Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Março 2011

I. LEITURA ESPIRITUAL

Os conselhos evangélicos, terapia espiritual?

“Vossa vida está oculta com Cristo em Deus” (Cl 3,3)

Aqueles que seguem os conselhos evangélicos, ao mesmo tempo que procuram a santidade para si mesmos, propõem, por assim dizer, uma “terapia espiritual” para a humanidade, porque recusam a idolatria da criatura e tornam de algum modo visível o Deus vivo. A vida consagrada, especialmente em tempos difíceis, é uma bênção para a vida humana e para a própria vida eclesial (Vita consecrata, n.87).

 

1. Uma religiosa e um religioso. Ela se trajava com simplicidade. Uma saia cinza e uma blusa clara. Tinha uma pequena cruz de madeira pendendo do pescoço. Saiu de seu quarto e foi para a cozinha. Queria fazer um doce de abóbora com coco para a comunidade. Vida simples e despojada. Uma religiosa. O coco ralado estava no armário da despensa e ela começou a descascar duas abóboras pequenas. Tudo com simplicidade. Uma mulher de seus 40 anos que fizera a promessa de vida religiosa com os votos de uma vida pobre e despojada, como esposa do Senhor e desejosa de fazer a vontade do Amado. Ele, um religioso, estava entrando em casa pelas dez da noite. Tinha acontecido mais uma quinta-feira de curso sobre a espiritualidade franciscana. Passa rapidamente pelo refeitório, toma um copo de suco. Troca uma palavra com um confrade. Entra na capela, reza completas, faz uns breves momentos de adoração e vai descansar. Um religioso. Vidas singelas e cheias de significado. Desde a juventude, tanto um quanto outro, compreenderam que haveriam de ser do Senhor e dos irmãos. Seguir o Senhor numa vida de pobreza, obediência e castidade. Seres que recusaram a idolatria da criatura e, pelo seguimento dos conselhos evangélicos, verdadeiras transparências do Altíssimo.

2. Na capela das irmãs carmelitas de Petrópolis (Rua Barão do Rio Branco), por sobre as grades que separam a comunidade da dita capela, há uma frase em latim: Vita vestra abscondita est cum Christo in Deo (Cl 3,3). Sempre me impressionou aquele rigor, aquela severidade. Mulheres frágeis, atrás das grades, que tinham sua vida escondida em Cristo. Sem vê-las sentia que elas eram importantes para a humanidade e para a Igreja. Depois compreendi que assim é que deve ser a vida de todo cristão: uma vida escondida com Cristo em Deus.

3. Em nossos dias, por vezes, em certos ambientes, pode-se ter a impressão que é meio fora de moda falar dos conselhos evangélicos. Os religiosos fazem a profissão, vivem os conselhos, mas preferem não falar muito a respeito de cada um deles. Parecem meio perplexos com tantas interpretações. Há muitas pessoas que desconfiam da eficiência de vidas que seguem os conselhos. Muitos religiosos mergulham em suas tarefas e isso parece bastar. Os que se debruçam sobre o tema da vida consagrada são unânimes em afirmar que ela é fundamental para a vida da Igreja. Ela torna viável e visível a radicalidade do Evangelho. As exigências mais radicais do Evangelho estão estampadas na vida dos religiosos. A Igreja necessita desses homens e dessas mulheres. Uma Igreja local sem vigorosas expressões de vida consagrada é uma Igreja empobrecida. Necessita desses homens e dessas mulheres que, vivendo reclusos em mosteiros ou em fraternidades atuando no meio do mundo, se tornam, no dizer de Congar, “parábolas do Reino”. Atestam que a radicalidade do evangelho está encarnada em suas vidas.

4. Miguel de Unamuno escreveu: “O ofício dos religiosos não é vender pão, mas ser fermento”. Gianluigi Pasquale, OFMCap, fala da vida consagrada como sintoma da verdadeira Igreja. Não há possibilidade na Igreja de visualizar a radicalidade evangélica sem a referência essencial à vida consagrada. Os fiéis cristãos, olhando a vida dos religiosos, mormente daqueles que já foram declarados santos, constatam que é possível viver a boa nova do Evangelho de maneira radical. A vida consagrada nunca faltou na Igreja. Os religiosos vivem no agora do mundo o mundo que vem. Trata-se do famoso argumento escatológico da vida religiosa e que daria, segundo muitos, sentido aos votos (Remetemos para o estudo do frade capuchinho “I consigli evangelici, guardiani della totalità del Vangelo”, in Verdad y Vida 255 (2009) p. 477-490). Curioso o título que o frade dá ao seus estudo: os conselhos evangélicos como guardiães da totalidade do Evangelho. O Autor é de parecer que o aspecto escatológico da vida consagrada, assinalado em Vita Consecrata, não foi suficientemente valorizado. No seu texto transcreve palavras do documento: “Dado que hoje as preocupações apostólicas se fazem sentir com maior urgência e o empenhamento nas coisas deste mundo corre o risco de ser cada vez mais absorvente, torna-se particularmente oportuno chamar a atenção para a natureza escatológica da vida consagrada (…) É nesse horizonte que melhor se compreende a função de sinal escatológico. De fato, é constante a doutrina que a apresenta como antecipação do Reino futuro” (n.26).

5. Anna Bissi, psicoterapeuta, escreve sobre os conselhos evangélicos como terapia espiritual para a humanidade (in Consecrazione e Servizio, n.10/2010, p. 71-75). Servimo-nos aqui, em parte, de suas reflexões. A autora começa sua reflexão retomando um famoso dito de Santo Inácio de Antioquia. O bispo suplicava que seus leitores ou ouvintes não impedissem o seu martírio. Para o velho bispo o sacrifício da vida correspondia à plenitude de humanidade. Somente passando pela morte a pessoa revela sua verdadeira grandeza. Essas palavras podem parecer exageradas, mas não devem ser interpretadas como masoquistas. Olhando mais profundamente elas rescendem verdade. A pessoa humana é somente humana quando aberta ao amor, capaz de relação e portanto de dom e de acolhimento. Aos olhos da Igreja o martírio sempre apareceu como sinal de um grande amor, portanto um lugar onde a dignidade do homem se manifesta em toda a sua plenitude.

6. Quando na Igreja cessa o martírio, seu lugar é assumido pela vida religiosa, chamada a viver a mesma tensão escatólogica, quer dizer o homem em sua completude, e por conseguinte, em sua dimensão transcendente, ou seja, a capacidade de não dobrar-se sobre si mesmo, mas dar-se ao outro no amor. Observados deste ponto de vista os conselhos evangélicos aparecem sob diferentes. Não são meios repressivos, e não constituem um obstáculo para a liberdade humana. Aparecem como remédio para o homem doente de egoísmo, e, portanto, não plenamente homem. Assim, como diz Vita Consecrata, eles aparecem como forma de terapia da pessoa humana. O coração de cada pessoa é um campo de batalha entre as forças egoísticas e aquelas que apontam para o amor. Somente quando vive no amor e para o amor, aceitando entrar na dinâmica de crescimento feita de morte e ressurreição, que vai tocar cada nível de sua existência, corpo, psique, espírito, somente então o ser humano se torna ele mesmo. Não somente o crescimento espiritual, na verdade, é estruturado como passagem da morte – dada pelo batismo, renovada através dos sacramentos, a oração, a ascese – à vida, mas também o desenvolvimento psíquico se inscreve no mistério da Páscoa. Ora, os conselhos evangélicos estão prenhes da força do mistério pascal. Os que perdem, ganham. O grão morre para dar fruto.

7. A evolução da pessoa é um caminho em que se alternam frustrações e gratificações, satisfações e privações. A única lei do aceitar, permitir, consentir ao que é solicitado mantém a pessoa num dobrar-se narcisista inicial e bloqueia sua humanidade, enquanto que o equilíbrio entre o receber e o dar, entre a plenitude e a falta abre o indivíduo ao desejo, o estimula ao dom, dilata seu universo. Pobres esses seres que vivem girando em torno de suas necessidades verdadeiras e falsas de coisas, do ter. Pobres e tacanhos seres que nunca conseguiram viver um relacionamento conjugal e familiar de dom límpido. Pobres os que ao longo da existência sempre se preocuparam em fazer valer sua vontade, seus desejos e que nunca, em todas as situações descritas foram capazes de morrer. Quem perde a vida, a encontra. Se o grão de trigo não morre não pode dar fruto.

8. Os conselhos evangélicos são terapêuticos porque se manifestam como um modo – não o único, mas sem dúvida muito importante – de entrar nesse dinamismo de plenitude e de falta, de morte e de vida, que permite que o ser humano cresça e o torna verdadeiramente humano, eliminando as falsas certezas, os ídolos através dos quais as pessoas pensam serem imortais, as máscaras que vamos usando para não enfrentar a verdade de nós mesmos. Os cristãos se convertem… Se não se convertem, perecem. Ora, a vivência dos conselhos evangélicos nos torna pessoas que apreciam o amargo e rejeitam o doce.

9. Por que os votos “entraram” em crise? Não é aqui o espaço para abordar em profundidade a questão. Fato que eles continuam válidos e são capazes de levar os que os professam a uma profundidade humana e cristã. Talvez se deva dizer que por vezes os que fazem os votos tenham perdido o fogo do começo. Num texto bastante instigante, Frei José Rodriguez Carballo, faz uma distinção entre uma formação para a observância e uma formação para a fidelidade. O texto não se refere em primeiro lugar aos conselhos, mas visa à formação do frade em geral. Os votos precisam ser vividos a partir de uma paixão por Cristo. Do contrário tudo é relativo, tudo é jurídico, tudo é seco. Há uma observância (quando há) fria. Assim o Ministro Geral se exprime no seu texto Com lucidez e audácia: “Mesmo sendo óbvio que seria errado contrapor a observância à fidelidade, seria também errado não distingui-las. A fidelidade inclui a observância, mas não se identifica com ela, supera-a. Em outras palavras, a observância é somente uma parte da fidelidade. Pode-se ser observante e não ser fiel, pois a fidelidade, como a fé, refere-se a uma pessoa: enquanto a observância faz referência a uma lei e consiste em seu cumprimento. Nossa vida tem como fim seguir “mais de perto a Cristo”. Uma primeira exigência de formação é, pois, formar na e para a fidelidade a uma pessoa: a pessoa de Jesus. Não queremos seguir uma ideologia, mas uma pessoa: Jesus Cristo”. O formador deverá levar o frade a descobri-lo como pessoa, para depois amá-lo como amigo. “Esse encontro pessoal com Jesus Cristo não deve ser dado como garantido na vida dos frades. Alguém pode fazer a profissão solene sem ter-se encontrado com pessoa de Jesus. Nesse caso a ideologia ocupará o lugar de Jesus. Mas uma ideologia pode trazer consigo: fundamentalismo, divórcio entre vida e doutrina e frustração (…) Só quem descobre Jesus como uma pessoa e como amigo poderá entregar-se totalmente a ele. Só assim as exigências mais radicais do seguimento de Jesus poderão ser fonte de alegria. Jesus não pode aparecer aos olhos dos frades como o rival de sua realização, mas como amigo que tudo pede porque antes tudo deu (…) Só uma pessoa que realmente se encontrou com Cristo, que se deixou seduzir pela beleza do Senhor e tenha provado sua amizade, estará disposta a vender tudo para seguir o Senhor com a radicalidade que tal seguimento exige: até a morte”. Votos sem paixão por Cristo é uma contradição. Emitir votos sem convivência com Cristo é mero legalismo e as interpretações passam a ser as mais díspares e controversas.
10. Xavier Pikaza Ibarrondo, professor em Salamanca, falando sobre a vida religiosa: “O Deus do evangelho não impõe obrigações legais, mas apresenta uma palavra simples de fidelidade diária. Damos demasiada importância a cerimônias externas dos votos religiosos, como ato social e oblação vitimista. Deus não exige vítimas, quer amigos. Não busca seres submissos mas fiéis que cresçam na liberdade. Os votos serão vividos como gestos de plena liberdade…”

11. Pobreza ontem, pobreza hoje. Quantos de nós, em nossa infância vivemos o duro da pobreza quase miséria que nos fortaleceu por dentro e nos fez menos moles. Aí está esse mundo do dinheiro, do lucro, das bolsas, das “bolhas”, do capital que foge, dos lucros astronômicos, mundo das roupas bonitas, dos carros suntuosos, da aquisição de tudo o que é produzido, sociedade do consumismo, da corrupção, da quebra de bancos… mundo em que as pessoas acreditam que são na medida de suas posses. A segurança do ser humano não está no dinheiro, nas aparências do ter. A pobreza faz com que o homem tenha consciência de não encontrar nem felicidade nem segurança no possuir. As pessoas, diante da precariedade da vida confiam nos bens. Exageram tal confiança. De repente o religioso sem dinheiro, sem posses, sem aparência, vivendo de seu trabalho é antídoto desse mundo de novos aparelhos, de carros novos, de casa sofisticada, de passeios em torno do mundo, seres vazios. O religioso se encanta com a singeleza do Filho do Homem que nasceu na singeleza de uma gruta e morreu na nudez da cruz. Os que fazem o voto de pobreza são uma terapia para a ímpia sociedade de consumo. Não vive de verdade quem não morre.

12. A posse não é o único ídolo que construímos na tentativa de encontrar a felicidade evitando a frustração. Outra grande tentação que cada ser humano experimenta é a sede do poder, da ilusão que, afirmando a própria vontade, seremos vitoriosos e fortes. A sedução da onipotência acompanha o homem desde as suas origens, levando-o a um jogo perverso do qual nunca sairá vitorioso. Tal tentação torna a pessoa cega e incapaz de ver a própria mesquinhez de sua sede de poder: ambição por cargos, afirmar sempre seu ponto de vista, marcar os relacionamentos fazendo que os outros se subordinem, praticamente querer ter preeminência em tudo. O conselho da obediência aparece como uma terapia que tenta não morrer sempre impondo sua vontade. Enquanto a pobreza lembra ao homem que não vale a pena preocupar-se com a própria vida, pois temos um Pai que sabe do que precisamos, a obediência chama atenção para uma Vontade capaz de realizar nossos anseios mais profundos para além de nossas pequenas e grandes expectativas. Terapia da vontade de poder, do individualismo, da imposição de nossos caprichos. Não ter medo de deixar uma posição e viver a singeleza do lava-pés. Os religiosos, ao longo de sua vida, estão preocupados em fazer em suas vidas a vontade de Deus. Felizes aqueles que, em suas casas, na Leitura orante da Bíblia e no cultivo da delicadeza de consciência, dizem sempre que vieram para fazer a vontade do Pai. Há religiosos que são exemplo de fidelidade a Deus. Todas essas palavras, no entanto, sem paixão por Cristo são flatus vocis…

13. Finalmente o mundo dos relacionamentos, da valorização ou da coisificação do outro, mundo dos relacionamentos sexuais de qualquer jeito e de qualquer modo, aberrações e dramas, infidelidades e duplicidade de vida… e os religiosos emitem um voto de castidade consagrada. A castidade é a terapia dos relacionamentos. Todo amor seja ele religioso ou conjugal deve crescer na transcendência, na capacidade de esquecer-se para fazer-se dom para o outro. Como são miseráveis essas relações sexuais de qualquer jeito. O mistério pascal está inscrito em toda forma de vida, na do casado como na do celibatário. O celibato é terapêutico porque tende a transformar o amor egocêntrico num amor dom. “Através da renúncia à vida conjugal e à paternidade-maternidade opera-se na vida do religioso aquela transformação que se opera no interior do matrimônio através da acolhida da diferença do cônjuge, realidade pela qual o eu narcisista é crucificado e faz prevalecer o dom de si.

14. Os conselhos evangélicos, que se destinam a todos os cristãos, mas que de modo particular informam a vida dos religiosos, são uma terapia capaz de salvar o homem das tentações mais profundas e perigosas, que o levam à verdadeira morte, para restituir-lhe a dignidade de filho de Deus. Por ter a convicção de ser um filho amado que o cristão pode não se deixar levar pela tentação da posse, do poder e do amor captativo e egoísta para empreender a aventura do amor verdadeiro. Precisamente porque filho o ser humano pode descobrir que a passagem através da ausência, da falta, do vazio, das coisas pequenas são experiências apenas aparentemente limitadoras, quando na verdade se revelam como meios através dos quais a capacidade de desejar se dilata, e a de amar se regenera. Para tanto, os que querem seguir os conselhos precisam ter experimentado a paixão pela pessoa de Jesus, o pobre feliz, o obediente delicado e o amoroso para com o Pai, seu único amor… Quem puder compreender, que compreenda…

15. Os conselhos evangélicos não podem, pois, ser interpretados e compreendidos fora da dinâmica das relações. Não são apenas meios de cultivo de espiritualidade. Constituem uma modalidade através da qual é possível viver como batizados, como seres ressuscitados, para sermos assim introduzidos naquela “vida escondida com Cristo em Deus” (Cl 3,3) de que fala São Paulo. Somos convidados a viver em fraternidade, a usar dos bens na singeleza, a não sermos superiores a ninguém e a viver um amor especialíssimo com o Esposo.

16. Espero que a irmã que estava preparando o doce de abóbora com coco tenha sido bem sucedida em seu labor. Pode ser que ele tenha ajudado a fazer com que a reunião das irmãs à noite tenha tido um ar de maior cordialidade. Talvez alguns possam olhar para aquela fraternidade e simplesmente dizer: “Como as irmãs se estimam!” Espero que o religioso que chegou a casa depois do curso de espiritualidade torne Deus mais visível para nós. Espero que a vida as irmãs carmelitas de Petrópolis, vida escondida com Cristo em Deus, seja também nossa vida de franciscanos da Imaculada. Os que seguem de verdade os conselhos evangélicos não são funcionários de uma organização mas seres felizes e leves que enfeitam a vida da Igreja.

Questões que ficam… e que podem ser debatidas

1. Será que realmente os conselhos evangélicos são uma terapia para o mundo de hoje? Há pessoas interessadas em tal tratamento? Quais as doenças dos nossos tempos que são curadas com os conselhos? Quais são as doenças e como podem ser curadas?
2. O que significa, de fato, viver pobremente numa fraternidade?
3. Podemos dizer que andamos perscrutando a vontade de Deus em nossas vidas? Como ela anda se manifestando? Francisco dizia que não queria viver fora da obediência. O que isso quer dizer?
4. No mundo há aberrações no campo da sexualidade, seduções estranhas e assédios a crianças. O que colocamos, de verdade, atrás do voto de castidade consagrada? Como uma fraternidade é enriquecida com a vivência do conselho de castidade perfeita?

II. PÁGINAS FRANCISCANAS

O voto de pobreza

 

Nossa Página Franciscana de março é da autoria de Frei Giacomo Bini, nosso antigo Ministro Geral. Ele escreve sobre o voto de pobreza (A Ordem hoje. Reflexões e perspectivas, p. 35-37)

Portanto, nada de vós retenhais para vós, para que totalmente vos acolha aquele que totalmente a vós se oferece (Carta a toda a Ordem, 29).

1. O voto de pobreza nos liberta da avidez do acúmulo, da sede insaciável de ter o mais possível, o melhor e logo, porque encontramos nossa “suficiente riqueza” (EV 4). Protege-nos contra qualquer tipo de posse e, por isso, não absolutizamos a casa em que vivemos nem o trabalho que fazemos nem as compensações que “merecemos”, sejam elas materiais ou psicológicas. “Quem não renuncia a tudo o que tiver…”: o Senhor não exige renúncia de alguma coisa, mas de tudo, para tornar-se o tudo do homem. “Os frades não se apropriem de nada, nem de casa nem de lugar nem de qualquer outra coisa” (RegB 6,1). Não se trata de ascese egocêntrica, mas de uma caminhada de justiça, solidariedade, amor pelos outros e com os outros; de uma caminhada de liberdade pessoal e comunitária, que tornará mais fidedigno o nosso anúncio missionário.

2. O Mestre e Senhor da messe e da vinha nos enviou a evangelizar como peregrinos, sem apropriar-nos de “nosso” trabalho, de “nossa” gente ou de “nossos” resultados. Certamente devemos trabalhar com generosidade e seriedade, fazendo frutificar as qualidades e os dons que o Senhor nos deu, mas o sucesso não é o único critério de medida a ser considerado: devemos sempre confrontar-nos com o projeto evangélico e comunitário de vida para que se torne testemunho e sinal que pertencemos ao Senhor e não ao “nosso” trabalho de forma a estarmos prontos, como Abraão, os apóstolos e Francisco, a “deixar a nossa terra” para buscarmos horizontes desconhecidos. Com frequência, nossas relações fraternas são perturbadas pela falta de liberdade em relação ao dinheiro e às coisas. Algumas vezes, já não conseguimos distinguir o necessário, do útil e do supérfluo. Facilmente nos deixamos prender pela lógica consumista do mundo, pecando por injustiça ou por falta de solidariedade em relação aos que não têm o necessário, esquecemos de “restituir” tudo a Deus, como quer Francisco (RegNB 17,17) e negligenciando a dependência dos outros no uso do dinheiro.

3. Alguns irmãos (não são muitos) têm dificuldades em pôr em comum a recompensa recebida por seu trabalho (muitas vezes desejado e procurado porque rentável!) ou qualquer doação tornando-se, assim administradores diretos de “seus bens”: isso não é conforme a Regra e pode destruir a vida fraterna. Quantos abusos com o dinheiro; quantos irmãos sacrificados por estruturas pouco evangélicas e sem vida: que Deus nos perdoe!

4. A liberdade na pobreza, facilmente, nos torna homens de comunhão, de solidariedade, de partilha e nos ajuda a sermos criadores de relações novas, alegres e proféticas no meio dos homens de nosso tempo.

III. ORAÇÕES

Tudo começa de novo Oração da Manhã

 

Mês após mês, queremos oferecer aos nossos estimados
leitores eletrônicos preces, orações para o dia-a-dia da vida.

 

Tudo começa de novo Oração da Manhã

O dia começa para nós com o olhar voltado para o Senhor, com a oração da manhã.

Senhor, mais um dia de minha vida está se abrindo.
É como se as cortinas se abrissem novamente
para a aventura de tantas horas de minha existência.
Tudo passa tão rápido.
Sei que tu me conheces e me perscrutas
e serás luminosidade na trajetória deste dia.
Obrigado pelo descanso da noite e pela força de tudo recomeçar
como se nada tivesse sido feito.
Nada do que farei será feito sem teu olhar.
Espero poder hoje dar algumas “fugidas” e retirar-me para a cela
de meu interior e dizer-te umas poucas palavras de entrega e de amor.
Que teu olhar acompanhe o meu trabalho,
ilumine minhas preocupações
provoque em mim gestos de entrega confiante
em tuas mãos.
Olha para os pequenos da terra que lutam, que correm e não
têm nem mesmo o que comer.
Olha esses doentes que se contorcem de dores
em seus leitos de sofrimento
Olha para aqueles que perderam a esperança
no dia de amanhã.
Que todos aqueles que passarem por mim possam
sentir chegar até seu coração uma nesga de esperança.
Que hoje à noite eu possa dizer,
apesar de minha fragilidade e de meu pecado,
que fui servo do Reino que teu Filho Jesus
veio implantar nesta terra de divisão e de ódio,
de mentira e de egoísmo.
Nesta hora te consagro meus lábios, meus olhos,
meus ouvidos e toda a minha vida.
Louvado, enaltecido, glorificado sejas Tu,
engrandecido seja teu santo nome,
Deus de todos os tempos
e Senhor adorável de minha vida.

Louvores pelo dom da água

O poeta e discípulo fala da água, de muitas águas. Canta louvores à criatura água.

Bendito sejas, meu Senhor, pelas águas do riacho,
Discreta, cristalina e humilde fenda.
Teu Espírito canta em mim, silencioso murmura:
“Sou a Ternura de cada dia novo que chega”.

Bendito sejas, meu Senhor, pelas águas do Jordão,
Paixão de Cristo, caminho de Aliança.
Teu Espírito canta em mim um canto de libertação:
“Sou a nuvem do povo peregrino!’

Bendito sejas, meu Senhor, pelas águas de Caná,
Núpcias da terra, vinho novo da festa.
Teu Espírito canta em mim, promessa dos profetas:
“Sou a explosão dos aleluias!”

Bendito sejas, meu Senhor, pela água desta cruz,
Brotada junto como sangue do Cristo crucificado.
Teu Espírito clama em mim, ó Deus humilhado:
“Sou a Ferida que cura o homem que crê!”

Bendito sejas, meu Senhor, pelas águas de nossos poços,
O de Jacó e aqueles de nossos desertos.
Teu Espírito canta em mim, sopro do universo:
“Sou, para vós, a Agua viva e a sede de vossas noites!”

Bendito sejas, meu Senhor, pelas águas do batismo,
Ressurreição de Cristo onde floresce a esperança.
Teu Espírito canta em mim, novo renascimento:
“Sou a Fonte e a Vida da terra que amo!”

Michel Hubaut, OFM
Pour prier avec le 7 sacraments
Le Chalet, Paris p. 15

Oração a Jesus suspenso na cruz

Os discípulos de Jesus gostam de permanecer em meditação diante da cruz daquele que amam.

Suplico-te, Senhor, tu que pendes da cruz!
És minha esperança, meu refúgio, minha misericórdia.
Tem piedade de mim e ensina-me a te amar;
porque é meu desejo te amar
embora não saiba como fazê-lo.

Suplico-te, tu que ouves os que te amam,
confiante nesse amor que sobre a cruz demonstraste pelo homem,
faze com que eu não experimente enfado nem vergonha
de me postar diante de tua cruz;
que minha alma encontre suas delícias
em permanecer sob os teus olhos, com fidelidade e que teus olhos
tenham gosto em me olhar, com misericórdia.

Concede-me a graça de chorar minha miséria,
dá-me a alegria de ver minha tristeza transformada em alegria.

Tu que pediste por aqueles que te crucificavam
não te interessas por aqueles que te adoram?

Pregado na cruz não esqueceste a piedade.
Será que no céu esquecerás a misericórdia?

Piedade, Senhor, piedade de mim,
perdoa-me tu mesmo ou pede ao Pai que ele me perdoe;.
Por isso permaneço diante de ti.
Creio e confesso que, no lenho da cruz
atrais aqueles que te amam do fundo do coração.
Atrai-me Senhor que amo
para que eu sinta o poder de tua cruz em mim…

Senhor, peço-te como pedia o ladrão:
“Lembra- te de mim em teu reino!”
Recorda-te, Senhor, tu já ouviste uma vez esse pedido.
Aceita esse grito que brota de mim
como aceitaste aquele que te dirigiu o ladrão.
De teu reino ouve-me
como o atendeste no alto da cruz.
Mestre, diz a teu servo:
“Hoje estarás comigo no paraíso”

A partir da revista Prier, n. 69, p.3-4

IV. E A FAMÍLIA, COMO VAI

Quando não se tem mais nada a dizer…

 

É gostoso viver quando nos damos conta que crescemos juntos. Quando estamos juntos só por força das circunstâncias tudo é monotonia e peso. Pessoas vazias nada levam para o encontro. E os encontros se tornam insossos.

 

1. A vida conjugal e familiar cresce e se desenvolve quando seus membros se encontram e têm coisas a se dizer. Os relacionamentos entre as pessoas, em geral, se alimentam de riquezas e de profundidades de cada um. Quando o coração fica seco e a mente nada tem, a vida familiar se torna pesada. A partilha das riquezas é substituída pela televisão em alto volume, pelo som descontrolado, por discussões e troca de ideias a partir de banalidades, repetição das coisas monótonas da rotina, temas quaisquer profundamente banais.

2. Viver é conviver. Conviver é enriquecer-se mutuamente. Viver em família é conviver em família. A casa não é pensão e a mesa da casa não é mesa de restaurante. Os que circulam pelos cômodos de uma residência e se assentam à mesa para o café da manhã ou o almoço de domingo são pessoas com riquezas, possibilidades, potencialidades e que, normalmente falando, se estimam. Há dentro de cada um talentos adormecidos e tesouros a serem descobertos. O marido, técnico em eletrônica, tem seu campo de trabalho. Instala, conserta, conversa, encontra-se com pessoas, observa vidas, lê jornal, reflete e busca a Deus. Tem um mundo rico, cheio de experiências que podem enriquecer a vida de seus familiares. Quando é possível a partilha, é claro. Ele tem algo a dizer. Sobretudo precisa falar de suas experiências como profissional, homem e cidadão. Quando ele senta à mesa o assunto não pode ser o tempo todo o da futilidade.

3. Ela, a mulher, trabalhando ou não fora de casa, inventa, cria, lê, pensa, reflete, estuda. Gosta de ter momentos de silêncio. Frequenta o seu interior. Seu coração não é vazio nem oco. Não fica triste demais porque a vizinha está mais bonita do que ela. Nem gasta tempo e dinheiro em futilidades. Quando pode frequenta mesmo um grupo de reflexão bíblica. Na hora de sentar-se com os seus, ele tem muito a dizer, talvez menos com discursos do que com posturas e exemplos.

4. Os filhos estudam, correm, conversam com colegas, acolhem confidências de amigos, vão se exercitando no senso crítico, veem filmes, chegam mesmo a se recolher para rezar. Quando se sentam à mesa, com os pais e com outros, têm coisas a dizer e são pessoas ricas e muito agradáveis.

5. De outro lado pode ser que muitos perambulem pela vida e pelo espaço repetindo sempre aquilo que os outros dizem, as mesmas coisas, as mesmíssimas coisas, pessoas fechadas em seu pequeno mundo, preocupadas com marcação de horário na cabeleireira, pessoas muito centradas em si mesmas, desagradáveis de conviver. Pode acontecer que aqui e ali alguns membros da família gostem de exagerar um pouco na bebida e, de quando em vez e de vez em quando, se “ausentam” um pouco com uma dosezinha de droga… Pode ser que a mulher, meio fabricada pela sociedade da aparência, da magreza, essa sociedade da tirania da beleza, das academias seja uma criatura sem muita coisa de útil a ser transmitida. Não tem muita coisa a dizer ao marido e aos filhos.

6. Há pessoas, marido e mulher, que vivem uma busca séria de Deus, que participam mesmo de grupos de pastoral e que, quando estão juntos, à mesa, gostam de falar de suas experiências de intimidade com Deus e de suas alegrias na pastoral, tudo sem postura pedante e artificial. Quantos daqueles que trabalham em cursos de noivos, pastoral do doentes, têm coisas pessoais a dizer? Será que não estão repetindo obviedades há anos, sem nunca terem capacidade de chegar ao fundo das coisas?

7. Está na hora de se ler, pensar, refletir, deixar de lado essa barulheira toda, cavar profundidade. Deixar de lado superficialidade, dar descanso aos audiofones e todos os adereços eletrônicos dispensáveis. Pode ser que a sociedade do derramamento nas coisas, sociedade das imagens, sociedade da pressa e das coisas do momento esteja empobrecendo as pessoas. O que temos de realmente profundo a transmitir uns aos outros na família, no grupo de amigos, na comunidade de vida cristã?

V. PASTORAL

Preparação imediata para o casamento (II)

 

No número de fevereiro passado começamos a tecer considerações a respeito da preparação imediata para o casamento. Detivemo-nos em alguns desafios. Concluindo nossa reflexão veremos alguns elementos para o acompanhamento prático dos que pedem o sacramento do matrimônio.

 

1. Sabemos que casamento e família são realidades importantes para o presente, o amanhã do mundo e da Igreja. Será preciso, pois, investir na preparação (e trabalhar os primeiros anos de casamento). Mesmo tendo consciência da falta de tempo que alegam os candidatos ao casamento para uma preparação mais demorada, a Pastoral não pode se contentar com um tempo extremamente mínimo antes da celebração do sacramento. Temos sempre em mente que se trata de uma pastoral dos noivos e não de um “curso” que confere um diploma a pessoas que, talvez, nunca tenham dito um sim a Cristo que vai uni-las em matrimônio. Um velho ditado latino diz: Ad impossibile nemo tenetur (Ninguém é obrigado a fazer o impossível). Não podemos “complicar” a vida dos que pedem o matrimônio. Mas a médio prazo será preciso instaurar passos na pastoral dos noivos. Talvez pudéssemos falar emcatecumenato matrimonial. As poucas tentativas de “dilatação” da preparação para o casamento são derrubadas com argumentos oriundos da problemática urbana (trabalho ao qual não se pode faltar, engarrafamentos que impedem os deslocamentos, etc. etc.) Tudo isso não pode nos levar ao desânimo e a nos contentar com um verniz de preparação. Dentre muitos argumentos, destaco apenas dois: o matrimônio é um sacramento (participação dos noivos no mistério pascal) e o casamento e família são realidades importantíssimas.

2. Nossas comunidades deveriam pedir que os noivos, efetivamente, marcassem seu casamento com certa antecedência. Penso em seis meses. Precisamos de um tempo que seja material e interior.

Primeiro passo: Os que querem marcar casamento não deveriam se dirigir em primeiro lugar a um guichê de paróquia, mas a um sacerdote ou a agentes de pastoral preparados para acolher. Os que procuram a igreja paroquial, nem sempre são conhecidos, moram em outros lugares, têm uma trajetória pessoal desconhecida e quem sabe cheia de problemas. Posso bem imaginar que o sacerdote (ou um casal) venha a reunir 2 ou 3 casais para um primeiro contato marcado por certa informalidade, mas muita sinceridade. Algumas indagações, sondagem a respeito do grau de intimidade ou de distância os candidatos têm para com a figura de Cristo, de maneira breve aquilo que significa o mais do sacramento do matrimônio. Não se trata de uma aula, mas de uma conversa em que são feitas colocações que provoquem reflexão na cabeça dos noivos. Desculpem dizer, mas seria importante alertar para que a não fizesse uma cerimônia com ostentação. O Cristo que unem os noivos primou pela simplicidade.

Segundo passo: Na casa de um casal ou em dependências da paróquia, no melhor dia para os candidatos uma ou duas sessões com uns três casais de noivos. A equipe da pastoral dos noivos haverá de ver aqueles temas que seriam mais importantes. A reunião não deveria passar de hora e meia. Os participantes ouviriam colocações e seria feita uma partilha. Eis algumas sugestões de temas: qual o sentido do casamento, o que significa construir um casamento, porque os casamentos duram ou não duram.

Terceiro passo: Seria uma grande tarde com os noivos. Imagino um sábado, das 15h às 21h. Palestras, círculos… quem sabe tudo terminando com a celebração da missa explicada. Talvez alguns noivos até venham experimentar a vontade de fazer uma confissão. Não nos esqueçamos que alguns deles tenham talvez tido uma vida “torta” em alguns sentidos. Seria um despropósito pensar nessa ocasião de confissões?

Quarto passo: Penso numa manhã de sábado ou uma noite de dia se semana em que se pudesse fazer uma leitura serena do ritual do matrimônio: o sentido das oraçoes, as leituras que costumam ser proclamadas pedindo que eles escolham as que gostariam de ouvir. Assim os noivos se familiarizariam com os passos da cerimônia e haveriam de “entender” melhor

 

Anotações finais:

Seria interessante que o sacerdote ou diácono que tivesse acompanhado os noivos fosse o presidente da celebração.

Alguns temas ou reflexões que seriam fundamentais: importância de uma reflexão sobre a palavra dada, o sim, porque somente a palavra que vem da vontade organiza as turbulências da emoção; por que um casamento deve e precisa durar; elentos fundamentais da construção da conjugalidade; reflexão sobre os filhos (quando tê-los, por que tê-los, etc).

Não sei bem onde nem como se deve falar que, na visão da Igreja, a família, segundo João Crisóstomo é a Igreja doméstica.