Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Março 2012

I. LEITURA ESPIRITUAL

“O homem novo se alimenta da Palavra!”

 

Frei Almir Ribeiro Guimarães

O fruto da Sagrada Escritura não é um fruto qualquer, mas a plenitude da felicidade eterna. De fato, a Sagrada Escritura é precisamente o livro no qual estão escritas as palavras de vida eterna, porque não só acreditamos mas também possuímos a vida eterna, em que veremos, amaremos e serão realizados todos os nossos desejos (São Boaventura, Breviloquium)

 

1. Viver, viver em plenitude, viver no Espírito e do Espírito! Viver com viço e com vigor. Não somos seres banais. Estamos no mundo, mas já deixamos o mundo. Somos criaturas novas. Tivemos nosso interior visitado pelo Espírito e, no dia a dia de nossas existências, levamos uma vida que designamos de “espiritual”. Esse nosso soerguimento lembra a palavra de Paulo, que nos faz tanto bem: “Vós morrestes e a vossa vida está escondida, com Cristo, em Deus” (Cl 3,3). Carregamos em vasos de barro essa vida nova que borbulha em nós. Solteiros ou casados, religiosos ou sacerdotes, homens ou mulheres, jovens e idosos, serventes de pedreiros e altos executivos, levamos uma vida espiritual. Temos pleníssima consciência que esse “estado” novo precisa de nutrimento, de alimentação. Do contrário, as pessoas rirão de nós, como se fala na comparação da casa construída sobre a areia e a rocha. Começamos com tanto entusiasmo, mas foi tudo tão fugaz, tão sem base. A vida nos ensinou que precisamos nos retirar para a oração, tentar estratégias de seguimento de Jesus, praticar o amor fraterno. A primeira e mais fundamental das fontes de nutrimento da vida espiritual é encontro com a Palavra.

2. Nos últimos anos sentimos que a Igreja vem lançando insistente convite no sentido de que mais nos aproximemos da Palavra. Bento XVI, no final da Exortação Apostólica pós-sinodal Verbum Domini, escrevia: “Cada um dos nossos dias seja plasmado pelo encontro renovado com Cristo, Verbo do Pai feito carne. Ele está no início e fim de tudo, e n’Ele todas as coisas subsistem (cf Cl 1,17). Façamos silêncio para ouvir a Palavra do Senhor e meditá-la, a fim de que a mesma, através da ação eficaz do Espírito Santo, continue a habitar e a viver em nós e a falar-nos ao longo de todos os dias de nossa vida. Desta forma, a Igreja sempre se renova e rejuvenesce graças à Palavra do Senhor, que permanece eternamente (cf.1Pd 1, 25; Is 40,8). Assim também nós poderemos entrar no esplêndido diálogo nupcial com que se encerra a Sagrada Escritura: “O Espírito e a Esposa dizem: ‘Vem”! E, aquele que ouve, diga: ‘Vem’! […] O que dá testemunho destas coisas diz: ‘Sim, Eu venho em breve’! Amém. Vem Senhor Jesus!” (Ap 22, 17-20) (n. 124). A Palavra nos rejuvenesce.

3. Cristãos e religiosos temos incontáveis momentos de contato com a Palavra: na celebração da missa, na recitação da liturgia das horas, na celebração dos sacramentos, no exercício da lectio divina, na leitura particular das Escrituras. Longe de nós todo espírito fundamentalista e toda mentalidade superficial na abordagem da Palavra. Estamos sendo convidados a nos aproximar de maneira atenciosa, nova e humilde dessa Palavra (desdobrada em palavras) que pode nos tirar da mediocridade da vida. Fato consolador e encorajador: ao longo de toda a nossa vida somos alimentados por essa Palavra que nutre os famintos e mata a sede da garganta dos que têm a garganta ávida de Deus.

 4. Sim, hoje se reconhece, ao menos teoricamente, a centralidade da Palavra de Deus. Em todas as atividades de formação e de pastoral se busca dar lugar para a escuta. Interessantes reflexões do Editorial da “Revista del Clero Italiano” (5/2010) podem nos ajudar. Hoje, o primeiro lugar não é dado à evangelização, mas à escuta. Jesus o havia firmemente lembrando a Marta que ela perdia o fio da meada da vida ocupando-se exageradamente de atividades exteriores. Muitos cristãos, religiosos e sacerdotes dizem que estão sobrecarregados e que não podem se dedicar mais intensamente à escuta. Agentes de pastoral, cristãos, religiosos e sacerdotes não podem dizer que o sentido de suas vidas seja o cansaço advindo do trabalho. “O cansaço não enche de sentido uma existência. As muitas coisas empreendidas podem esconder o medo de alguém se interrogar sobre o modo de construir sua vida e podem dar a ilusão – porque mortos de cansaço – que padres (também leigos) deram sua colaboração para a construção do Reino!”.

 5. Rezamos a Liturgia das Horas, celebramos ou participamos de sacramentos, pregamos ao povo a Palavra. A realização dessas atividades, de per si, não enche nosso coração. Há sempre o risco de falarmos da Palavra sem sermos habitados por ela. O exagero de atividades pode nos distrair da escuta da Palavra de Deus e da escuta das pessoas. Meditação, estudo, reflexão, oração são fundamentais para manter o patrimônio da fé com características de frescor e de persuasão. Através dessa tentativa de escuta vamos fazendo uma experiência humana banhada pela Palavra, ganhando sabedoria que chega até o agir cotidiano tornando significativo o trabalho pastoral ou simplesmente a vida cristã. Nada mais nocivo do que uma frenética atividade seja na pastoral, nas causas abraçadas pelos religiosos, na vida cristã, na construção da família, atividade privada de alma e de direcionamento, na construção da família. Não dá para viver uma vida cristã, exercer o pastoreio, assistir a grupos quando não se tem alma, entusiasmo, “gás” e se caminha a esmo. Sentimos que nossa vida espiritual e nosso agir pastoral precisam provir da fonte do coração.

6. O autor do Editorial da “Rivista del Clero” a que nos referimos, analisando evidentemente a realidade da Igreja na Itália, escreve: “Minha impressão, de fato, é que uma espécie de resignada canseira esteja se infiltrando em nossas comunidades. Daí o perigo de buscar a “sobrevivência” arquitetando estratégias secundárias, de fôlego curto. É como se faltasse, de um lado a verdadeira esperança evangélica e, de outro, como se as pessoas se contentassem com um conhecimento superficial e fragmentado da sociedade em que atuamos. E assim, não obstante sua boa vontade, o agente de pastoral, pressionado pela urgência de tarefas, dispersivas e dispersantes, sobrecarregado de atividades que não agradam porque infrutuosas, corre o risco de chegar ao desalento. A pastoral, em sua totalidade, precisa ser revisitada e renovada. Daí na necessidade da escuta assídua da Palavra, escuta do mundo de hoje e escuta das pessoas.

7. Vivemos um tempo de transição. Fala-se em redesenhamento das instituições, da pastoral, da vida cristã no mundo, da vida consagrada. As vestes que usávamos se tornaram apertadas. Não podemos nos contentar com pequenos arranjos que dão a impressão de resolver o presente, o momento. Seria pouco prudente tomar decisões apressadas num tempo de transição. Não conseguimos respostas para nossas indagações. Melhor formular bem as perguntas, colocar interrogações pertinentes. Desde os anos 70 do século passado fomos fazendo “experiências”. Os sacerdotes continuam fazendo o que sempre fizeram. O que sentimos é que as respostas precisarão ser dadas através de uma escuta nova e séria. Nada de incessantemente colocar remendo novo em trapos velhos. Precisamos conhecer as raízes e as motivações da “crise” que vivemos, da turbulência que atravessamos. Ouvir as pessoas, ouvir o bate-estaca do mundo, “ouvir” o grito dos acontecimentos e a Palavra. Nosso tempo é tempo de escuta, mais de escuta do que fala, mas de escuta do que de invenção de estratégias pastorais. Necessário se faz cuidar para que uma decisão apressada nunca venha a ser tomada como solução. Estamos buscando.

   8. Necessitamos tentar escutar. Soa aos nossos ouvidos a palavra de Pedro dirigida a Jesus: “Só tens palavras de vida eterna”. O arcebispo de Gênova, na Itália, Cardeal Angelo Bagnasco, escreveu Carta Pastoral (2009-2010) sobre as fontes da vida espiritual: Caminhar pelas sendas do Espírito. Lemos ali: “No imenso mercado de tantas palavras, o homem moderno busca a Palavra, como o comerciante que busca uma pérola preciosa. A Palavra da qual todos têm necessidade aponta para o sentido último deste frágil universo, de nossa tormentosa história. O homem busca luz a respeito da morte e da dor, especialmente quando esta última bate à porta. É desta palavra que todos têm desejo. As outras palavras ganham sentido na medida em que servem a este palavra decisiva”.

 9. Abeirar-se da Palavra… Do Evangelho emerge o semblante de Cristo: suas palavras, seus silêncios, seus gestos, seus sentimentos, seu relacionamento com o Pai. Todos os que buscam viver intensamente sua vida espiritual sempre buscaram esta fonte cristalina. Santo Inácio de Antioquia, dizia: “Entrego-me ao Evangelho como à carne de Cristo”. Os bispos italianos em documento recente escreviam: “Haveremos de nos nutrir da Palavra de Deus suspirando por ela como a criança busca o peito da mãe: para a vitalidade da Igreja esta é uma experiência essencial”.

10. Cotidianamente nos acercaremos de um trecho do evangelho. Para tanto basta fé e um pouco de boa vontade. É como expor-se à claridade do sol para tornarmo-nos luminosos. Dom Angelo Bagnasco afirma: “O Evangelho ‘frequentado’ todos os dias passa a ser nossa casa acolhedora mesmo sendo ele exigente e colocando nossa alma exposta”. O Evangelho não é um livro entre outros livros. É a Palavra de Deus transformado em vida para ser contemplada e narrada. Ele tem uma força que transforma e é derramada no fiel. Ele precisa ser recebido no mais profundo da esperança. Vale refletir sobre estas palavras de André Gide, um agnóstico francês: “Não é porque me disseram que tu és o Filho de Deus que escuto tua palavra: tua palavra é bela acima de qualquer palavra humana e por isso reconheço que és o Filho de Deus”.

 11Jesus continua conosco a nos explicar as Escrituras, com seu Espírito e na Igreja. Por isso lemos a Bíblia na Igreja e com a Igreja para não correr o risco de interpretações meramente subjetivas e distorcidas. Madeleine Delbrêl, conhecida leiga autora de livros de espiritualidade, dizia que não se deve ler a Bíblia querendo colocá-la moda de nossos dias na convicção de podemos “retocar” a Deus.

 12. As palavras dos homens, se não forem mera tagarelice, ajudam a intensificar nossa vida espiritual. Entre as muitas palavras que nos são ditas necessário identificar aquelas que são prenhes de sabedoria, que nos ajudam a trilhar o caminho da verdade, que nos iluminam a nos conhecer a nós mesmos. Sabemos que as palavras humanas podem veicular verdade e comunicação, mas podem igualmente ser instrumento de mentira, de engano e de violência. Homens que desde antiguidade até hoje escreveram com inteligência e humildade iluminam a humanidade. Devem ser tratados com atenção e gratidão. Esses homens de alguma forma exprimem uma palavra de Deus. Insistimos: há histórias humanas, aventuras heroicas, que nos falam de Deus e que alimentam a nossa vida espiritual, mesmo não sendo cristãos. Pensamos em tantos e tantas do passado e do presente, apóstolos da não violência, do amor fraterno, da partilha que gritam aos nossos ouvidos palavras de Deus. Pensamos em médicos, cientistas, biólogos que falam a fala de Deus com sua ciência e sua postura decididamente em favor do homem.

13. Não queremos perder o objetivo principal destas linhas. Estamos nos acercando de uma das fontes da vida espiritual que é a Palavra de Deus. Por isso, parece fundamental que em nossas fraternidades sejamos decididos de fixar, durante a semana, alguns dias ao menos, para um encontro comunitário com a Palavra. Queremos aqui transcrever algumas linhas do Ministro Geral dos Menores do seu texto: “Guiados pela Palavra, mendicantes de sentido”: “A leitura orante da Palavra é arte que procura realizar a passagem do texto bíblico para a vida e se apresenta como precioso instrumento que pode ajudar-nos a superar o abismo que muitas vezes percebemos entre fé e vida, entre espiritualidade e cotidianidade. A leitura orante da Palavra não é uma simples prática de piedade; é um método que visa a pôr em prática a palavra escutada; é uma hermenêutica existencial da Escritura que, antes de mais nada, leva o fiel a buscar Cristo na página bíblica, a pôr a própria vida em diálogo com a pessoa de Cristo que se nos revela e, finalmente, a ver iluminada com nova luz a própria vida cotidiana”.

14. Nada mais simples do organizar um momento de leitura orante da Biblia:

• Momentos de silencio diante de uma cruz, de uma imagem de Cristo ou do Santíssimo.
• Canto para fazer adensar em nosso interior o Espírito e a presença daquele que busca nos falar.
• Leitura de um texto (não longo de mais)
• Momentos de silêncio
• Talvez leitura de um texto de um Padre da Igreja ou de algum outro documento espiritual
• Silêncio, reflexão e troca de ideias
• Canto final

II. JANELA ABERTA

O presbítero e a oração

 

Estamos vivenciando através do site de nossa Província ou  pessoalmente a alegria de frades nossos que se tornam presbíteros.   Nesta  janela aberta de março algumas considerações sobre a oração do presbítero  extraídas de artigo de Enzo Bianchi (Rivista del Clero Italiano  11/2011)

 

Os presbíteros estão convencidos da necessidade de não negligenciar sua vida de  oração.  As atividades pastorais e outros encargos,  mais de cunho administrativo,  podem roubar o tempo necessário para a oração.  Pode ser que alguns presbíteros,  exercendo o ministério por meio da Palavra, possam sentir-se dispensados de consagrar um tempo específico à oração,   ou quem sabe  dizendo que a oração pessoal não seja prioritária.

Enzo Bianchi, prior da comunidade de Bose,  na Itália, alude a uma obra, pequeno texto, escrito por um bispo e um teólogo alemães, na qual  se abordam algumas prioridades  que os presbíteros devem ter presente para poderem viver autentica e fielmente  a vocação e o ministério recebidos do Senhor.  Enzo insiste: “O verdadeiro problema da vida do presbítero  não ó de fazer coisas novas, de procurar novas condições para o ministério, mas sobretudo de ordenar as prioridades, de esclarecer o que é decisivo, de obedecer o que é mais importante”.

Enzo transcreve as quatro primeiras prioridades  indicadas pelos autores:

• o modo de viver como presbítero é mais importante do que o que o presbítero faz enquanto tal;
• o que o Cristo opera pelo ministro é mais importante do que aquilo que o presbítero faz por si mesmo;
• viver em comunhão com o presbitério é mais importante  do que deixar-se absorver pelo trabalho;
• o serviço da oração e da Palavra é mais importante do que o serviço da mesa (cf. At 6,1-4)).

III. CRÔNICA

Na madrugada que chega

 

Por vezes ouvimos dizer que a noite foi feita para dormir. E, no entanto,  muita coisa ocorre durante a noite e de madrugada.

 

Há pessoas que gostam de acordar tarde, muito tarde.  Dizem que rendem mais à noite e , por diferentes razões,  dormem tarde e mesmo muito tarde. Acordam tarde e desconhecem aquilo que acontece nas madrugadas do mundo.

Há essas enfermeiras que circulam pelos corredores dos hospitais à noite, esses  motoristas das estradas e pilotos do ar que conduzem passageiros, de um bairro para o outro, de uma cidade para outra, de um continente para outro.  Eles precisam ficar despertos. Muitas vezes me chegam ao espírito imagens desses desastres aéreos que acontecem à noite.

Há  pessoas que rolam na cama de um lado para o outro de insônia.  Há mulheres que esperam ouvir o ruído da chave da porta aguardando a volta do marido que parece não voltar.  Dormem depois de horas de vigília sem ouvirem o doce girar da chave na fechadura.  Há pais que, aflitos, no coração da noite, aguardando o retorno dos filhos  dessas noitadas insanas.

Lembro-me daquele  menino de três anos pirracento que “infernizava” a vida dos pais com um choro estridente.  O pai, cansado, querendo dormir, leva-o até fora de casa, nas trevas da noite densa, como castigo devido ao seu choro.  O menino me dizia que naquelas trevas  nasceu nele o medo e o pavor diante de tantas coisas da vida…

Ficamos sempre impressionados quando as Escrituras falam da traição de Jesus.  O evangelista simplesmente diz, no momento de saída de Judas:  “E era noite”. Há a noite dos ladrões, dos assaltantes, dos que se ocultam nas trevas para que suas obras más possam ser realizadas.

A noite começa com o cair e o morrer da tarde. Esplendoroso esse momento em que o dia, antes de morrer.  A noitinha que cai  grita com tons de alegria e nos permite ver tonalidades  delicadas de todas as cores…. até que, num determinado instante, as trevas dominam tudo… Belo esse espetáculo quando podemos contempla-lo  sobre as nuvens, a bordo de um avião, ou sentado diante do mar de Ipanema ou no jardim de uma casa  em Campos do Jordão. Espetáculo esplendoroso esse do por do sol.  Depois das cores alegres chega o negrume do firmamento. Talvez algumas estrelas… O mar fica sério em Ipanema.  E o firmamento, em certas noites, coalhado de estrelas.  Outras vezes, nos dias de verão, a noite é  iluminada pelos raios e relâmpagos de um lado e do outro do céu.

E a vida retoma pelas cinco horas manhã.  Há padeiros  que já tiraram fornadas de pão quentinho,  há empregados lavando as lanchonetes e calçadas, garis vestidos de cor de abóbora  recolhendo essas toneladas  de lixo,   há  os motoristas dos ônibus e os condutores do metrô  que se apressam para tomar seus postos… e os meios de transporte lotam e mesmo ainda de madrugada a vida retoma… Os carros ainda podem circular livremente…mas a vida recomeça…

Bem de madrugada há esses religiosos e religiosas, lá pelas seis da manha ou mesmo antes, chegando de seus quartos.  Dirigem-se à capela, muito de madrugada.  Chegam de mansinho. Na véspera rezaram completas, guardam ainda no relicário da memória,  o refrão do salmo ou as palavras do velho Simeão. Agora querem recomeçar a vida com o sol que chega, com  a manhã que é símbolo da ressurreição do Senhor.  Rezam salmos, cantam hinos, escutam a Palavra. Há também essa missa bem cedo, às 6h da manha, quando o dia ainda não arrebentou.  Um sacerdote pausada e piedosamente celebra a eucaristia.  Na igreja há  balconistas e carteiros,   caixas de supermercados e advogados que, de madrugada,  querem estar com o Senhor.  Ou então é a missa das contemplativas  que passarão o dia na presença do Senhor, desde  muito cedo.

Um pouco antes das 5 da madruga, ou por aí,  há  esses rapazes e moças, sentados à mesas colocadas nas calçadas,  sarados e nem sempre lúcidos, tomando ainda alguma cerveja, falando bem alto,  falando da saideira… antes de irem para suas casas, sobretudo nessas madrugadas de domingo.  Muitos na Rua Augusta, no Baixo Leblon, ou  na Gávea  estão sentados em mesas colocadas na rua ou  em bancos diante da Praia de Copacabana perto da estátua de Carlos Drumond de Andrade. Muitos estão fora de si… drogados…alienados… de madrugada.

E bem cedinho, quase de madrugada, nas trilhas do Ibirapuera ou no calçadões de tantas cidades  há homens e mulheres passeando com seus cachorros… Há ainda mulheres correndo para deixar os  filhos pequenos na casa de suas mães para poderem ir trabalhar… de madrugada… quando ainda há restos da noite no ar…

E de todos os cantos começam a sair homens gordos e menos gordos, com bermudas e  camisas sem mangas… com áudio-fones, mulheres com problemas cardíacos ou não, gordas ou magras, fazendo cooper… É hora de cuidar da saúde…

E sempre nos lembramos com o coração essa Maria Madalena que foi, de madrugada, ao sepulcro do Senhor.  Ela não aguentava esperar o dia chegar… queria estar perto de seu Senhor de manhã, bem cedinho.  E pensamos nessas admiráveis palavras do Cântico do Exultet:

“Só tu, noite feliz, soubeste a hora em que o Cristo da morte ressurgia: e é por isso que de ti foi escrito: a noite será luz para o meu dia (…).Ó noite de alegria verdadeira, que prostra o faraó e ergue os hebreus, que une de novo o céu à terra inteira, pondo na treva humana a luz de Deus”  (Cântico do Exultet)

IV. E A FAMÍLIA, COMO VAI?

Por que tantos casais se desentendem?

 

1. Um grande número de casais chega a uma harmonia conjugal mais do que satisfatória.  Há vidas conjugais venturosas.  Há casais  humanamente realizados e cristãmente santos.  As estatísticas nos dizem,  no entanto, que há um significativo número de separações e de recasamentos.  A separação acontece em todas as fases do casamento:  primeiros anos,  em torno das bodas de prata e mesmo quando o sol existência começa seu declínio.  Há mistérios em tudo isso. Pode-se dizer que muitos casais não conseguiram construir seu amor conjugal e familiar e foram colocando muito lixo sob o tapete.

2. Há pessoas que nunca deveriam ter se casado.  É de se esperar que, no momento do casamento, ele e ela tenham ideia mais ou menos clara do que se está fazendo.  Em outras palavras: que tenham um projeto.  Estão em jogo vidas humanas: vida dele, vida dela e vida dos filhos que chegarão.  Diríamos que para o casamento, como também pela opção pela vida consagrada,  se torna necessária uma certa maturidade humana. Pessoas doentiamente  inseguras e  indecisas, pessoas  que exageradamente dependem de outros com dificuldade se aprumam na vida conjugal.

3. Um casamento  conhece fim quando as pessoas  não têm mais áreas  comuns de interesse e de entendimento.  Cada um tem o direito de buscar o que lhe é necessário para sua realização profissional, social.  Quando as pessoas se casam não abandonam aspectos da vida irrenunciáveis:  continuam a manter laços de atenção e de afeto para com sua família de origem,  procuram desenvolver os talentos e dons que a vida e Deus lhe deram,  crescem no aperfeiçoamento profissional,   reservam tempo para  seu crescimento na dimensão do corpo, do espírito e do coração.  Os que se casam, no entanto, saberão controlar a vida de tal forma que o casal crie zonas e espaços comuns. Não podem viver em mundo à parte.   Penso aqui de modo particular na dimensão da fé.  Quando as pessoas se casam precisam trabalhar na linha do crescimento de sua vida espiritual.  Há também  casais com religiões diferentes. Quando há um carinhoso respeito pela fé de um e de outro o casamento não conhece estiolamento nem fim.

4. As pessoas que se casam precisam respeitar-se mutuamente.  Ninguém pode ser transformado em objeto e coisa.  Palavras  rudes e gestos ásperos colocados seguidamente magoam e impedem o crescimento do casal e levam à separação.  O respeito haverá de se manifestar de múltiplas maneiras:  respeito-compreensão para com as limitações de um e de outro, respeito pela família, pelas convicções, pela religião, pelas limitações dele, dela.
5. Casamento e família conhecem  situações delicadas quando uma ou ambas as partes são pessoas profundamente egoístas. Há pessoas que no tempo da infância e da juventude  não aprenderam a renunciar a nada, sempre exigiram que seus mínimos interesses e gostos fossem satisfeitos. Tais pessoas, fundamentalmente egoístas, não são aptas a criar comunhão com outras pessoas, nem mesmo com o cônjuge.  Pode acontecer que no seio de famílias ditas “modernas” se instaure, querendo ou não,  a politica do cada um por si  e Deus por todos. Essa mentalidade se traduz por posturas de indiferença de uns para com os outros e no deixar sobre os ombros deste ou desta o peso de muitas tarefas que deveriam ser compartilhadas.

6. Já fizemos alusão à questão da indiferença.  Ela é grave. Pessoas não estão mais em sintonia com as pessoas,  não há empatia, há distanciamento do coração mesmo que o físico esteja perto. Amar  é manifestar interesse. Trata-se aqui da essência do amor em geral e, em particular, do amor conjugal.  O amor acaba quando não se chora mais as lágrimas do outro,  não se vive a alegria que o outro está vivendo, não se sente mais vontade de fazer bater o próprio coração ao ritmo do coração do outro.

7. Quase desnecessário lembrar que a infidelidade conjugal é uma das razões mais  graves que levam os casais a se desentenderem e a buscar a separação.  Esta não acontece inopinadamente.  Ela vai sendo preparada ao longo do tempo.  Há aqui um distanciamento afetivo. Há longos períodos de relacionamentos conjugais e sexuais insípidos e sem elã.  Há um cansaço generalizado.  Não é fácil refazer o tecido conjugal esgarçado com gestos de infidelidade.

8. Feitas estas considerações dizemos que se torna  fundamental um atendimento particular às famílias.  O sistemático atendimento às famílias se chama pastoral familiar.  Praticamente se trata de agentes de pastoral que se disponham a reunir um grupo de casais e fazer de sorte que estas pessoas  cresçam:   grupos de namorados firmes antes do casamento,  grupos com pessoas casadas de poucos anos, reuniões para pais que têm filhos pequenos, construção do casamento no meio dia da vida.

V. UM CERTO FRANCISCO DE ASSIS

O jovem Francisco se encontra com os pobres

 

Viver é sempre um desafio. Viver cristãmente requer atenção e pericia na linha da sabedoria. Ao longo de um certo tempo Francisco de Assis foi tentando descobrir seu caminho.  Foi tentando descobrir o sentido de sua vida.  O encontro com os pobres parece ter marcado seu caminho de discernimento vocacional.

 

1. Nascemos, crescemos e somos colocados diante de encruzilhadas existenciais.  Nosso caminho existencial não é revelado da noite para o dia.  Há escolhas que vamos fazendo ao longo da estrada. Há pessoas que abrigamos em nossa intimidade. Vamos descobrindo os elementos de nossa vocação, dessa  convocaçao da vida a que sejamos gente e gente de valor. É sempre preciso dar tempo ao tempo.  Há encontros com pessoas, circunstâncias particulares a cada um,  visitas que nos são feitas, inspirações do alto.  Podemos nos espelhar no caminho que foi sendo descoberto e palmilhado por Francisco de Assis.   Aquele rapazinho de Assis que começava a sentir o gosto, o poder e a força do dinheiro. Ele era herdeiro de uma pai que estava sendo vitorioso no comercio de tecidos.  Andava ele, o entanto, visitando seu interior e sentindo  fome de plenitude.  Era preciso respeitar as etapas. Depois da prisão, da doença esse moço  sentia que seu interior ia se transformando. Era o encontro consigo mesmo.

2. O encontro com os pobres marca a vida de Francisco.  Continuava ele   cheio de interrogações e inquietações.   O segundo encontro foi marcado e caracterizado pela saída de si mesmo e abertura ao mundo dos outros, de modo particular o mundo dos pobres.  Num primeiro momento manifesta uma certa ou forte reserva para com o mundo dos mendigos, pobres, andarilhos.  Num segundo momento adota, talvez, uma postura paternalista: resolve dar esmolas. E termina se identificando com os pobres.  Ele será conhecido através de todos os tempos como o  pobrezinho, o poverello.  Nutrirá uma paixão pelo  Cristo pobre e  da pobreza fará sua esposa, a dama pela qual se apaixona, a Madona Povertà.  A  Legenda dos Três Companheiros  faz uma observação que vale a pena ser ressaltada.  Ele dizia a si mesmo: “  Visto que és generoso e cortês para com os homens dos quais nada recebes, a não ser favor transitório e fútil, é justo que, por amor de Deus que é generosíssimo em retribuir, sejas cortês e generoso para com os pobres”  (Legenda dos Três Companheiros,  3,3).  Um pouco mais adiante se diz:  “Embora fosse comerciante, era distribuidor muito leviano das riquezas mundanas”.

3. Certa vez, enquanto estava preocupado com o trabalho de vendedor de tecidos, chega um pobre, pedindo-lhe esmola pelo amor de Deus. Não acolhe nem o pedinte, nem o pedido.  Se o homem tivesse pedido esmola em nome de um “figurão” da cidade talvez ele tivesse atendido à solicitação.  De repente, “entrando em si mesmo”,  Francisco teria ido atrás do mendigo e  feito uma generosa esmola.  Talvez a palavra generosidade seja  muito apta para explicar o caminho de discernimento vocacional de Francisco e o nosso.  A alma franciscana é generosa.  Nunca mais Francisco negaria esmola aos pobres.  Generosidade significa abertura aos outros.

4. Sempre fora ele dadivoso para com os pobres. Dava-lhes as próprias roupas. Comprava objetos para o decoro das pobres igrejinhas de Assis  e escondido do pai mandava os presentes para os pobre sacerdotes das pobres igrejas.  Aproveitava a ausência do pai e enchia a mesa de pães para os pobres.  Fixemos este aspecto:  pobre de coração é aquele que é desprendido.

5. Outro momento importante da caminhada de discernimento cristão de Francisco se deu em Roma, no aspecto da pobreza.  Aconteceu, segundo a Legenda dos Três Companheiros,  que Francisco, por motivo de peregrinação,  chegou a Roma.  Entrando na Igreja de São Pedro se deu conta que as esmolas eram mesquinhas.  Inquietava-se com o fato. Ali estando o túmulo de Pedro as pessoas deviam ser mais generosas. Francisco fez um estardalhaço.  Pegou moedas em sua bolsa e as jogou com bastante barulho.  Ao sair havia pobres pedindo esmolas. Resolve  trocar suas roupas com as roupas de um mendigo.  Começou a pedir esmolas em francês.  Não bastou a generosidade para com os pobres, mas desejava experimentar o que experimentam os pobres.  Por ai vai seu discernimento vocacional.  “A vocação é autêntica quando não se reduz a uma mera relação intimista  com Deus, mas abre a pessoa  aos serviço dos outros” (F. Marchesi).

6. O tema da pobreza é complexo. Não é aqui o lugar de fazer considerações teológicas e espirituais.  Fique claro: Francisco foi compreendendo que a pobreza era uma trilha real porque  Jesus,  escolheu para si esse caminho, nascendo pobre no presépio, vivendo pobremente, não tendo nem mesmo uma pedra para reclinar a cabeça.  Morreu nu e pobre no alto da cruz.  Pobreza para Francisco tem um nome:  Jesus.  Francisco será pobre de bens, pobre de seus interesses pequenos pessoais.  Livre de todo apego para ser somente de Deus, de seu amado.

7. Vivemos num mundo de opulência e de gastança.  Há muitos jovens e adultos literalmente estragados pela gastança. A ordem é consumir para  fazer girar a economia e  ajudar o crescimento do PIB. Mas… Os franciscanos haverão de ser pessoas desejosas de  viver o progresso no mundo, mas sempre mostrarão posturas de simplicidade e de não se apoiarem no dinheiro e  no poder. Parece importante cultivar esse espírito de despojamento: na maneira, no estilo de se viver a família, na maneira de conviver com os outros. Não querer sempre o melhor para si.  Nunca se deixar dominar pelo dinheiro.

8. Muitas de nossas reflexões se inspiraram em  Fernando Uribe, OFM, em texto que fala do processo vocacional de Francisco  (Verdad y Vida, enero-abril 2001, p.  75ss).  Terminamos nossa reflexão com palavras do autor:  “O encontro de  Francisco com os pobres é garantia da autenticidade de sua vocação.  Sua busca de Deus não se reduziu a um relacionamento intimista de solidão, nem sua prática  da pobreza era uma simples ação ascética de domínio próprio e de libertação das coisas terrenas.  Seu encontro  com Deus na oração  tem no encontro com os pobres a demonstração de que não está buscando a si mesmo”.

Para continuar a reflexão

Como Francisco foi descobrindo a pobreza  e os pobres
Legenda dos Três Companheiros  8-11 

Para refletir

1. O que chama sua atenção no tocante às posturas de Francisco para com os pobres?

2. O verdadeiro pobre de coração é aquele que esvazia-se de si mesmo: O que está frase quer dizer.

3. O que significa viver a pobreza no mundo de hoje?