada irmão reze os devidos sufrágios por um confrade falecido.
Não há dúvidas de que São Francisco entendia que o primado da existência pertence a Deus e que este princípio é a base de toda vida que se pretenda religiosa. Caberia ao Frade Menor assumir como seu primeiro “ofício” o zelo pela relação com Deus. Este fundamento, longe de se opor à vida apostólica, deve ser assumido como adoção da dinâmica evangélica de alternância entre a “montanha e a planície”, elevando as necessidades e experiências da vida e da missão à oração enquanto as perpassa e as motiva com a intimidade cultivada com Deus. Sem o cultivo de uma profunda experiência de fé, porque um frade sairia a evangelizar? Sem o cultivo de reais relacionamentos humanos e fraternos, sem a dedicação à ação evangelizadora, o que um frade traria às suas orações? Apenas a si mesmo?
A partir desta perspectiva, tornam-se mais claros os demais princípios da vida de oração do Frade Menor: ao estabelecer um único ofício dentre tantas outras possibilidades, São Francisco queria garantir unidade entre as Fraternidades e a fidelidade/proximidade com a Igreja Romana. Estas intenções permeiam outras escolhas feitas pela Ordem, mas é importante que se ressalte como elas também estão presentes na prática da oração comunitária. Onde quer que um frade esteja, como residente ou visitante, a mesma oração oficial da Igreja será rezada. Ali ele terá a possibilidade de participar da celebração eucarística, fonte da comunhão entre os irmãos. Saberá que, aqueles irmãos que estiverem impossibilitados de rezar comunitariamente, serão recordados e incluídos nas preces dos demais. A oração comunitária é apresentada, deste modo, como forte elo de comunhão e de identidade fraterna do Frade Menor.
A proximidade com a Igreja Romana manifestada na adoção do modo proposto por ela para rezar e celebrar revela-se como elegante modo de fidelidade e unidade com seu Magistério. Mesmo os irmãos iletrados, incomuns em nosso tempo, podem rezar o Pai Nosso, oração ensinada pelo próprio Filho de Deus, conhecida de cor – mente e coração – por todos, e legada como patrimônio espiritual para toda a Igreja. Tal leitura não impede a inculturação, tão estimada e estimulada, especialmente em nossa realidade de América Latina, pelo contrário, oferece importantes balizas para que a criatividade própria do Espírito Santo suscite adaptações que não firam a unidade do único Corpo de Cristo.
Por fim, a lembrança da oração pelos confrades falecidos faz recordar a comunhão dos santos e fortalecer a vivência da unidade da Ordem. Os frades rezam movidos pela gratidão pela vida dos irmãos que os precederam e dos seus esforços consagrados à construção do Reino e a evangelização a partir da Ordem. Confiam-se a sua intercessão para que possam, em seu tempo, continuar a dar passos e oferecer seu contributo à História da Salvação.
Assim, a oração é entendida como meio ou exercício para o cultivo da comunhão e intimidade fraterna e dos irmãos com Deus. Como tal, sempre haverá espaço para a reflexão de como ela tem sido vivida nas Fraternidades, ou com que espírito os irmãos têm celebrado juntos. Se a oração tem ajudado os irmãos a estarem em consonância com Deus e entre si.
…FIRMANDO-SE NO ESSENCIAL DA VIDA… (vv. 6-10)
Já sobre a ascese, o Capítulo estabelece três quaresmas a serem vividas (a da Epifania, do Natal e da Páscoa) sendo que apenas as duas últimas permanecem prescritas pelas Constituições Gerais atuais, além de apresentar as sextas-feiras como dias de jejum para a Ordem.
O próprio texto da Regra, após estas determinações, revela o espírito pretendido por São Francisco nesta dimensão ascética: “em tempo de manifesta necessidade, os irmãos não sejam obrigados ao jejum corporal”. Mesmo que sob o olhar de nosso tempo não esteja claro, o texto da Regra já havia reduzido a prática dos jejuns ao mais essencial, o que fica mais evidente quando comparado com outras Regras e Constituições religiosas. São Francisco aproximava a vivência da dimensão ascética por parte dos frades à pratica de todo fiel cristão. E, ainda, a expressão por demais vaga para um texto legislativo “tempo de manifesta necessidade”, confia à maturidade e responsabilidade de cada irmão e Fraternidade esclarecer, caso por caso, quando a necessidade justificaria a amenização do exercício ascético tão próprio da vida religiosa. Assim, evidencia-se o espírito paternal e humano de São Francisco que se sobrepõe ao frio legalismo que poderia limitar a misericórdia.
O modo de São Francisco entender a ascese não desconsidera sua importância enquanto exercício que favorece a busca do essencial da vida e da experiência de fé, entretanto, ele evidencia a consciência de que esta não passa de um recurso para aquilo que é essencial e alerta, ao mesmo tempo, que ela pode ser assumida como falso critério de santidade. O jejum é um exercício proposto pela Igreja e pelos documentos da Ordem, ele é exercício de experiência de ausência, de abnegação de coisas com as quais o frade se acostumou, para recordá-lo d’Aquele a quem quer sempre buscar, mas, por vezes, acaba se esquecendo. O jejum, assim, lança o frade novamente na busca por Deus e, além disso, pode despertá-lo à outra característica tão própria da espiritualidade cristã: a caridade. Pois, o movimento da ascese só é completo quando ele provoca a doação de si e do que se tem ao outro, quando se deixa de buscar apenas a si, para buscar a Deus.
Contemplando tal perspectiva, importa refletir porque a ascese não encontra seu devido espaço na vida cotidiana e prática de fé, colocada muitas vezes sob desconfiança ou entendida como tema desgastado e ultrapassado. Afinal, exercitar-se na abnegação de si em vista da doação do que de melhor se possui a Deus e ao próximo não está no âmago da fé cristã?
A ascese corporal, quando devidamente empregada, é um recurso que pode ser grande auxílio na conversão de todas as energias em direção da razão primeira de sua vida. Porém vale dizer: a ascese é tudo isso, mas apenas isso.
…PARA REVELÁ-LO AO MUNDO (vv. 11-15).n
São Francisco entendia que a vida do Frade Menor deve se realizar no mundo, em meio às pessoas que estão no mundo. Concluindo o Capítulo 3 da Regra, ele descreve o modo como esta grande “Fraternidade em missão” deverá se apresentar. O texto afirma: os frades devem ir desarmados de qualquer julgamento, ímpeto de discussão e divisão. Devem ser mansos, pacíficos e humildes e tratar a todos com o devido respeito.
O que está sendo descrito pelas letras da Regra é o espírito de minoridade que deve caracterizar o modo do Frade viver e se relacionar com as pessoas. Espera-se que ele não busque reivindicar a razão, a posse da verdade, ou incitar discussões com o mesquinho intuito de derrotar os outros. Espera-se que ele não assuma a posição de julgamento sobre os outros, postura de quem se sente superior aos demais. Tais atitudes fomentam violência e São Francisco era declaradamente contrário a ela.
A minoridade, ainda, conduz a pessoa à libertação da autorreferencialidade narcisista, tornando-a disponível para estabelecer relações realmente marcadas pelo respeito, amor e paz. Torna o indivíduo manso, pacífico e modesto, como prometeu ao se tornar Frade Menor.
Assim, entende-se que, para São Francisco, o anúncio da paz, marca da evangelização ao modo franciscano, não é restrito a uma teoria retórica, mas se revela como compromisso a ser exercitado pessoalmente pelo frade. Seu modo de se portar diante das pessoas e de se relacionar com cada uma delas deve ser marcado por esta busca existencial.
As demais normativas seguem este lastro da sensibilidade minorítica que impele o frade a tratar cada pessoa com cortesia, para que as relações de paz possam crescer; a se importar com as condições e realidades das pessoas que participam das ações evangelizadoras, de modo que suas escolhas sejam condizentes e coerentes com a minoridade.
A missão dos frades, como se deixa entender, não é apresentada como nenhuma ação específica, mas ela será sempre marcada por uma postura humilde e pacífica diante de todos e assim, e somente assim, o Frade Menor evangelizará e continuará a contribuir com a Igreja sendo fiel ao seu carisma, em qualquer serviço ao qual ele se dedicar. Esta afirmação deve provocar a reflexão pessoal: é com este modo de proceder que cada um tem se relacionado com os irmãos e com o povo em sua vida e missão?
CONCLUINDO
O Capítulo 3 da Regra Bulada, tendo estabelecido o cultivo do espírito de oração e devoção em Fraternidade como a fonte primeira da vivência da forma de vida religiosa franciscana, passou à ampliação do horizonte ao voltar-se para a razão de ser da Ordem: seu modo de ir pelo mundo. A dimensão contemplativa que, quando bem cultivada, revela-se como verdadeira fonte a jorrar a água benfazeja da presença de Deus em toda a sua vida e missão. Estas, fazem orientar este rio de vida por onde o Frade passar, irrigando os projetos evangelizadores e a comunidade a qual pertencer, concedendo evangélico sentido àquilo que prometeu ser e fazer.
Frei Rodrigo da Silva Santos
Secretário Provincial
CROCOLI, A.; SUSIN, L. C.
A Regra de São Francisco de Assis.
Vozes: Petrópolis, 2013.
URIBE, F. La Regra de San Francisco: letra y espiritu.
Editorial Espigas: Murcia, 2006.
Capítulo IV
O uso do dinheiro como expressão carismática do sem nada de próprio
O Capítulo IV da Regra Bulada faz referência à relação dos irmãos com o dinheiro, apresentando, clara e objetivamente, que os irmãos não devem recebê-lo. A composição do texto não permite comentários ou interpretações que justifiquem algo diferente disto. O cuidado com os irmãos enfermos e com as necessidades daqueles que precisam de roupas deveriam ser assegurados por meio de amigos espirituais, a fim de cumprir o princípio acima recordado. Assim constituído, pode-se intuir que o texto da Regra evidencia o grande perigo do dinheiro e, por isso, uma decisão firme para não se fazer o seu uso.
Fato é que, com as mudanças ocorridas na organização das relações sociais que passaram a ter o dinheiro como a moeda de troca, viver neste contexto implica, necessariamente, ter dinheiro para garantir as necessidades mais vitais de qualquer ser humano. Os frades não foram isentados destas mudanças. Não foram poucos, todavia, os questionamentos e as inquietações que se fizeram entre os frades neste processo de passagem do não receberem, conforme prescrito na Regra, até o receberem dinheiro. A situação chegou a tal ponto que no ano de 1970, o Papa Paulo VI, por meio do atualmente denominado Dicastério para os Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica, a pedido dos Ministros Gerais da OFM e OFMCap, declarou que era lícito o uso do dinheiro pelos franciscanos, visto ser este um meio necessário para o intercâmbio, inclusive para o cuidado com os pobres.
Se por um lado a história conduziu a esta necessidade e a este distanciamento do explícito na Regra, por outro, sempre se mantiveram levantados os questionamentos sobre o modo de usar o dinheiro recebido pelos irmãos, a fim de que este modo não os impedisse de viver a intuição e o fundamento carismático do “sem nada de próprio”. O pouco tempo que isto vem sendo praticado já conseguiu criar alegrias e esperanças, luzes e sombras, acertos e situações lamentáveis.
Se não bastasse esta mudança em relação ao “receber dinheiro” e sua implicância interna à resposta dada ao carisma, vive-se nas últimas décadas uma transformação socio-eclesial. Terminou a força de um cristianismo cultural, do poder sacro de uma certa religião na qual já se nascia cristão e de uma sociedade cristã feita de exterioridades e poderes, situações estas sustentadas muitas vezes pelo próprio dinheiro, que bancava uma mentalidade clericalista.
E, ainda, a sociedade que até então aprendia da Igreja o que deveria fazer e como agir, passa a questioná-la e lhe pede explicações de como permitiu que seus membros, principalmente aqueles chamados para o seu serviço, vivessem tão distantes da mensagem do Evangelho por ela anunciada. O modo de usar o dinheiro está, certamente, entre os questionamentos mais gritantes. Não distante de cada um de nós, o mau uso do dinheiro pode expressar uma das maiores contradições entre a mensagem anunciada pelo Evangelho e aquilo que é vivido pelos membros da Igreja.
Neste contexto, o atual momento histórico, incentivado pelas novas posturas da própria Igreja, principalmente pelo impulso dado pelo Papa Francisco, pede-nos, urgentemente, uma renovada relação com o dinheiro, não o tendo mais como expressão de um poder que cria em nós a ilusão de onipotência e imortalidade. O dinheiro passa, assim, a ser uma ferramenta a serviço do carisma e da missão, usada de modo evangelizador, assumida por homens que decidiram “servir a Deus e não ao dinheiro” (Mt 6,24), que acreditam no Evangelho e em sua mensagem, que têm no Pai sua plena e única confiança.
Não se apropriar: o escândalo evitado
Na busca pela fidelidade carismática, mesmo tendo que ceder ao acima recordado e os frades terem passado a receber dinheiro, a certeza que os guiou neste processo foi que o dinheiro nunca seria apropriação pessoal, mas, colocado em comum na Fraternidade, seria um meio para que a própria Fraternidade pudesse cumprir bem a sua missão, mantendo-se fiel à inspiração originária, manifestada, incialmente, em São Francisco. O guia na busca pela fidelidade carismática foi e continua sendo o de sermos irmãos. Estes são o fundamento de todas as considerações feitas sobre o dinheiro e o seu uso.
Para se falar de irmãos, parte-se sempre daquilo que é a base de tudo: cada um deles em sua individualidade. Cada um dos irmãos é responsável por aquilo que é a Ordem hoje, inclusive, no uso do dinheiro. É possível alegrar-nos ao sermos recordados disto, pois são muitos os sinais proféticos já firmados no uso do dinheiro entre os Frades Menores, motivados pelo constante desejo de conversão já assumido pela grande maioria dos seus membros ativos.
Se, por outro lado, ainda fosse possível encontrar alguma dificuldade quanto ao uso do dinheiro na Ordem, – como a apropriação, a falta de confiança mútua que impede o pôr em comum, os dolorosos desvios, a falta de fidelidade carismática que leva ao uso do dinheiro para manter caprichos pessoais em detrimento da atenção para com os pobres, opondo-se ao ser pobre, inclusive em espírito – cada um de nós já não pode mais imaginar-se distante e irresponsável por isto, acusando uma instituição por tais escândalos que têm a sua origem em cada omissão pessoal.
Os possíveis escândalos na Ordem não podem ser considerados maiores ou menores, mensurados pelo valor financeiro envolvido. Existe, sim, um único escândalo que é o de apropriar-se indevidamente daquilo que é dos irmãos e que deve estar a serviço do carisma e da missão. O apropriar-se semeia em nossas Fraternidades a discórdia, a desconfiança, o falar calunioso e leva os irmãos a darem o último suspiro de vida desamparados das mãos dos demais irmãos, que foram levados a isentar-se da responsabilidade mútua, ferida pela onipotência pessoal causada pelo mau uso do dinheiro institucional ou do dinheiro desonestamente considerado pessoal.
Onde está o teu irmão? (Gn 4,9)
Como dito anteriormente, o uso do dinheiro foi-nos inevitável, mas o fato de sermos irmãos é para nós uma escolha livre e pessoal e o caminho para se responder a uma vocação que nos foi dada pelo Senhor. É com eles que antecipo a vivência da Boa Nova e com quem percorro o caminho da Salvação, já que ninguém se salva sozinho. Os irmãos, também no uso do dinheiro, são a instância certa e segura que nos permitem discernir para escolher o caminho que nos leva a chegar juntos até o encontro definitivo com o Pai.
A diversidade de serviço que cada um dos irmãos faz sempre é a riqueza da Fraternidade. Natural que assim seja: “Abel tornou-se pastor de ovelhas e Caim, agricultor” (Gn 4,2). Cada um com sua oferta que ao seu tempo será olhada pelo Senhor. A dificuldade é trazida quando não se sabe alegrar-se com a oferta do irmão, não se sente participante dela ou quando um dos irmãos priva os demais irmãos da oferta que faz a Deus.
O dinheiro que cada um recebe como contrapartida do seu trabalho, aposentadoria ou outras fontes que são o fruto visível do seu sacrifício, é sempre da Fraternidade, pois é a partir dela que se realiza o trabalho e é nela que se adquirem as energias para realizá-lo. A Fraternidade é, deste modo, quem assegura a fidelidade carismática a fim de que o fruto do suor e do trabalho dos irmãos seja oferta justa a Deus para que este a faça frutificar como sementes do Reino.
Quando, entre nós, não colocamos em comum aquilo que recebemos, criam-se certos ruídos e desconfianças. Facilmente, poderemos até nos reunir em orações, refeições, mas estas sempre estarão marcadas pela ausência de uma disponibilidade interior para entregar-se por completo “aos irmãos que o Senhor me deu” (Test 14). Quando nos privamos de colocar nas mãos da Fraternidade o dinheiro recebido, acabamos chagando-as com a desconfiança, distanciando-nos daquilo que prometemos com todas as nossas forças no dia da Profissão, acabando por não ter mais os irmãos como dons dados pelo Senhor. Assim, pode-se crer que se Abel e Caim tivessem oferecido juntos os frutos colhidos, a conversão dos irmãos teria acontecido antes do crime.
Colocado o dinheiro nas mãos da Fraternidade, esta torna-se o local do discernimento sinodal de como melhor destiná-lo, recordando sempre que já foi ofertado a Deus com quem se quer aprender a bem destiná-lo.
O caixa comum e o discernimento fraterno no uso do dinheiro passam a ser a solução para a grande maioria dos problemas. E, quem sabe, a solução dos nossos problemas em relação a Deus, pois, na confiança praticada com os irmãos, aprendemos a criar a fundamental, necessária e decisiva confiança em Deus.
Relação com Deus
Os danos causados pelo mau uso do dinheiro nas relações entre os irmãos são os mais facilmente constatados, falados, criticados e denunciados. Pouco, todavia, se faz referência aos danos causados por este tipo de uso na relação com Deus. Aqui estamos diante do ponto central e decisivo quanto ao uso do dinheiro. Quanto mais usado a partir de critérios pessoais e subjetivos sem ser levado ao discernimento da Fraternidade, além de expressar a desconfiança nos irmãos, coloca-nos a serviço do próprio dinheiro, enfraquecendo a confiança em Deus.
Vivermos presos ao dinheiro impede-nos de ter um coração humilde e livre que saiba acolher a condição de criatura limitada e pecadora que viva de modo não egoísta nem possessivo os laços e os afetos, capaz de vencer a tentação de onipotência que cria em nós a ilusão de ser imortal, incapazes de confiar em Deus e deixar que Ele deposite em nós a sua confiança. A liberdade em relação ao dinheiro permite superar a impressão de que bastaria mais dinheiro para comprar os dias desejados de vida nesta terra e, ainda, que não posso confiar nos meus irmãos no dia do meu sepultamento, dia este para ao qual reservo uma expressiva quantidade de dinheiro que me assegure condições “dignas e justas” às honras às quais me elevei.
Nós acreditamos em um Deus que é relação, comunhão. Deus não vive fechado em si mesmo, reservando para si aquilo que Ele tem. Ele é relação e tem um povo: “Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó” (Ex 3,6). Acreditamos num Deus que é sensível, que sofre com quem sofre. A ideia de um Deus distante, insensível, que reserva para si toda a sua onipotência, contamina a sensibilidade relacional e nunca nos provocará a termos a sensibilidade e disponibilidade do bom samaritano. Pelo contrário, poder-se-á, inclusive, ser levado a defender um deus onipotente que me dê a impressão de também eu ser onipotente, portador de uma sensibilidade possessiva, egoísta, concentrada sobre meus próprios méritos e fadigas, não reconhecendo a gratuidade do amor e nem me tornando capaz de doar-me com tudo aquilo que sou e tenho.
Estamos diante de um desafiante trabalho de formação permanente. Formarmos nossa sensibilidade para a confiança em Deus e nos irmãos, expressas também no uso do dinheiro. Deixarmos de lado a ditadura que nos é imposta pelos nossos sentimentos e deixarmo-nos novamente atrair pelo chamado vocacional que nos foi dirigido um dia expressando nossa resposta também por meio de uma nova economia do uso do dinheiro: a verdadeira, a bela e a boa economia que nos conduz a Deus, por meio dos irmãos.
Frei Robson Luiz Scudela
Definidor Provincial
Capítulo V
O modo de trabalhar
Para celebrar os 800 anos da Regra Bulada, apresentamos neste mês de maio que, por coincidência, inicia-se com o Dia do Trabalho ou do Trabalhador, o capítulo V da Regra escrita por Frei Francisco de Assis e confirmada pelo Papa Honório III, com a Bula Solet Annure, de 29 de novembro de 1223. No início desta reflexão sobre o trabalho, encontram-se algumas passagens alicerçadas nas Sagradas Escrituras e temas como: o trabalho como graça; ressignificar a graça do trabalho; trabalhar fiel e devotamente e a nossa sustentabilidade no espírito de pobreza.
O trabalho é graça
Há duas citações no Livro do Gênesis que ajudam a refletir sobre o trabalho e suas dimensões. Em Gênesis 2,15 lemos: “Tomou, pois, o Senhor Deus ao homem e o colocou no Jardim do Éden para o cultivar e o guardar”. Nesta passagem, o ser humano ainda não pecou, mas já recebeu a graça de cultivar e guardar o Jardim como herança.
Em Gênesis 3,19, aparece a seguinte frase após o pecado: “No suor do rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, pois dela foste tomado; porque tu és pó e ao pó tornarás”. Alguns estudiosos interpretam essas passagens como se o trabalho fosse consequência do pecado (castigo), outros como uma missão dada ao ser humano por Deus (cultivar).
No Novo Testamento, Cristo é operário do Pai, o trabalhador do Reino, o missionário da vida. No Evangelho segundo João 5, 1-17, Jesus ao ser interrogado porque fazia certas coisas no sábado (curar o paralítico), respondeu: “Meu Pai trabalha até agora, e eu trabalho também”.
Nos relatos dos Atos dos Apóstolos (18,3), Paulo também pregou o Evangelho e falou da necessidade de trabalhar com as próprias mãos. Em Corinto, na casa de Áquila e Priscila, ele voltou ao seu antigo trabalho de fabricante de tendas. Em 1Cor 9,18 e 1Cor 9,14, o Apóstolo renuncia ao direito que o Evangelho lhe dá de ser sustentado por ser pregador.
Inspirado por Cristo e pelos Apóstolos, Frei Francisco de Assis reafirmou o trabalho como graça na sua Regra de Vida. Ele, um homem medieval, filho de comerciante, sabia o que era trabalhar. Além do trabalho no negócio do pai, pôde acompanhar o crescimento e o desenvolvimento da cidade de Assis, bem como o novo conceito de trabalho, com o desenvolvimento político, econômico e cultural de sua época.
Quando Francisco iniciou o seu processo de discernimento, reconstruiu algumas igrejas com as próprias mãos. Com a chegada dos primeiros companheiros, eles se põem a trabalhar nas lavouras e nas colheitas com os camponeses, muitas vezes sem receber salário. Não sendo pagos, os frades pediam esmola e, quando a recebiam colocavam tudo em comum.
Na Regra não Bulada e no Testamento, Frei Francisco deixou uma grande herança aos frades, o trabalho como fundamento da vida Evangélica. A herança deixada pelo Pobre de Assis evoca nos frades a busca do justo equilíbrio entre a oração e devoção, a formação intelectual, a vida de simplicidade e o trabalho manual.
O trabalho, dentro da visão franciscana, é definido como graça, pois o ser humano e as suas atividades são vistos desde a suas origens como “dom gratuito de Deus”. Nesta perspectiva, o trabalho é visto como “ação de graças”. Frei Francisco de Assis e seu movimento entenderam em seu tempo que o único “capital” que pode frutificar é o ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus. Frei Francisco contrapõe o “produtivismo” e as suas seguranças, apontando o mundo como “a mesa do Senhor”, onde a fraternidade franciscana não concentra a sua força em direitos ou lucros, mas na esmola e na partilha (Cf. Dicionário Franciscano, 748).
Ressignificar a graça do trabalho
No itinerário formativo dos Frades Menores, por exemplo, em todas as etapas, os jovens se envolvem de maneira responsável e progressiva no trabalho, tão necessário para toda sua vida, e como diz um caro confrade: “vai para o campo” testemunhar. Deste ponto de vista, não faltam entre os frades testemunho. Quem não se lembra ou conviveu com bons frades, que sem dizer muitas palavras, motivava o trabalho pelo seu exemplo. Bons religiosos: marceneiros, padeiros, sapateiros, artistas, professores, formadores, missionários, etc. O que mantinha nesses homens a disposição para o serviço?
Não precisamos ficar presos ao passado. O que motiva o Frade Menor a trabalhar hoje? O tempo em que vivemos, com suas rápidas transformações, exige do franciscano uma sólida formação com fundamentos claros, sem prepará-lo para uma única profissão. O sujeito deve transitar por diversas áreas do conhecimento. Fica cada vez mais claro que os estudos filosóficos e teológicos não são suficientes para enfrentar os desafios da primeira transferência após a formação acadêmica.
Neste ponto, surge uma pergunta que pode ajudar a refletir: o que significa redefinir a graça do trabalho hoje?
Com a diminuição e o envelhecimento dos religiosos e o possível aumento das atividades, os frades não estão trabalhando muito? Ou talvez, por certas comodidades e garantias, ou por perca do entusiasmo religioso, não se trabalha pouco com horário marcado e dias da semana estabelecidos?
Cada um pode examinar a sua consciência e o seu projeto de vida, porque aqui, mais que uma resposta de como ressignificar o trabalho, a questão agora é a fé do sujeito e a sua identidade religiosa.
Para os Frades Menores, o trabalho é uma graça que enobrece a vida e a torna fecunda. O trabalho, qual seja, intelectual ou acadêmico, religioso e pastoral, manual e doméstico, formativo e educacional, é um ato sagrado e diz a quem o franciscano pertence. O Frade Menor, que vive o trabalho como graça, compreenderá ao longo da vida que a sua ação é digna e ajuda na edificação do Reino de Deus.
Trabalhar fiel e devotamente
Lendo o capítulo V da Regra Bulada, pode-se concluir que o objetivo do trabalho é duplo: manter os frades longe da ociosidade, a qual é a verdadeira inimiga do homem e da alma, e não perder o espírito de oração e devoção. A força do trabalho, vivida como graça, combate a perversão, a murmuração, o espírito de ganância e acumulação, o desejo de exploração do ambiente e dos outros.
Existem vários versículos no Livro dos Provérbios que descrevem o ser humano que parece não entender o trabalho e suas dimensões: “O preguiçoso ambiciona e nada alcança, mas os desejos daquele que se empenha na obra serão plenamente satisfeitos” (Pr. 13,4); “O preguiçoso não ara a terra devido ao clima frio; no entanto, na época da colheita procura por frutos, mas nada encontra” (Pr. 20,4); “O preguiçoso é aquele que morre ‘desejando’, mas nunca põe de fato as mãos no trabalho!” (Pr. 21,25).
Frei Francisco chama o frade que não quer trabalhar de “irmão mosca”. Aquele que vive à toa, sem abraçar o projeto de vida da Fraternidade. São Paulo é claro e direto: “Quando ainda estávamos convosco, vos ordenamos isto: se alguém não quiser trabalhar, também não coma” (2Tes. 3,10).
Na Regra Bulada, Frei Francisco também expressa o espírito com que se deve trabalhar: “Aqueles irmãos aos quais o Senhor concedeu a graça de trabalhar, que trabalhem com fidelidade e devoção, para que, tendo banido o ócio, inimigo da alma, não extingam o espírito de santa oração e devoção ao qual todas as outras coisas temporais devem servir” (RB,5). Neste ponto não há dúvida de que as características franciscanas do trabalho são a “fidelidade” e a “devoção”.
O trabalho fiel pode ser compreendido como realização, ser constante, dedicado, vigoroso a cada dia. Trabalhar fielmente não é somente fazer bem feito. Trabalhar fielmente significa fazê-lo com fé, no caso dos franciscanos, reconhecendo sua identidade e missão e direcionando seus esforços no trabalho pelo Reino.
A devoção é a dedicação, cuidado e estima pelo considerado mais importante. Na tradição cristã, a devotio ad Deum é um trabalho permanente, é todo esforço e reconhecimento da centralidade que Deus deve ocupar na vida de quem crê. No caso dos religiosos, a devotio é também permitir que Deus trabalhe na vida, ou seja, trabalhar com ele, na Fraternidade, na Ordem, na Igreja e no mundo.
Talvez valha a pena notar que a devoção é a Deus, e não a si mesmo. O trabalho em alguns casos pode se tornar quase uma idolatria, vaidade das vaidades, uma eficiência superficial como uma primeira demão de verniz que, até brilha, mas por pouco tempo.
O trabalho com devoção é o trabalho na gratuidade pelo Reino. Quando um religioso faz algo para alguém (trabalho), muitas vezes ele se surpreende com o brilho nos olhos, com um muito obrigado, com um abraço, ou com um Deus te abençoe, esses gestos valem mais, muito mais, do que o dinheiro que se tem e que, também é necessário para o sustento.
A nossa sustentabilidade no espírito da pobreza
Para Frei Francisco de Assis, o dinheiro não determina nem condiciona o trabalho. No capítulo V da Regra, ele escreveu: “Quanto à paga do trabalho, recebam o que for necessário ao corpo, para si e seus irmãos, exceto dinheiro de qualquer espécie; e isto realizem com humildade, como convém aos servos de Deus e seguidores da mais santa pobreza”.
Não tem como refletir as palavras de Frei Francisco neste capítulo da Regra sem uma referência com o capítulo anterior, com o título: “Que os irmãos não recebam dinheiro”. No período pós-conciliar, no trabalho de “retorno a fontes” do carisma originário, chegou-se à conclusão de que os pobres e os trabalhadores usavam o dinheiro e que assim funcionava o mundo. Os frades decidiram usar o dinheiro e receber o que fosse necessário para o seu sustento e sua missão evangelizadora.
O trabalho deste período pós-conciliar, com a criação dos serviços de ecônomo geral, provincial e das Fraternidades, visava uma maior transparência econômica e um projeto fraterno, também no modo de trabalhar, no uso e na administração dos bens.
Quase 60 anos após do início dos trabalhos pós-conciliares de renovação da Ordem dos Frades Menores, não se pode deixar de fazer um exame de consciência e avaliar se a maneira de trabalhar do Frade Menor é um eficaz testemunho evangelizador, que passa pela dimensão pessoal e chega à dimensão fraterna. É difícil refletir sobre o trabalho e a vida de pobreza sem cair no moralismo. Entretanto, o modelo ideal de trabalho e de vida de pobreza para os Frades Menores é sempre Cristo, sua Mãe e seus discípulos, Frei Francisco e Irmã Clara de Assis.
No cenário de renovação conciliar, a vida de trabalho e o uso do dinheiro foram pensados para o Frade Menor ser coerente com a sua própria Forma de Vida. Antes desse período, os franciscanos não eram administradores e as propriedades que usavam pertenciam à Santa Sé. As relações com o mundo do trabalho também eram outras. Os franciscanos trabalham muito, não há dúvida, contudo, quando não se abraça um projeto de Igreja, de Ordem, de Província e de Fraternidade, mais cedo ou mais tarde, os bens e o trabalho se perdem pelo caminho, e as dívidas e o falimento aparecem.
O fato é que todos os Frades Menores são administradores, cada um a seu modo, da atividade que desenvolve. Trabalhar e administrar o seu tempo com Deus, trabalhar e administrar os afazeres do dia. Frei Francisco recorda que a força e o discernimento para a vida de trabalho vêm da busca constante do espírito de oração e devoção.
A sustentabilidade do Frade Menor no espírito de pobreza não consiste num “reinventar da roda”, mas em viver o que está contido no Evangelho e na Regra. Assumir um projeto fraterno de vida e missão, trabalhar com fidelidade e devoção, administrando suas necessidades e usando o dinheiro com responsabilidade, colocando em comum com generosidade o que se recebe. Se o frade trabalha diretamente com a administração, deve ter consciência que os bens não são seus, e sim da Fraternidade. Se administra a economia, ela deve ser transparente, verdadeira e confiável. Assim, se sabe de onde vem o que se tem e para onde vai o que se recebeu. Em um ambiente saudável, a prestação de contas é um instrumento fraterno de cuidado e não de controle e opressão.
Portanto, o modo franciscano de trabalhar não será um problema de identidade e nem de fé. A generosidade e a partilha fraterna fazem com que o Frade Menor reconheça, ame e escolha sempre a Senhora Pobreza, mulher evangélica, elegante e perfumada, que instiga o desejo de não trocar o Eterno por coisas passam.
Para comemorar os 800 anos da Regra Bulada, recorre-se as palavras de Frei Francisco, que reafirma a necessidade de um trabalho honesto e justo, sem se escravizar, esconder-se, ou ainda, sem sequer fazer do trabalho um instrumento de poder e opressão, lucro e acúmulo.
O trabalho faz parte constituinte do carisma franciscano, é ação de graças, é restituição, é dom oferecido por Deus e para Deus, é dedicação, seja com as próprias mãos ou pelo intelecto. O trabalho é suor, é alegria, é realização. Tomás de Celano na Primeira Vida de São Francisco (1Cel 103), nos apresenta a convocação do Pobre de Assis que ainda diz muito em os nossos dias: “Comecemos, irmãos, pois até agora pouco ou nada fizemos”, resta aos Frades Menores, continuarem seu trabalho, na fidelidade e devoção, na minoridade e simplicidade. Bom trabalho!
Frei Gilberto da Silva
Professor e vice-mestre da Teologia
Fontes:
Dicionário Franciscanos. Petrópolis: CEFEPAL-Vozes, 1993.
Cacciotti Alvaro – Melli Maria. La grazia del lavoro. Milano: Biblioteca di Frate Francesco, 2010.
La grazia di Lavorare. Lavoro, Vita consacrata, francescanesimo. Org. Paolo Martinelli – Mary Merlone. Bologna: EDB, 2015.
Fontes Franciscanas e Clarianas, Petrópolis: Vozes – FFB, 2004.
Capítulo VI
Sobre a não apropriação, a esmola e o cuidado com os enfermos
Não basta apenas uma dimensão celebrativa jubilar da Regra Bulada, mas sim a convicção de que Regra é Vida, é inspiração teológica, é opção de um modo de vida bem determinado, uma Forma de Vida com fundamentações ascético-místicas que justificam o valor de uma escolha pessoal e a força de uma instituição. Para o mundo franciscano, a Regra não é apenas um texto jurídico, mas o alicerce que sustenta a reconstrução da casa através dos séculos, a vida comum e a plenitude de espírito.
O Capítulo VI tem provocações como as que elencamos aqui: “Os irmãos não se apropriem de nada, nem de casa, nem de lugar, nem de coisa alguma” (Rb 6,2). Abraçar a vida franciscana é entender a Pobreza como ter tudo em comum; a Pobreza é o grande voto da Fraternidade, isto é, não se tem nada para ter a força de tudo e de muitos, e o que é meu pertence a todos e o que é de todos me abraça e envolve no dia a dia da Vida e Missão. Somos uma família em espírito e o espírito em comum coloca em fraternidade desejos e necessidades, recursos materiais e caminhos da obediência, como centro da fidelidade. Livre do apego às posses, tenho apenas a herança do Reino: o cêntuplo prometido. A apropriação de bens pode distrair e desviar o foco da escolha e ser um empecilho na caminhada. Se queremos subir o patamar de nossa vida não é acumulando; para subir uma montanha não dá para levar muito peso.
“E como peregrinos e forasteiros neste mundo, servindo ao Senhor em pobreza e humildade” (Rb 3). A Regra é um caminho de ajustamento da vida pessoal e inspiracional, a força fraterna institucional. Não é uma doutrina, mas um caminho a ser percorrido. Seguimento se faz na estrada e nas pegadas de Jesus e no refazer a estrada dos Apóstolos. A vida franciscana está no mundo mais do que nos conventos. Para estar no mundo não dá para levar o peso das coisas, mas sim a despojada pobreza do Evangelho e a humildade-simplicidade no modo de ser, ter e estar. Do versículo 3 aos versículos seguintes, o capítulo VI é um programa de vida onde o seguir o Senhor e estar com os irmãos, é viver em pobreza e humildade, contentando-se com o estritamente necessário entre os pobres do mundo.
“Peçam esmola com confiança, e não devem envergonhar-se, porque o Senhor se fez pobre por nós neste mundo” (Rb 6, 4). O que é esmola? Pode ser ostentação de quem tem e pode, mas pode ser a generosidade de quem divide o muito ou o pouco e não pede para si. Para a Forma de Vida Franciscana pedir esmola sem envergonhar-se é um meio de subsistência e de sustentação. Em 1Cel 42, 4 temos o relato: “Conviviam no mesmo lugar com o bem-aventurado pai todos os filhos e irmãos, em muito trabalho e em escassez de tudo, muitas vezes privados do conforto do pão, contentes unicamente com os rábanos que, na angústia, mendigavam aqui e ali pela planície de Assis. (…) Não ressoa por estas coisas nenhuma murmuração, nenhuma queixa, mas de coração tranquilo, com o espírito cheio de alegria, conservavam a paciência”. Este trecho da Regra lembra o Servo de Javé ( cf. Is 50,7) que se despoja de toda glória e não se envergonhou de ser pobre.” Ele, subsistindo na condição de Deus, não pretendeu reter para si ser igual a Deus. Mas aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo, tornando-se solidário com os homens. E, apresentando-se como simples homem, humilhou-se, feito obediente até a morte da cruz” (Fil 2, 6-8). “E no início, exercitando-se a si mesmo e poupando a vergonha dos irmãos, por vezes ele saia sozinho para pedir esmola” ( 2Cel 74,1). A esmola é priorizar o outro(a), priorizar a fraternidade, priorizar o pobre.
“Esta é aquela sublimidade da altíssima pobreza que vos constituiu, meus irmãos caríssimos, herdeiros e reis do reino dos céus, vos fez pobres de coisas e vos elevou de virtudes. Seja esta a vossa porção que conduz à terra dos vivos. Aderindo totalmente a ela, irmãos diletíssimos, nenhuma outra coisa jamais queirais ter debaixo do céu em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo” (Rb5-7). Esta é uma citação de Lc 9,58: “As raposas têm suas tocas e as aves do céu ninhos. O Filho do Homem não tem nem onde reclinar a cabeça”. A Forma de Vida baseia-se no mesmo modo que viveu Jesus, Maria e os Apóstolos. A Pobreza como partilha de bens rompe as amarras que prendem ao sistema montado sobre a valorização do econômico-financeiro. A liberação do excesso de preocupação com a sustentação material é um primeiro passo para a liberdade dos que estão comprometidos com o reino de Deus. Pode ser extremamente exigente, mas não é o mais difícil. A sublimidade da altíssima Pobreza é o espelho da conversão: a mudança de lugar. O lugar do ter para o lugar do conviver. É o projeto do Reino: a transformação do humano, das estruturas e do mundo.
“E onde estão e onde quer que se encontrarem os irmãos, mostrem-se mutuamente familiares entre si. E com confiança um manifeste ao outro a sua necessidade, porque, se a mãe nutre e ama seu filho carnal, quanto mais diligentemente não deve cada um amar e nutrir seu irmão espiritual?” (Rb 8-9).Os irmãos se formam e se definem por suas relações qualificadas. Na Vida Fraterna podemos viver a qualidade de nossas relações que são sempre uma revelação. Francisco nos revela que irmão é mãe, é fonte de afeto e amoroso cuidado. Uma Fraternidade deve sempre ser um lugar nutriente das melhores energias; a Fraternidade ajuda a abrir mão de interesses puramente egoístas. Uma coisa é viver e estar junto no mesmo espaço, outra coisa é estar num grupo que tem uma consanguinidade espiritual, faz correr nas veias um objetivo comum. Mesmo vivendo dentro de uma estrutura ou de uma instituição, sempre devemos assumir a corresponsabilidade da causa pessoal filtrada pela causa de todos. A Fraternidade é o lugar do Projeto de Vida e Missão, pessoal e comunitária. Temos um sangue espiritual que é a força e a essência, o fundamento da vida que escolhemos para viver.
“E se algum deles cair enfermo os outros irmãos devem servi-lo como gostariam de ser servidos” (Rb 10). Para São Francisco, o irmão enfermo é o privilegiado da Fraternidade. Todos nós somos terapeutas uns dos outros. Terapeuta é aquele que procura levar alguém a um estado crônico do sadio, é aquele que melhora, qualifica, cura e reconstrói o irmão reconstruindo assim a Fraternidade. Abraçamos o Evangelho e o Evangelho é a Boa Nova como atividade salvífica, isto é, o sadio da existência. A estrutura básica do ser humano é o afeto. No versículo anterior, quando Francisco pede que sejamos mães, é para recordar que no franciscanismo unem-se afetividade e espiritualidade. Saúde e santidade não se separam. É sempre uma nova sensibilidade num mundo que valoriza sempre os valores materiais. Nós estudamos o ser humano a partir de suas doenças quando podíamos conhecê-lo mais a partir da sua realização, da sua vocação. Quem assumiu na origem o mundo dos leprosos nos evoca assumir todas as síndromes e fragilidades de hoje. A virtude da cortesia, tão própria do ser franciscano, é cuidar do outro e fazer vibrar sempre a nossa vida em sintonia com o outro. Tudo isto nos inspira a nossa Regra e Vida! Paz e Bem!
Frei Vitorio Mazzuco Filho
Capítulo VII
Da penitência que se deve impor aso irmãos que pecam
Se alguns dos irmãos, por instigação do inimigo pecarem mortalmente – no caso daqueles pecados sobre os quais fora estabelecido entre os irmãos que se recorra somente aos ministros provinciais -, sejam obrigados os referidos irmãos a recorrer a eles o mais depressa que puderem sem demora. Os ministros, no entanto, se são presbíteros, com misericórdia lhes imponham a penitência; se, porém, não são presbíteros, façam com que lhes seja imposta por outros sacerdotes da Ordem, como lhes parecer melhor segundo Deus. E devem acautelar-se para não se irar ou se perturbar por causa do pecado de alguém, porque a ira e a perturbação impedem a caridade em si e nos outros.
Fraternidade que perdoa
O capítulo sexto, em seu último verso nos exorta: se algum dos irmãos cair doente, os outros irmãos o devem servir, como gostariam de ser servidos. Orienta o modo de como tratar o irmão enfermo. Aqui, no sétimo Capítulo, apresentados “os irmãos que pecam” e de como o irmão com esta enfermidade deverá ser assistido pela fraternidade.
Francisco apresenta que, no tratamento dos pecadores, é necessária uma atitude de humildade. Quem vai em direção ao irmão doente pelo pecado deverá ter a atitude do Bom Pastor. Ir em direção ao irmão afastado e exortá-lo à penitência com toda caridade fraterna. A obrigatoriedade deste amor misericordioso não deverá se restringir aos guardiães, mas constitui um dever individual de cada irmão. Fundamental também será a atitude do frade que pecou, e se põe de novo no caminho da virtude, ou permanece obstinado em seu pecado. O modo indulgente e caridoso de tratar o confrade, poderá levá-lo a mais facilmente cair em si. Sabendo, cada frade, que a consciência de seus próprios limites e fragilidades, acertará a maneira mais adequada de tratar o irmão que caiu em pecado. A consciência de seu próprio pecado e o próprio autoperdão colaborará com a capacidade de perdoar os outros. A falta de perdão sequestra a nossa paz.
Na Admoestação 11, o Seráfico Pai diz:
Ao servo de Deus nada deve desagradar senão o pecado. Mas se uma pessoa pecasse de qualquer forma que seja, e o servo de Deus ficasse por isso perturbado e enraivecido – a não ser por caridade – “entesouraria riquezas de culpa para si. Vive realmente sem nada de próprio aquele servo de Deus que não se enraivece nem perturba por causa de ninguém. E bem-aventurado aquele que nada retém para si, mas “ dá a César o que de César, e a Deus o que é de Deus” (Mt 22,21).
Para Francisco é um ato de posse a indignação contra o pecado do irmão, “o que importa é a caridade. Ira, irritação, conturbação, são na verdade, decorrência da atitude de quem julga, de quem se considera, mais e melhor que os outros, ou, simplesmente, são decorrentes da atitude de quem não se aceita e projeta-se nos outros. A irritação, em relação aos outros, pode ser ainda um modo de desviar a atenção sobre si mesmo, ‘lugar’ onde, de fato, pode haver problema.”1
O único sentimento que o pecado de alguém deve provocar em nós é o da caridade fraterna. A caridade fraterna se torna realidade naquele que sendo pobre, nada reserva para si e dá a Deus o que é de Deus2
Na Carta a um ministro (9-11), São Francisco reproduz em sua linguagem a misericórdia do Evangelho. (Mt 18,21ss):
“E nisto quero conhecer se tu amas ao Senhor e a mim, servo seu e teu. Se fizeres isto, a saber: que não haja nenhum frade no mundo, que tenha pecado tanto quanto puder pecar, que, depois que tiver visto teus olhos, nunca se retire sem a tua misericórdia, se buscar misericórdia. E se não buscar misericórdia, que tu lhe perguntes se quer misericórdia. E se depois pecasse mil vezes diante de teus olhos, ama-o mais do que a mim, para isto, para que o atraias ao Senhor; e que sempre tenhas misericórdia de tais irmãos.”3
O amor a Nosso Senhor fará tudo para reconduzir o Irmão a Ele. Nos é ainda hoje atual o apelo do Papa Francisco, que fez em 4 de agosto de 2016 na Porciúncula. “O perdão de que São Francisco se fez canal na Porciúncula e continua ainda a ‘gerar paraíso’ depois de oito séculos. Hoje torna-se ainda mais evidente como a estrada do perdão pode, verdadeiramente, renovar a Igreja e o mundo. Oferecer o testemunho da misericórdia, no mundo atual, é uma tarefa a que nenhum de nós pode subtrair-se”. O mundo tem necessidade de perdão; demasiadas pessoas vivem fechadas no rancor e incubam ódio, porque incapazes de perdão, arruinando a vida própria e a dos outros, em vez de encontrar a alegria da serenidade e da paz.
O Pecado que fere a todos e a ação do Ministro
Neste capítulo da Regra também está presente a situação de “que o pecado de um irmão atinge a totalidade da fraternidade”. Não atinge somente as relações entre Deus e o pecador. O Frade Menor é membro da Igreja e da Ordem. Ora, a realidade do pecado de um de seus membros não é indiferente para estas duas Comunidades. Quando o indivíduo cresce na graça, cresce também o estado de graça para toda a comunidade. O processo inverso também é realidade, o pecado de um membro é danoso para toda coletividade.
A Regra de nossa Ordem prescreve que para a absolvição de certos pecados, o frade deverá recorrer ao Ministro provincial. Quando for delito contra a perfeição religiosa da comunidade, o pecado deve ser sanado perante o Ministro provincial, porque este é o representante da Igreja e da Ordem. Embora já não existam, atualmente pecado de absolvição reservado na Ordem, não devemos contudo, perder de vista que todo pecado atinge gravemente a comunidade. Por isso podemos dizer que vivemos hoje um momento da graça. A Igreja e Ordem sofrem. Quanto sofrimento e humilhação nos fizeram e nos fazem sofrer: apropriação indevida dos bens que pertencem à comunidade, uso do “status religioso” como fonte de um poder dominador e o pior: “Os crimes de abuso sexual ofendem Nosso Senhor, causam danos físicos, psicológicos e espirituais às vítimas e lesam a comunidade dos fiéis”4. Aqui, sobremaneira, devemos ter presente toda atual situação de cuidado da Igreja e da Ordem na tutela dos menores e do uso dos bens. A atitude de infidelidade de seus membros atinge a totalidade da Igreja. Nos diz o Papa Francisco: “Para que tais fenômenos, em todas as suas formas, não aconteçam mais, é necessária uma conversão contínua e profunda dos corações, atestada por ações concretas e eficazes que envolvam a todos na Igreja, de modo que a santidade pessoal e o empenho moral possam concorrer para fomentar a plena credibilidade do anúncio evangélico e a eficácia da missão da Igreja”5. Antes de concluir quero aqui deixar meu louvor à decisão provincial da criação da Comissão Interdisciplinar sobre Abusos Sexuais e cuidados com a Vida Fraterna. Espaço de formação, cuidado, ajuda e correção. Instrumento auxiliar para que o Ministro provincial, em nome da Fraternidade, possa exercer o ministério que este capítulo da Regra lhe reservou.
Frei Alexandre Magno Cordeiro da Silva
1 Fr. Walter de Carvalho, em Vida FRanciscana – A Regra para os frades de Hoje, Vida Franciscana,
dezembro 2014, pp139-152. Artigo bastante oportuno para a atualização da Regra.
2 Caetano Esser, pag 184, Diretório da Regra de São Francisco, 1958
3 Carta a um Ministro 9-11
4 Vos estis lux mundi
5 Vos estis lux mundi
Capítulo VIII
A eleição do Ministro geral desta fraternidade e o Capítulo de Pentecostes
A importância dos Capítulos e do serviço dos ministros na ressignificação do diálogo com realidade atual
O Capítulo VIII da Regra Bulada nos fala da eleição do Ministro geral e do Capítulo Geral. Entretanto, ao falar destes dois temas é possível perceber que ele aborda muito mais do que um aspecto jurídico, fazendo parte constituinte do próprio carisma franciscano na medida em que emergem ou são resultado de um aspecto importante da espiritualidade franciscana: a vida fraterna.
Neste tempo em que somos convidados a celebrar os 800 anos da Regra Bulada, somos também chamados a refletir sobre a sua importância como memorial capaz de nos recordar, sempre de novo, os desafios do ideal de vida franciscana. O capítulo VIII da Regra, muitas vezes, pode ser visto como algo apenas organizativo, entretanto, ele é bem mais que isso, pois nos recorda a maneira como devem ser as relações entre confrades que professam um mesmo ideal. Reunidos e irmanados em torno de um mesmo ideal de vida, aqueles que receberam o nome de Irmãos Menores são convocados pelo próprio fundador e pela força de sua Regra de vida, a elegerem aqueles que devem recordar a todos o ideal professado.
É importante notar que São Francisco escolhe os termos de referência àqueles que são colocados à frente da Fraternidade em todos os níveis: ministro, custódio e guardião, estabelecendo uma relação de cuidado fraterno entre eles e os demais frades, pois já não são pais ou superiores: são irmãos. Isso muda a concepção de que o superior é aquele que é responsável por, simplesmente, conduzir o rebanho a ele confiado, direcionando bem de perto o filho ou súdito que não tem capacidade para discernir o caminho a seguir. Ele é um irmão entre irmãos que professam um ideal de vida baseado na fraternidade.
A vida fraterna e sua influência nos Capítulos franciscanos
A ideia de Capítulo, como assembleia de religiosos e consagrados, não era uma novidade na época de São Francisco. A estrutura capitular já existia como expressão de uma assembleia comunitária entre os monges, onde se abordava as questões ligadas à forma de vida professada pelos religiosos, bem como temas pertinentes ao bom andamento da instituição. São Francisco e os primeiros frades adotam o termo já tradicional para designar as suas assembleias. Esses capítulos, desde o início, tinham a função de recordar aos frades o ideal e ajudá-los a permanecer fiéis ao espírito das origens da Ordem, mas também organizar os aspectos mais funcionais. Trata-se um “desenvolvimento natural” do modo de vida proposto por São Francisco, baseado na vida fraterna. Sendo, portanto, um momento onde essa mesma vida fraterna se concretiza.
Os Capítulos, como desenvolvimento natural do carisma franciscano baseado fortemente na vida fraterna, começam a se estruturar à medida em que a Ordem cresce numericamente e se expande geograficamente. Isso faz com que surja também a necessidade de normas que regulem e fixem locais e datas mais precisos para o encontro dos frades. Já em 1212 é possível perceber que São Francisco pedia que o Capítulo fosse celebrado duas vezes ao ano, na Solenidade de Pentecostes e na Festa de São Miguel (cf. LTC 57). Há um outro testemunho, de 1216, que apresenta a maneira como os frades se reuniam periodicamente em Capítulo, descrevendo o que faziam nestes encontros: “Reúnem-se uma vez por ano em lugar preestabelecido para se alegrarem no Senhor e comerem juntos bem como com o objetivo de formular leis santas que depois são levadas ao papa para serem aprovadas” (1Vitry).
O aparecimento das províncias
O Capítulo de Pentecostes de 1217, determinou, por causa do aumento do número de frades que a Ordem fosse dividida em províncias. Com isso, surge a figura dos Capítulos Provinciais. Finalmente, com a aprovação da Regra em 1223, consolida-se (em seu capítulo VIII) a celebração de apenas um Capítulo (Geral) por época de Pentecostes. Passa a ser um capítulo de Ministros provinciais e, quando eletivo, também de Custódios que têm como missão vistoriar a qualidade de vida da fraternidade, mas também o de eleger o Ministro geral. Este capítulo passa a ser trienal ou, a critério do Ministro geral, em um espaço de tempo maior ou menor. Durante o Capítulo Geral de 1239 são promulgadas as primeiras Constituições da Ordem. Estas Constituições aumentam a autoridade do Capítulo Geral em relação à do Ministro Geral. Em 1260, as Constituições de Narbona confirmam a periodicidade trienal do Capítulo e admitem outros representantes além dos Ministros provinciais e Custódios.
O Capítulo Provincial ou Custodial é consequência direta da divisão da Ordem em Províncias, ocorrida em 1217. À possibilidade de sua convocação está estabelecida no próprio capítulo 8 da Regra Bulada. A partir do Capítulo Geral e das Constituições de 1239, são transferidas para o Capítulo Provincial a função de eleger os Ministros provinciais, o que vai ser consolidado pelas Constituições de Narbona, em 1260.
Capítulos conventuais ou locais
Sobre o Capítulo Local, nenhuma das duas Regras (não Bulada ou Bulada) lhe fazem referência. Isso acontece porque, apesar da fixação dos frades em Fraternidades, mais ou menos, estáveis, já ter começado por volta de 1217, ela ainda se encontra em sua fase inicial na época em que foram escritas as duas Regras de vida. Entretanto, é possível perceber que essa necessidade vai crescendo à medida em que aumenta o número de frades, o número de províncias e, geograficamente, os frades se espalham para além da Europa (por exemplo a presença no Marrocos e na Síria). Inicialmente, o Capítulo Local estava muito mais ligado às questões relacionadas à vida litúrgica (Eucaristia e Liturgia das Horas), à leitura da Sagrada Escritura e da Regra, à correção fraterna etc. Um pouco mais tarde também se torna um Capítulo de “consulta e de participação” no governo da Fraternidade Local (cf. Ec 9). Certo é que já as Constituições de 1260, passam a legislar sobre o Capítulo Local.
O Capítulo como lugar de encontro e sinodalidade
Ao longo da história franciscana, os capítulos, em seus diversos níveis tiveram sempre uma importância vital no seio da Ordem, como algo que, sempre de novo, tem a capacidade de recordar as origens do carisma. A própria base fraterna deixada por São Francisco para a Ordem, possibilitou que os capítulos evoluíssem como lugar de revisão da caminhada, de encaminhamento dos projetos fraternos e de verificação da fidelidade ao carisma originário. O capítulo também é sinal de algo muito presente dentro do movimento franciscano que é o seu aspecto sinodal, ou seja, irmãos que, unidos em torno a um ideal comum, caminham juntos.
O serviço do ministro dentro da dinâmica capitular da Regra
Os diversos níveis de coordenação dentro da Ordem: ministro geral, provincial, custodial, o guardião e seus respetivos vigários, receberam de Francisco uma denominação que manifesta bem a sua função: “ministros e servos de toda a fraternidade” (cf. RB 8,1). Este termo mostra o sentido da autoridade dentro da Fraternidade franciscana que repousa sobre a palavra e o exemplo do próprio Cristo e nela reside a importância da obediência e do respeito. Por isso, o Ministro geral é o sucessor de São Francisco no serviço a todos os irmãos, cuidando, visitando, corrigindo, apontando aquilo que deve ser feito diante dos desafios do tempo.
À medida em que a Ordem cresceu, surgiu também a necessidade de outros serviços de coordenação: provincial, custódio e guardião. Em um ou outro momento com seus respectivos vigários. Também essa autoridade se baseia no modo da autoridade de Cristo: “… o filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir…” (Mc 10,45). São aqueles que são chamados a exercerem o serviço da misericórdia, mas também os que devem corrigir e encaminhar os irmãos dentro dos limites do espaço que lhes é confiado.
Concluindo…
Levando em consideração esses aspectos é possível perceber que a figura do capítulo dentro da Ordem sofreu mudanças ao longo do tempo, passando a ter uma autoridade não apenas eletiva, mas também de formulação de novas diretrizes e modelos de caminhada, adaptando-se à evolução dos tempos. Entretanto, em meio a essas evoluções e transformações, algo permaneceu inalterado: o Capítulo franciscano deve ser o lugar de escuta, avaliação e correção de rumos. Por isso, ao apresentar o Espírito Santo como Ministro geral da Ordem (cf. 2Cel 193), Francisco, revela esse aspecto dinâmico do carisma, aberto a todos os que, por divina inspiração, se aproximam.
O Capítulo Local ficou, por muito tempo, como se fosse uma peça obsoleta na Ordem ou, algo de menos importância, em muitos lugares. A partir do Concílio Vaticano II e da busca por retornar às origens do carisma franciscano, ele passou a ser visto como lugar de encontro, de formação e de ajuste do caminho. Na busca por uma verdadeira ressignificação da importância dos capítulos e do serviço dos ministros é fundamental vermos nos capítulos, sobretudo, o Capítulo Local, o lugar de tomada de decisões em fraternidade, mas também e, sobretudo, como o espaço privilegiado para o diálogo, o encontro fraterno e a correção de rumos dentro de uma Fraternidade que é dinâmica e deve estar em constante abertura para o encontro.
A Regra Bulada como marco que divide o período de ajustamento da legislação na Ordem dentro de um carisma que surge sob a inspiração de São Francisco e seus primeiros companheiros, que souberam caminhar sob a orientação da Igreja, ajudando na construção do Reino, tem a força de renovar através da vida de oração, da palavra alimentada pelo testemunho de vida, a fidelidade à inspiração inicial, atualizando e ressignificando o modo de ser e estar diante da realidade atual.
Frei José Antonio Dos Santos
Fontes:
Fontes Franciscanas, Vozes,
Petrópolis, 2004.
Dicionário Franciscano, Vozes,
Petrópolis, 1999.
M. Conti, Estudos e pesquisas sobre
o franciscanismo das origens, Vozes, Petrópolis, 2004.
Capítulos IX e XII
Ressignificar o Espírito da Evangelização:
A pregação dos Irmãos e a missão Ad Gentes
“Assim como o Filho foi enviado pelo Pai, todos os irmãos, sob o impulso do Espírito Santo, são enviados a proclamar o Evangelho a todas as criaturas, no mundo inteiro” (CCGG art. 83 §1).
Estas palavras estão no início o Capítulo V das Constituições Gerais, que versa sobre o tema da Evangelização. O texto apresenta, de antemão, que o frade menor é sempre alguém enviado pelo Espírito, assim como o Filho foi enviado pelo Pai, para evangelizar. Tal fundamento confere, ao mesmo tempo, liberdade e coragem, a fim de que cada irmão, onde quer que esteja, se sinta investido da missão de proclamar o Evangelho: toda hora é tempo e todo ambiente é lugar. Parafraseando a fórmula do matrimônio e corroborando a da Profissão, pode-se dizer, sem medo, que o frade menor é, por identidade e vocação, evangelizador-missionário, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, todos os dias de sua vida.
Neste breve artigo, alguns acenos do percurso da vocação franciscana à Evangelização, considerando a gênese do chamamento no coração de São Francisco e as exigências da missão e evangelização da Ordem hoje. As principais referências desta reflexão serão: 1) O subsídio O Reino de Deus está próximo – Orientações para a Evangelização Missionária Franciscana (2020); 2) A Carta Encíclica Fratelli Tutti – Sobre a Fraternidade e a Amizade Social (2020). Ao final, seguem três sugestões de perguntas para reflexão, individual ou em grupo. Quem desejar respondê-las, sinta-se à vontade.
EVENTOS-EIXO DA VOCAÇÃO MISSIONÁRIA DE FRANCISCO
Dentre os muitos encontros vividos na trajetória de São Francisco, três poderiam ser destacados como muito importantes na origem da vocação franciscana. O primeiro deles, inclusive, mencionado pelo próprio Poverello no Testamento (Test 1-3), foi o episódio do beijo no leproso. Pedagogicamente, tal encontro revela que todo evangelizador é, antes e ao mesmo tempo, evangelizado. O primeiro passo da missão não foi converter o leproso, mas ser convertido por ele, encontrando naquele ser humano a face de Deus encarnado e sofredor.
O segundo evento foi a escuta do Crucificado nas ruínas da pequena Capela de São Damião: “Francisco, vai, e reconstrói a minha casa!” A primeira compreensão deste chamado o fez assumir o papel de pedreiro. No entanto, ao amadurecer o próprio discernimento, percebeu que sua missão era ajudar a Igreja a vencer ruína da tentação ao triunfalismo imperial para se tornar de novo a Igreja dos pobres, do povo.
O terceiro encontro destacado é com a Palavra de Deus quando, na Porciúncula, ouve o Evangelho da Festa de São Matias, com o envio missionário dos discípulos (Mc 10 ou Lc 10): “Ide e proclamai que o Reino de Deus está próximo. (…) De graça recebestes, de graça dai. (…) Não vos preocupeis com ouro ou prata”. Assume de cheio o envio para si e para seus irmãos (“É isso que eu quero…”) e, desta maneira, intui um novo estilo de vida religiosa não-monástica, tomando como base os dois verbos fortes deste Evangelho (IR e PROCLAMAR), alcançado a clareza do que o Senhor pedia a ele e a seus frades: evangelizar com a vida e as palavras (RnB 17).
TRÊS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS
Presépio, Cruz e Eucarista. Sobre estes três pilares São Francisco construiu seu caminho para o seguimento de Cristo, trilha percorrida por muitos companheiros e discípulos no decorrer dos séculos:
A humildade da Encarnação – É a experiência de Deus como bondade. Amor difusivo que transborda e abraça o mundo. A missão franciscana deve permitir ao amor transbordar no mundo e levar de novo a Deus todas as realidades. O início, o meio e o fim da missão franciscana é, portanto, o amor.
A caridade da Paixão – Missão franciscana significa amor e compaixão pelo Crucificado. A caridade praticada por São Francisco, além de um gesto altruísta, é uma restituição do dom recebido. A vida de penitência, também hoje, deve ir nesta mesma direção: viver com os pobres, como pobres, assumindo a condição e a causa deles.
Eucaristia – A Eucaristia perpetua a humildade de Deus na encarnação e o Amor da Paixão. Por isso, a missão evangelizadora franciscana é eucarística e não poderá ir adiante sem a Eucaristia, que é dom, memória, presença, fonte e cume de toda evangelização.
O MODO DE IR EM MISSÃO E A PREGAÇÃO
Na Regra Bulada, o Capítulo XII traz o título Dos que querem ir para entre os sarracenos e outros Infiéis, que nasce do Capítulo XVI da Regra não Bulada e insere a identidade missionária na base jurídica da Ordem. Recomenda ainda que os frades, onde quer que estejam, procurem conviver espiritualmente de dois modos: 1) Não litiguem nem disputem, mas sejam submissos a toda criatura humana por amor a Deus e confessem que são cristãos; 2) Quando virem que agrada ao Senhor, anunciem a Palavra de Deus.
As recomendações do primeiro modo de conviver espiritualmente sintetizam, ainda, três elementos inspiracionais que dirigem a evangelização franciscana:
Não litiguem nem disputem – Missão é lugar de conviver espiritualmente. O sucesso não acontece quando se consegue superar a posição do outro, mas quando se convive.
Sejam submissos a toda criatura humana por amor a Deus – Refere-se à humildade, ao reconhecimento do fato de ser parte de um projeto maior. Submissão a Deus é a origem do termo Islã e indica a sensibilidade ao divino que São Francisco percebeu no meio dos sarracenos, no seu encontro com o sultão.
E confessem que são cristãos – Manifesta a clareza de identidade fundamental à convivência e ao diálogo.
Quanto à pregação, o anúncio da Palavra de Deus deve ser visto sob a mesma chave de leitura da “convivência espiritual”. Na Regra Bulada, o Capítulo destinado ao tema da pregação é o IX. Na Regra não Bulada, o tema é tratado de forma mais direta no Capítulo XVII. E, para que o anúncio possa acontecer, o texto (RnB) põe uma condição preliminar: “quando virem que agrada ao Senhor”. Esta é uma afirmação muito grave, porque pressupõe que haja anúncios da Palavra que não agradem a Deus. Na atividade missionária, não se pode partir do pressuposto que a pregação seja obrigatória. Deve ser posta ao crivo da vontade divina. Se o anúncio é agradável a Deus, então pode acontecer que os ouvintes creiam, sejam batizados e se tornem cristãos. Mas isto já pertence à graça divina e não ao poder do frade missionário.
Desta forma, a Evangelização franciscana se revela, então, como um modo de estar à disposição de Deus. Assim, o frade menor é impelido a:
Deixar-se forjar como São Francisco foi forjado pelo encontro com o leproso;
Colocar-se sob a inspiração de Deus (RB 1).
Compreender que a missão evangelizadora não é antes de tudo uma atividade, mas um modo de ser, marcado pela liberdade para a pluralidade de métodos de trabalho e diversidade de presenças.
Assumir um modo de evangelizar não beligerante, desarmado, com prudência e simplicidade.
“DOENÇAS” ATUAIS SEGUNDO A CARTA FRATELLI TUTTI E POSSÍVEIS “REMÉDIOS” DA EVANGELIZAÇÃO FRANCISCANA
O modo franciscano de evangelizar foi apresentado pelo Papa Francisco na Carta Encíclica Fratelli Tutti como fundamento do tema tratado no documento papal. Escreve o Sumo Pontífice:
[SÃO FRANCISCO] Não fazia guerra dialética impondo doutrinas, mas comunicava o amor de Deus; compreendera que “Deus é amor, e quem permanece no amor, permanece em Deus” (1 Jo 4,16). Assim foi pai fecundo que suscitou o sonho de uma sociedade fraterna, pois “só o homem que aceita aproximar-se das outras pessoas com o seu próprio movimento, não para retê-las no que é seu, mas para ajudá-las a serem mais elas mesmas, é que se torna realmente pai”. Naquele mundo cheio de torreões de vigia e muralhas defensivas, as cidades viviam guerras sangrentas entre famílias poderosas, ao mesmo tempo que cresciam as áreas miseráveis das periferias excluídas. Lá, Francisco recebeu no seu íntimo a verdadeira paz, libertou-se de todo o desejo de domínio sobre os outros, fez-se um dos últimos e procurou viver em harmonia com todos. Foi ele que motivou estas páginas (FT 4).
No mesmo documento, o Santo Padre apresenta uma série de desafios à construção da Paz e da Fraternidade diante dos quais o modo franciscano de evangelizar tem muito a dizer. Seguem alguns destes desafios, com o respectivo “remédio franciscano”:
1) Esvaziamento e manipulação de grandes palavras: “democracia, liberdade, justiça, unidade, [ordem], [paz], [segurança], [família]…” que, como títulos vazios de conteúdo, podem servir para justificar qualquer ação” (FT 14).
Diante do esvaziamento e da banalização de conceitos, a evangelização ao modo franciscano, por sua vez, com base da Admoestação XIV (Que a boa operação siga a ciência), convoca o evangelizador a “preencher com carne o verbo”, trazendo para a própria experiência de vida os valores que prega, vivendo-os de acordo com o exemplo e os ensinamentos de Cristo.
2) Ao n. 15, o Papa denuncia:
Usa-se hoje, em muitos países, o mecanismo político de exasperar, exacerbar e polarizar. Com várias modalidades, nega-se a outros o direito de existir e pensar e, para isso, recorre-se à estratégia de ridicularizá-los, insinuar suspeitas sobre eles e reprimi-los. Não se acolhe a sua parte da verdade, os seus valores, e assim a sociedade empobrece-se e acaba reduzida à prepotência do mais forte. Desta forma, a política deixou de ser um debate saudável sobre projetos a longo prazo para o desenvolvimento de todos e o bem comum, limitando-se a receitas efêmeras de marketing cujo recurso mais eficaz está na destruição do outro. Neste mesquinho jogo de desqualificações, o debate é manipulado para o manter no estado de controvérsia e contraposição (FT 15).
A esta estratégia desagregadora de exasperar, exacerbar e polarizar, o remédio vem na pílula homeopática do estribilho atribuído a São Francisco: “Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz”.
3) Ao n. 25, o Papa faz uma referência ao dilema da chamada pós-verdade que, facilmente pode se tornar uma verdade de conveniência, servindo à dominação e à desumanização: “O que é verdade quando convém a uma pessoa poderosa, deixa de o ser quando já não a beneficia” (FT 25).
Diante desta tentação de uma verdade conveniente e imposta pelo mais forte sobre o mais fraco, uma resposta do evangelizador franciscano poderia partir da descrição apresentada por Tomás de Celano ao se referir à humildade de São Francisco:
Aprendera por revelação o sentido de muitas coisas; discutindo-as diante dos outros, antepunha [às suas] as opiniões dos outros. Acreditava que o parecer dos companheiros era mais seguro e que o modo de ver alheio era melhor que o próprio (2Cel 140,12).
4) A falsa ideia de que entre o indivíduo e a comunidade humana esteja em curso um “cisma” parece ganhar corpo numa sociedade que, segundo o Papa, corre sem rumo comum, onde a distância entre a obsessão pelo próprio bem-estar e a felicidade da humanidade partilhada parece aumentar (cf. FT 31).
O antídoto franciscano para este temível e destruidor cisma se encontra no valor da Fraternidade, abraçado por São Francisco como verdadeiro dom de Deus: “E depois que o Senhor me deu irmãos, ninguém me mostrou o que deveria fazer, mas o Altíssimo mesmo me revelou que eu deveria viver segundo a forma do Santo Evangelho” (Test 14).
5) Nos nn. 42-44, a Carta Encíclica apresenta três desafios relacionados ao ambiente digital, mediado pelos aparelhos eletrônicos e pela internet. O primeiro é denominado com a “diluição do respeito pelo outro, a quem posso apagar, eliminar, destruir ou, também, se parecer divertido, de quem posso invadir todos os recônditos da privacidade” (FT 42); o segundo, um paradoxo que nasce da ilusão da Comunicação: cresce o fechamento e diminui a distância, a ponto de a intimidade do outro se tornar um espetáculo; o terceiro desafio, o fato de “a agressividade social encontrar um espaço de ampliação incomparável nos dispositivos móveis e nos computadores” (FT 44).
Como remédio, sugere-se uma dose considerável do que São Francisco recomenda na Admoestação XXV, que pode ser sintetizada na pergunta: “Como eu agiria se tal pessoa a quem agrido, desrespeito, invado a privacidade, estivesse aqui, face a face diante de mim?”.
CONCLUINDO
A intuição de São Francisco, sempre relevante e atual, deve seguir guiando os passos daqueles que tiveram a ousadia de abraçar a missão franciscana. A capacidade de escuta dos contextos emergentes continua sendo uma tarefa importante dos discípulos daquele que, em seu tempo, foi um visionário porque se dispôs a manter seus “olhos fixos no Senhor”. Para terminar, mais uma referência cheia de carinho e admiração do Santo Padre àquele que lhe inspirou o nome e continua inspirando seu Pontificado: “São Francisco de Assis escutou a voz de Deus, escutou a voz dos pobres, escutou a voz do enfermo, escutou a voz da natureza. E transformou tudo isso num estilo de vida. Desejo que a semente de São Francisco cresça em tantos corações” (FT 48).
Sugestão de possíveis questões para reflexão:
1) Um princípio fundamental da Evangelização Franciscana é o modo de anunciar de forma dócil e pacífica, sem disputas ou litígios. Por outro lado, também a profecia paz parte de nossa identidade. Como podemos conciliar estes dois fundamentos de nossa missão para sermos profetas da justiça, da esperança e da paz?
2) Que contribuições os valores de nossa identidade cristã-franciscana podem oferecer para superarmos a crise econômico-político-social que o Brasil atravessa hoje?
3) “A missão evangelizadora não é antes de tudo uma atividade, mas um modo de ser, marcado pela liberdade para a pluralidade de métodos de trabalho e diversidade de presenças”. Além das presenças que já temos, você conseguiria sugerir duas modalidades de trabalho/presença nas quais poderíamos investir nossas forças?
Frei Gustavo Wayand Medella
Capítulo X
Ressignificar a compreensão das relações fraternas entre autoridade e obediência.
Possuir o Espírito do Senhor e os comportamentos fundamentais do Irmão Menor.
AS RELAÇÕES FRATERNAS A PARTIR DA OBEDIÊNCIA
O 10º capítulo da Regra Bulada (RB) nos põe o tema da obediência. Ele é central para pensarmos as relações fraternas dos Irmãos Menores. Aparece não somente ali mas em vários outros importantes escritos de São Francisco. De modo geral, Francisco via a si mesmo e a sua fraternidade posta como que num “espaço” de obediência: A Regra se inicia com a declaração de que Francisco promete obediência ao Papa e à Igreja de Roma; todos os irmãos prometem obediência a Frei Francisco e a seus sucessores (RB 1,2-3); quando novos irmãos são recebidos no grupo, eles são admitidos à obediência (RB 2,11), não propriamente a um convento ou a uma instituição; e a partir daí passam a viver com os irmãos que prometeram obediência (RB 2,14); a autoexclusão do grupo é um “andar pelo mundo fora da obediência” (RnB 5,19).
Fundamento da obediência
Para vislumbrar o que seja a obediência franciscana é preciso ter em mente o grande Obediente, o Cristo Jesus. Pois a obediência entre os Irmãos Menores só pode ser compreendida a partir desse modo de ser próprio do Cristo. São Francisco, na 2Fi 10, nos diz que o Filho “abandonou sua vontade na vontade do Pai quando disse: Faça-se a tua vontade (Mt 26,42); não como eu quero, mas como tu queres” (Mt 26,39). E deu a sua vida para não faltar à obediência devida ao seu Santíssimo Pai (Ord 46). Mesmo quando a vontade do Pai lhe parecia incompreensível, continuava repetindo que se cumprisse a vontade dele e não a sua, como aconteceu no Monte das Oliveiras (Mc 14,36).
Nesse sentido, fazer profissão na fraternidade dos Menores é entrar na escola da obediência daquele que aprendeu a obedecer por meio dos sofrimentos e que foi fiel à vontade do Pai até a morte e morte de cruz. Já na encarnação, vindo ao mundo no seio da Virgem obediente e pobre, Jesus abraçara o caminho da obediência divina.
Assim, a ideia e praxe da obediência em São Francisco tem sua origem no seguimento de Cristo, enquanto resposta ao Evangelho, acolhido como graça e assumido como forma vitae. Podemos afirmar que, na experiência franciscana, o viver se resume e se consuma na obediência, no deixar-se sujeitar e dirigir pela multiforme ação de Pai, em Cristo, por seu Espírito que tudo abarca e em tudo atua. Para o irmão menor, viver é obedecer, desejando sempre possuir o Espírito do Senhor e seu santo modo de operar (RB 10,9).
Ainda podemos dizer que a obediência de Francisco e de seus irmãos é a inevitável e necessária atitude da criatura quando se descobre como dom e como ser de predileção nas mãos de Deus Criador e do Filho Redentor, elevada e dignificada porque feita à imagem e semelhança do Filho de Deus (Ad 5).
Autoridade e serviço
Ao tratarmos da obediência, sempre a questão de fundo, como vemos na Regra não Bulada (RnB 4,5), é o serviço. A autoridade do ministro, por exemplo, para São Francisco, não vem de um poder qualquer, ou da vontade de poder, mas do serviço evangélico. Ela é um serviço no vínculo da caridade, uma vez que só um é o Pai de todos e “vós todos sois irmãos” (Mt 23,8). Ela é serviço de vigilância fraterno-maternal em relação aos irmãos. Para São Francisco, ela é a expressão máxima da humildade: o ministro, o que exerce a autoridade, é o servo humilde dos irmãos como aquele que está encarregado de lavar-lhes os pés, e de servi-los em vista da comum utilidade (RB 8,4). A autoridade aqui tem conotação serviçal, expropriada, subordinada ao outro. Não há outro ofício ou função fundamental que distinga os frades menores a não ser o lavar os pés uns dos outros (RnB 6,4). Os outros serviços ou ofícios estão em função deste que é anterior e primário: não se trata de uma “ascensão”, mas, ao contrário, uma descida ao radical nível do serviço.
Obediência entre os irmãos
Os frades, consentindo que suas vidas sejam plasmadas pela obediência ao Evangelho – e esta é sua profissão – necessariamente se abrem a seus irmãos em total disponibilidade e acolhida à ação do Senhor e de seu Espírito, permanecendo unidos e sujeitos uns aos outros. Sendo todos menores (RnB 6,3), todos são submissos entre si, não se excluindo nem mesmo o ministro, que é chamado de “ministro e servo” – como encontramos na RnB 4,5 –, convocado a lembrar-se do Senhor Jesus Cristo que não veio para ser servido mas para servir (Mt 20,28) . Ainda no capítulo 10º da RB, que estamos analisando, percebemos que, no fundo, todos são súditos e servos, pois todos se propõem a renunciar à própria vontade, em nome e por força do amor de Deus. Nos versos 4-5, por exemplo, os ministros, ao acolherem irmãos em dificuldade, devem fazê-lo caridosa e benignamente e devem tratá-los com tanta familiaridade que os irmãos possam falar e haver-se com eles como senhores (os súditos) para com seus servos (os ministros).
A “categoria” ministro, no forte binômio “ministro e servo”, coloca a todos – ministros e súditos –, na mesma condição diante de Jesus Obediente, que, sendo Senhor junto do Pai, fez-se súdito e servo dos seres humanos, renunciando também ele à sua vontade própria (Fl 2,6-11). Por amor e para a vida de todos, obedeceu ao Pai e entregou-se à morte de cruz. Não existe poder nem autoridade maior do que aquela que o Senhor Jesus Cristo conseguiu com sua obediência ao Pai (2Fi 11-15).
Na realidade, a relação de obediência entre os irmãos não se dá entre eles propriamente, mas entre eles e o Grande Obediente. Ao obedecerem-se mutuamente, os irmãos põem-se no seguimento do Cristo Obediente, e, nessa condição, também eles buscam obedecer ao Pai, que tudo faz por amor. O amor é a grande medida da obediência e do serviço. Neste sentido, obedecer é amar generosa e abnegadamente o mistério do Senhor que se esconde e se revela em cada irmão.
Decorrente disso, na fraternidade de menores, todos dependem de todos, porque todos são guardiães dos próprios irmãos (RB 6,9). Ninguém é autônomo na fraternidade reunida para viver o Evangelho. Não se vive para si e para fazer a vontade própria. Os irmãos ajudam-se mutuamente em suas necessidades pois vivem na familiaridade fraternal e materna: “E onde estão e onde quer que se encontrarem os irmãos, mostrem-se mutuamente familiares entre si. E com confiança um manifeste ao outro a sua necessidade, porque, se a mãe nutre e ama a seu filho carnal, quanto mais diligentemente não deve cada um amar e nutrir a seu irmão espiritual (RnB 6,8)?”.
Ícone da familiaridade franciscana, conjugada com a obediência, é o bilhete de São Francisco a Frei Leão: “Teu irmão Frei Francisco deseja-te saúde e paz. Assim te digo, meu filho, como mãe: coloco brevemente nesta frase todas as palavras que falamos pelo caminho e te aconselho; e se depois precisares por motivo de conselho vir a mim, assim te recomendo: qualquer que seja o modo que te pareça melhor agradar ao Senhor Deus e seguir suas pegadas e sua pobreza, faze-o com a bênção do Senhor Deus e com a minha obediência. E se te for necessária outra consolação para tua alma e se quiseres vir a mim, Frei Leão, vem”.
Para nós, é importante ressaltar que na obediência “se corporifica” uma liberdade magnânima. A obediência não nos limita. Ela nos liberta. O exercício da obediência nos abre à grande liberdade: a de não sermos dominados pelo eu-próprio e pelos nossos subjetivismos. Não se trata de autoanulação – o que seria contra a vontade de Deus Criador –, mas, o quanto possível, de livramento de nossas tendências egocêntricas .
Ministro e súdito
Obedecer como súdito vai bem além de uma simples execução de ordens ou tarefas recebidas. Como também ser ministro não significa mandar, exigir ou baixar decretos a modo de quem tem poder ou autoridade como os “príncipes e senhores do mundo”. A obediência para São Francisco não é a execução de ordens dadas por um “superior” e nem é um instrumento para que algo funcione bem e de modo eficiente dentro de um determinado contexto. Não é categoria organizacional voltada para um objetivo dentro ou fora da fraternidade.
O “ministério dos irmãos” por parte do irmão ministro (a autoridade) não é fazer valer a lei – na linha de uma função simplesmente jurídica –, mas é recordar sempre a todos a necessidade de abrir-se à ação do Espírito, não para conseguir uma uniformidade geral, mas sim a docilidade dos irmãos à livre iniciativa e multiforme ação do Espírito do Senhor. Por outro lado, o ministro não deve furtar-se ao serviço de ordenar por obediência, evitando a todo custo, é lógico, tudo que beire a capricho e arbitrariedade (RB 10,3).
Ministro e súdito são apenas duas formas diferenciadas do mesmo ordenamento, duas articulações do mesmo mistério, instituídas pelo vigor originário de toda a fraternidade: a obediência de Nosso Senhor Jesus Cristo. Com esse princípio, a fraternidade livra-se de todo e qualquer senhorio, dominação, bajulação ou subserviência. Nenhuma outra competição verificar-se-á entre os irmãos a não ser e tão somente aquela que vem de nossa origem: servir como o Senhor serve .
É lógico que a fraternidade precisa encontrar caminhos para instituir o serviço de apoio à vida dos irmãos na concretude do cotidiano. Designa “irmãos para irmãos”. Há sempre papéis diferentes a se exercer dentro da “casa da obediência”, mas jamais diferentes classes de irmãos .
Obediência e pobreza
A santa obediência tem relação estreita com a Dama Pobreza (RnB 5,19). A obediência talvez expresse a pobreza na sua mais alta condição. De fato, dentre todas as expropriações que podemos fazer na vida, a mais difícil é certamente aquela do eu-próprio e da vontade própria. Essa renúncia, pela obediência, custa-nos muito mais do que o desapegar-se de bens e de posses. Porque, mal entendida, a obediência nos tolheria a liberdade. Bem o contrário, porém, é o que acontece. A obediência nos assegura a liberdade maior, aquela que nos disponibiliza inteiramente a Deus e ao próximo. A 3ª Admoestação nos fala disso: “Abandona tudo quanto possui e perde seu corpo aquele que se oferece totalmente à obediência nas mãos do seu prelado… E se o súdito vê algo melhor e mais útil à sua alma do que aquilo que o prelado lhe ordena, sacrifique voluntariamente as suas (opiniões) a Deus; procure, porém, realizar em obras as que são do prelado. Pois, esta é a obediência caritativa, porque satisfaz a Deus e ao próximo”.
Acentuando também fortemente o respeito que se deve à consciência individual do súdito, Francisco nos dá a garantia de que a obediência não lesa a dignidade e a liberdade da pessoa. Na mesma 3ª Admoestação, elucida que, se o prelado ordena algo contra a alma do irmão súdito, este, conquanto não lhe obedeça, não o deve abandonar.
A obediência assim compreendida não é comumente encontrada. Ele constitui um carisma distinto e específico na Igreja, que identifica São Francisco e sua fraternidade de Menores.
Obediência estendida
A Saudação às Virtudes (SV) é um texto paradigmático de São Francisco quanto à profunda e ampla obediência por ele vivida e proposta aos seus irmãos. Os últimos versos dão por certo que “a santa obediência confunde todas as vontades próprias… e mantém o corpo mortificado para a obediência ao espírito e ao seu irmão, e torna o homem súdito e submisso a todos os homens que há no mundo, e não somente aos homens, mas também a todos os animais e feras, para que possam fazer dele o que quiserem, tanto quanto lhes for permitido do alto pelo Senhor”.
Francisco, diante do Cristo Senhor, escolhe, para si e para os seus, a obediência e o nome de frades menores (RnB 6,3), os quais são “submissos a toda criatura por Deus” (RnB 16,7). Francisco não sabe ser irmão sem ser menor, sem servir e sem estar sujeito às criaturas. O respeito reverente para com todas elas, tão característico do Poverello, não é outra coisa senão uma maneira de servir.
Por sua vez, cada criatura conhece e conjuga um único verbo: servir. E aspira a uma única titulação: a do servo. Pois, tanto serve a água como a pedra, a luz como a escuridão, a ovelha como o lobo, o peixe como a serpente, a vinha como os abrolhos, a vida como a morte. A dinâmica das criaturas é servir sem saber que estão servindo. Por isso, todas elas são menores .
Obediência em nós
A obediência será sem dúvida primordial se quisermos ser fiéis à profissão que fizemos: observar o Evangelho como Irmãos Menores. Mas, segundo o mesmo capítulo 10º da RB, de que nos ocupamos, isso somente será possível se nos dispusermos a desejar e a buscar o Espírito do Senhor e seu modo de operar e a abrir-nos a seus dinamismos (RB 10,9). A questão crucial de nosso compromisso de sermos obedientes põe-se necessariamente na esfera da fé. Sem essa abertura anterior e vital de seguimento generoso e incondicional a Jesus Cristo Obediente, que nos toque sempre de novo e nos reencante, seremos rasos em nossas relações fraternas, sujeitos e limitados a nossos devaneios, inconstâncias e vontades. E não conheceremos a liberdade que a obediência nos poderia proporcionar. Desatentos à dimensão da fé, tudo se nos torna mais difícil: seja o obedecer seja o “ordenar”, pois decaímos para o nível de uma “obediência” horizontal, sem raízes calcadas no profundo, na origem e fonte revigorante de nossa vocação de menores: o Espírito do Senhor. Como desejá-lo, como buscá-lo, como cultivá-lo? Uma ação puxa a outra: o desejar leva ao querer, o querer ao buscar, o buscar ao cultivar, e o cultivar ao desejar novamente e ainda mais… Meios, já os temos: a missão, a oração, a meditação, o silêncio, a vida fraterna, o estudo, o trabalho. Todos a serem bem temperados pelo desejo, pelo querer, pela busca, pelo cultivo. Nossa fraternidade há de ser espaço onde se vive em estado de obediência (ob-audientia) ao Espírito do Senhor, que nos ajude a fazer nosso o Seu modo de operar.
Frei Walter de Carvalho Júnior
Capítulo XI
Ressignificar as nossas relações afetivas, com prudência e vigilância
Introdução
A Regra Bulada, com seus 800 anos de história, chegou a nós intacta. Não há necessidade de questionar a sua autenticidade ou de buscar a sua originalidade a partir de outros manuscritos antigos. Ainda hoje possuímos a cópia original com a Bula Solet Annuere, de 29 de novembro de 1223, aprovada pelo Papa Honório III, cujo manuscrito é custodiado pelo Sacro Convento de São Francisco, em Assis. Uma outra cópia encontra-se no Catálogo papal, no arquivo do Vaticano. Esta Regra, desde a sua redação definitiva, condensa a espiritualidade franciscana que emerge da vida a ser vivida em conformidade com o Santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo. É uma Regra que incita a fraternidade evangélica a cultivar a vida em conformidade com o “Espírito do Senhor e seu santo modo de operar”.
A bula original da Regra coloca os títulos aos capítulos, contudo não os enumera. Mas, nem sempre eles traduzem a totalidade das questões tratadas no respectivo capítulo, assim como podemos constatar neste XI capítulo: “Que os irmãos não entrem em mosteiros de monjas” .
A importância da questão
O título deste capítulo vai muito além do que sugere, isto é, do respeito à observância da clausura das monjas, compreendida por Santa Clara como espaço esponsal para se chegar à altíssima pobreza de nosso Senhor Jesus Cristo, e por ela legislada na sua Forma de Vida. Aqui está em jogo questões que exigem nossa atenção, em especial a ressignificação e a compreensão da promessa de viver em castidade o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Este capítulo coloca em evidência três argumentos, a saber: a transparência nas relações humanas (particularmente o respeito e relações com o universo feminino), as questões que envolvem o risco dos apadrinhamentos e a tutela daquilo que hoje chamamos de possíveis pecados de abuso (de poder e/ou contra o Sexto Mandamento). Tudo isso tem a ver com as questões abordadas na Carta Apostólica sob forma de Motu Proprio do Sumo Pontífice Papa Francisco, Vos estis lux mundi .
Tanto a Regra Bulada de São Francisco quanto a Forma de Vida de Santa Clara, ambas no cap. XI, tratam da mesma questão, ou seja, a necessidade da “clausura”, mesmo aos que levam uma vida itinerante, para custodiar o coração em vista do serviço exclusivo a Nosso Senhor Jesus Cristo na missão e na contemplação: “Onde há temor do Senhor para guardar seus átrios, ali o inimigo não tem lugar para entrar”.
Evitar relações suspeitas com mulheres
Aqui não quero debater os conceitos e/ou preconceitos que se tinha da mulher neste período da história medieval. São Francisco de Assis compreende toda a fraternidade na ótica do Evangelho: “Todos vós sois irmãos”, incluídas Clara e Senhoras Pobres de São Damião. Ele realça a figura feminina com gestos de afeto e respeito que devem perpassar todas as relações fraternas: “E onde quer que os irmãos se encontrarem, mostram-se mutuamente familiares entre si. E com confiança um manifeste ao outro a sua necessidade, porque, se uma mãe nutre e ama a seu filho carnal, quanto mais diligentemente não deve amar e nutrir a seu irmão espiritual?” Na linguagem de São Francisco não há lugar para atitudes misóginas, subalternação e subserviência em relação à mulher, mesmo quando isso se evidencia em algumas “molduras hagiográficas” da época para enaltecer as virtudes de uma pessoa santa. Nem São Francisco escapa dessa leitura em hagiografia posterior.
A relação sadia entre Francisco e Clara de Assis, conscientes de que são “irmão e irmã” gerados pelo Senhor para uma mesma família, isto é, uma só fraternidade, nos mostra que as virtudes da vigilância e da prudência os acompanharam desde os encontros iniciais no processo de conversão, perpassando a forma de vida até a última vontade transmitida a Santa Clara.
O frade menor, ao manter contato com homens e mulheres na sua itinerância apostólica, corre o risco de abandonar a disciplina da Regra e vagar fora da obediência. Da mesma forma a irmã pobre, quando se descuida da sacralidade da clausura e da obediência prometida, pode gerar uma situação delicada que coloca em risco a castidade que ao Senhor prometeu observar.
A questão do relacionamento com o universo feminino não pode ser motivo de escândalo para as pessoas, muito menos uma traição ao Evangelho que ao Senhor prometemos viver em castidade. Daí as palavras enérgicas com que São Francisco de Assis inicia este capítulo: “Ordeno firmemente a todos os irmãos”. São Francisco aqui assume a reponsabilidade e a consciência de legislador e convoca “todos os irmãos” a não vagarem, como já foi dito, fora da disciplina da obediência à Regra, “pois Nosso Senhor Jesus Cristo deu a sua vida para não perder a obediência do Pai”.
A profissão religiosa cria em nós um pacto fraterno com o Senhor. A transgressão desse pacto é um pecado mortal, assim como vem tratado na Regra: “Se alguns dos irmãos, por instigação do inimigo, pecarem mortalmente…”. Existe um espaço terapêutico onde o perdão, a reconciliação e a ressignificação das promessas feitas ao Senhor são tratados: a fraternidade. É ali que a Regra deve ser observada. Com muita razão concordamos com Frei Tomás de Celano quando escreveu: “(São Francisco) zelava ardorosamente pela profissão comum e pela Regra e dotou-a com bênção especial aos que zelassem por ela. Pois dizia aos seus que ela é o livro da vida, a esperança da salvação, a medula do Evangelho, a via da perfeição, a chave do paraíso, o pacto da eterna aliança”.
Não entrar no mosteiro de mulheres
A promessa de São Francisco a Santa Clara de Assis: “Quero e prometo, por mim e por meus irmãos, ter sempre por vós diligente cuidado e especial solicitude, assim como tenho por eles”. Muitos de nós prestamos diferentes serviços seja às monjas (Clarissas, Concepcionistas, Beneditinas, Carmelitas) como a outras congregações femininas. Somos capelães, assistentes espirituais e prestamos ajudas materiais.
Em todos os espaços, isto é, “onde quer que os irmãos estejam”, devemos ser o que somos na verdade de Deus: frades menores, obedientes, pobres e castos. Não podemos permitir e romper os espaços da liberdade e do respeito para com o universo feminino. Não podemos incorrer no crime do abuso de poder ou nos exacerbar em grosserias ou posturas misóginas. Existem limites de liberdade que devem ser respeitados e observados, não pelas grades de ferro, mas pela clausura da ética e do respeito. A cortesia e o cavalheirismo são virtudes permanentes do frade menor. Elas nos educam a olhar e a compreender o universo feminino com o mesmo olhar misericordioso de Jesus. A atitude cortês e cavalheiresca de São Francisco nos ensina que elas são nossas irmãs e não rivais, e muito menos um “mel venenoso” como por vezes são ou foram tratadas.
Recordou-nos o Papa Francisco no dia 15 de janeiro de 2015, na Universidade de Manila: “As mulheres têm muito a dizer-nos na sociedade atual. Às vezes somos demasiado machistas, e não deixamos espaço à mulher. Mas a mulher sabe ver as coisas com olhos diferentes dos homens”.
Proibição do apadrinhamento
“Ordeno firmemente… a não se tornarem compadres de homens ou de mulheres, para que desta circunstância não resulte escândalo entre os irmãos ou a respeito dos irmãos”.
Antes de mais nada, São Francisco se vê como um irmão de toda humana criatura. No Senhor todos são irmãos e irmãs. E isto já basta para bem viver a nossa vocação evangélica onde quer que o Senhor nos envia. É de felicidade ímpar a expressão da Regra não Bulada: “Todos os irmãos procurem empenhar-se nas boas obras, porque está escrito: “faze sempre algo de bom, para que o demônio te encontre ocupado”.
O apadrinhamento de homens ou mulheres, pode reduzir a universalidade da nossa pertença ao Senhor. O apadrinhamento cria privilégios ou relações que ofuscam nossa verdadeira pertença a uma fraternidade. Certamente o maior escândalo deste apadrinhamento não procede da relação padrinho-afilhado, ou madrinha-afilhado, que naturalmente implica em obrigações e deveres (espirituais e materiais), mas o pecado da não pertença a uma fraternidade pobre e humilde que se constrói a partir da mesa comum. O escândalo maior, sem dúvida alguma, é o não pertencimento à fraternidade! Por isso este complemento significativo de São Francisco de Assis: “para que desta circunstância não resulte escândalo entre os irmãos ou a respeito dos irmãos”.
São Francisco lê uma das tentações do coração humano. O ser “padrinho” ou “afilhado”, nem sempre é mérito, pois pode estar acompanhado de interesses sutis, de vantagens, de enriquecimento ilícito, de amizades banais e interesseiras que tiram o brilho do Frade Menor. Para este perigoso veneno, Francisco propõe o antídoto: “São verdadeiramente puros de coração os que desprezam as coisas terrenas, buscam as celestes e nunca desistem de adorar e de procurar o Deus vivo e verdadeiro com o coração e mente puros”.
São Paulo, outubro de 2023
Frei Fidêncio Vanboemmel