Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Abril 2013

I. LEITURA ESPIRITUAL

O “lugar do coração”

 

O silêncio como opção de vida alternativa

 

1. A Cúria Geral da Ordem dos Frades Menores, em 2003, publicou um pequeníssimo fascículo intitulado: O caminho que leva ao “lugar do coração”.  Achegas para descobrir interioridade e silêncio na vida franciscana. Trata-se de uma joia encerrada num caderno de 16 pequenas páginas. “O caminho para a interioridade, hoje, dá-se num tempo de mudanças, tempo rico de muitos sinais de redescoberta da interioridade e do silêncio.  A sociedade secularizada vem focada sobre o indivíduo, com uma identidade fluída. Temos diante de nós uma mudança radical da visão do homem, determinada sobretudo pela  tecnologia. São imensos os recursos da inteligência humana, descobertos hoje, que podem ajudar os homens a criar um mundo melhor. É importante, no entanto, que o homem permaneça sujeito desse desenvolvimento, sobretudo a partir da verdade profunda de si mesmo” (p.4-5).  Num mundo de superficialidade, de pressa, de técnica fria, de comunicação on line, de áudio-fones, de corrida,  a viagem ao fundo do coração torna-se delicada. Sem ela, o ser humano se torna joguete de forças cegas e, se religioso, pessoa de superficialidade. “Tornamo-nos estranhos a nós mesmos. O percurso para dentro de nossa interioridade não é só terapêutico para a nossa cultura do barulho, mas também vem a ser um caminho voltado para o acolhimento, para uma nova civilização do amor. O caminho para dentro de nossa interioridade e para o silêncio torna-se, então, o testemunho de uma opção  de vida alternativa”  (p. 5).  Muito bem dito: não podemos seguir a onda. O caminho do coração é uma alternativa em nossos tempos. Precisamos tomá-lo.

2. Não falamos de um silêncio apenas material, do não falar ascético,  frio, nem do orgulhoso mutismo, mas de uma aquietação que começa com o silenciamento de nosso  ego e o desejo de deixar a verdade e o amor penetrarem em nossas entranhas. “Como o ar, meio em que aparece a luz e vibram uma infinidade de ondas, como o fogo, que aquece  e   ilumina, como a água que purifica e desaltera, como a terra, enfim, que nos carrega e nos alimenta, o silêncio é um elemento vital, indispensável para nossa subsistência  espiritual, para nosso equilíbrio interior, para a paz e inteligência do coração e da alma.  Mas é também um elemento raro, sutil, frágil, que se deve querer encontrar, saber procurar e, em seguida, fertilizar com toda doçura, para que permaneça vivo e fecundo.  O ar viciado é irrespirável, o fogo sem controle morre  ou, ao contrário, devora tudo, a água poluída se transforma em veneno e a terra não tratada fica estéril; da mesma forma o silêncio – e a solidão à qual está vinculado – precisa ser desejado, respeitado e cultivado com atenção e paciência  para tornar-se  espaço puro de concentração de meditação e de sonhos com os olhos abertos” (Sylvie Germain).

3. Há muitas modalidades de silêncio: o silêncio delicado que respeita o doente que quer dormir e a criança que mal e mal pegou no sono; o silêncio de quem guarda um segredo ou não quer denegrir a imagem do outro com palavras verdadeiras, mas que não precisam ser ditas; o silêncio do cirurgião quando realiza uma delicada e perigosa operação. Há o silêncio estático do homem que busca a Deus, se embrenha no deserto, tenta auscultar o mistério de seu próprio interior, onde o murmúrio do silêncio ecoa como se fosse uma brisa suave.  Há esse exercício do silêncio exterior para se chegar à aquietação interior, a um vazio que permita ao Espírito agir em nós e de não sermos meros seres apressados, correndo de um lado para o outro sem ouvir a voz do Amado.  Não podemos, como diz Francisco, perder o “espírito do Senhor”.

4. Francisco de Assis, na verdade, vivia o enlace amoroso com o Senhor no claustro do mundo, mas sentia-se atraído pelo silêncio das cavernas e das grutas.  Assim escreve Michel Hubaut: “Em suas biografias podemos encontrar dezoito lugares de vida eremítica que encontrou ao longo de suas andanças. Francisco  que  era capaz de visitar num só dia, a pé ou montado num burrico,  quatro ou cinco vilarejos, passou semanas inteiras na solidão e na oração. Sentia sede de Deus, como também sede pela salvação de seus irmãos.  Sede de silêncio e sede de colóquios. Estes regulares mergulhos no silêncio ensinaram-no a conservar no meio do mundo aquele santuário interior no qual ele adorava a presença do Senhor. Convida-nos a fazer de nosso corpo a “sala do alto” onde haveremos de receber  a visita do Espírito. Silêncio e interioridade: as duas coisas são para Francisco mais um despertar do coração do que um retiro espacial: ‘Onde quer que estejamos e para onde quer que andemos levemos sempre conosco nossa cela. Nossa cela  é o nosso irmão corpo e nossa alma é o ermitão que mora nessa cela para rezar e meditar’”(Legenda Perusina, 80). (Hubaut. El caminho franciscano, p. 58).

5. O silêncio nos ajuda a guardar a lembrança de Deus. Não é mutismo porque ele favorece, ao mesmo tempo, a relação com Deus e entre os irmãos. Os buscadores de Deus, profissionais como os religiosos e os monges, querem manter viva a lembrança de Deus.  Um autor descreve o silêncio dos cistercienses: “Chamado a viver uma autêntica ‘espiritualidade de comunhão’, segundo o desejo de João Paulo II, o monge procura o silêncio porque é pelo e no silêncio que ele pode viver a lembrança de Deus. O monge se recorda! Ele é o homem da memória, da memoria Dei. É convidado a viver ‘na constante lembrança de Deus’. Na Bíblia, o grande pecado é o esquecer Deus. Daí o terrível grito do profeta: ‘Eles me esqueceram!’.  E, no livro do Deuteronômio, há essa forte acusação: ‘Esqueceste o Deus que te colocou no mundo’  (Dt  32, 19).  Uma das principais missões do monge não seria exatamente de manter viva a lembrança de Deus? Não que os mosteiros sejam os únicos lugares onde se vive verdadeiramente a lembrança de Deus. Verdade, no entanto, que o mosteiro é concebido para colocar o monge nas melhores disposições para que ele possa lembrar-se de Deus, assim como a esposa se recorda do esposo” (Paul Houix, o.c.s.o. in  La Vie Spirituelle, julho de 2012, p. 312).

6. Em nossa vida franciscana, de maneira bem prática, saberemos  cultivar o silêncio.  Há esse silêncio da casa, do quarto, da cela, da capela, silencio exterior que nos leva à quietude interior. Há a recitação do Ofício das Horas com calma,  interrompida  pelo silêncio entre um salmo e outro, entre um leitura e um responsório, precedida por momentos de silêncio. Há a celebração da Eucaristia  que transforma nossa vida. Degustamos momentos de silêncio na sacristia antes de nos dirigirmos ao altar. Há essa discrição nas conversas no refeitório. Há essa prudência de não falar para fora o que precisa ficar dentro. Há todos esses momentos de silêncio previstos  nas celebrações.  Nós, franciscanos não somos monges, mas não podemos deixar a porta do interior escancarada…  Precisamos sentir a brisa suave do silêncio…

7. “Talvez em nossos tempos dever-se-ia falar de um esmolar do silêncio, de uma busca do silêncio. Quem sabe falar mesmo de uma conquista do silêncio. Talvez conquista seja uma palavra  pouco apropriada, porque estaria associada a furor, barulho. Os conquistadores podem ser barulhentos e quase furiosos.  Melhor falar em busca do silêncio, perseguir o silêncio, abastecer-se do silêncio. O excesso de barulho nos projeta fora de nós mesmos, aliena. Na simbologia cristã, o barulho,  fazendo com que estejamos  fora de nós mesmos, nos impede o acesso para  as fontes mais profundas. O silêncio, então, é plenitude. O silêncio místico cristão nunca é abismo, nem vazio, nem negação de desejo. No silêncio há uma Palavra. À sombra do silêncio, no silêncio interior, para além dos desvios do espírito surge uma outra palavra.  Insinua-se uma presença que fala e pede ao coração que continue a estrada. O silêncio é como uma porta que se abre  para outros mundos, ou simplesmente para o Outro que habita em nós.  Para isso será preciso dar tempo ao silêncio, ir além dessa necessidade narcisista dele.  Necessário sempre de novo que nos tornemos humanos”(André Beauchamp,  Les bruits du monde, in Christus,  194, p. 142). O silencio nos humaniza!

8. Vamos terminar retomando o texto da Ordem dos Frades Menores que nos fala do caminho que leve ao lugar do coração: “São Francisco  convida-nos a ‘conservar no coração os segredos do Senhor’ (Adm 28,3), através da paz e da meditação, sem nervosismos,  nem dissipação (Adm 27,2).  Insiste sobre a cela interior a carregar sempre conosco. O silêncio a ser observado é aquele do Evangelho,  que evita palavras ociosas e inúteis no fruto da oração. Assim nos tornaremos  sempre mais  ‘unificados’ no coração e a partir do coração. A Virgem Maria é  modelo  para aqueles que acolhem  a Palavra, a guardam no coração e a vivem todos os dias” (p. 10).

II. JANELA ABERTA

Na força do vento e no ardor do fogo

 

O Espírito foi derramado em nossos corações

 

Através de nossa  Janela Aberta queremos contemplar o  Espírito que procede do Pai e do Filho, que habita em nós e que abre as cortinas para o amanhã do mundo e da Igreja.  Nesta página de hoje são o Padres da Igreja que nos falarão do tema do Espírito que é vento e fogo. O Espírito haverá de nos ajudar a  abrir caminhos novos para a evangelização.

A. Somos vivificados pelo Espírito  em nosso batismo

O Senhor que nos concede a vida, estabeleceu conosco a aliança do batismo, como símbolo da morte e da vida. A água é imagem da morte e o Espírito nos dá o penhor da vida. Assim, torna-se evidente o que antes perguntávamos: por que a água está unida ao Espírito? É dupla, com efeito, a finalidade do batismo: destruir o corpo do pecado para que nunca mais produza frutos de morte, e vivificá-lo pelo Espírito, para que dê frutos de santidade. A  água é a imagem da morte porque recebe o corpo como num sepulcro; e o Espírito, por sua vez, comunica a força vivificante que renova  nossas almas, libertando-as  da morte do pecado e restituindo-lhes a vida. Nisto consiste o novo nascimento da água e do Espírito: na água realiza-se nossa morte, enquanto o Espírito nos traz a vida (…). O Espírito Santo restitui o paraíso, concede-nos entrar no reino dos céus e voltar à adoção de filhos. Dá-nos a confiança de chamar a Deus nosso Pai, de participar da graça de Cristo, de sermos chamados filhos da luz, de tomar parte na gloria eterna, numa palavra,  de receber a plenitude de todas as bênçãos tanto na vida presente quanto na futura. Dá-nos ainda contemplar, como num espelho, a graça daqueles bens que nos foram prometidos e que pela fé esperamos usufruir com se já estivessem presentes. Ora, se é assim o penhor, qual não será plena realidade?  E, se tão grandes são as primícias, como não será a consumação de tudo?

São Basílio – Liturgia das Horas II, p, 687-688

B. Água viva

A água que eu lhe der se tornará nele  fonte de água viva, que jorra para a vida eterna (Jo 4, 14). Água diferente, esta que vive e jorra; mas jorra apenas sobre os que são dignos dela. Porque o Senhor dá o nome de “água” à graça do Espírito Santo? Certamente porque tudo tem necessidade de água; ela sustenta as ervas e os animais. A água da chuva cai do céu; e embora caia do mesmo modo e na mesma forma, produz efeitos muito variados. De fato, o efeito que produz na palmeira não é o mesmo que produz na videira, e assim em todas as coisas, apesar de sua natureza sempre a mesma e não poder ser diferente de si própria. Na verdade, a chuva não se modifica a si mesma em qualquer das suas manifestações. Contudo, ao cair sobre a terra, acomoda-se às estruturas dos seres que a recebem dando a cada um deles  o que necessita. (…) Branda e suave é a sua aproximação; benigna e agradável é a sua presença; levíssimo é o seu jugo!  A sua chegada é precedida por esplêndidos raios de luz e ciência. Ele vem com o amor entranhado de um irmão mais velho, vem para salvar, curar, ensinar, aconselhar, fortalecer,  consolar, iluminar a alma de quem o recebe e, depois, por meio desse, a alma dos outros. Quem se encontra  nas trevas, ao nascer do sol, recebe nos olhos a sua luz,  começando a enxergar claramente coisas que até então não via.  Assim também,  aquele que se tornou digno do Espírito Santo, recebe  na alma a sua luz e, elevado acima da inteligência humana, começa a ver o que antes ignorava”

Das Catequeses de São Cirilo de Jerusalém – Liturgia das Horas  II, p. 876

C. Presente em todos e em cada um

Inacessível por sua natureza torna-se acessível por sua bondade. Enche tudo com o seu poder, mas comunica-se apenas aos que são dignos. Não a todos na mesma medida, mas distribuindo os seus dons em proporção da fé. Simples na essência, múltiplo nas manifestações do seu poder, está presente por inteiro em cada um, sem deixar de estar todo em todo lugar. Reparte-se e não sofre diminuição. Todos dele participam e permanece íntegro, à semelhança dos raios do sol que fazem sentir a cada um a sua luz benéfica como se fosse para ele só e, contudo, iluminam a terra e o mar e se difundem pelo  espaço. Assim é também o Espírito Santo; está presente em cada um dos que são capazes de recebê-lo, como se estivesse nele só, e, não obstante, dá a todos a totalidade da graça de que necessitam. Os que participam do Espírito recebem os seu dons na medida em que o permite a disposição de cada um,   mas não na medida do poder do mesmo  Espírito”.

São Basílio, século IV – Liturgia das Horas II, p. 883-884

III. FAMÍLIA

Retratos de mães

 

As mães  podem ser consideradas  a alma de nossas famílias. Convido a todos a percorrem comigo uma galeria de retratos de mães.

 

O primeiro quadro que desejo mostrar-lhes é de uma mulher jovem. Tem vinte e poucos anos. Está para dar à luz pela primeira vez. Ela e o marido não pensam em outra coisa senão no dia em a menina vai nascer, porque é uma menina, e vai se chamar Fernanda.  Há nove meses convivem, misteriosa e carinhosamente, com ela. Tudo está preparado: o berço, as roupinhas, os sapatinhos, as chupetas, as mantas cor-de-rosa, os gorrinhos para proteger do frio. Já tem padrinho e madrinha escolhidos. E quando a menina nascer será o céu na terra. Quando a menina sai do seio da mãe, tudo se faz festa e alegria. A jovem mulher não é  apenas a esposa do marido mas a mãe de Fernanda, a criança mais linda da face da terra.

Lá está aquela jovem mulher-mãe no canto da sala. O filho, seu primeiro filho, remexe-se no berço, acordou e está faminto. Chora desesperadamente. Ali, no canto da sala,  a mãe dá o peito ao pequenino e contempla com um sorriso esse pinguinho de gente, agora serenando, abrindo e fechando os olhos. Reza por ele. Pensa no futuro do menino. Pensa em seu casamento que precisa ser sólido. Pensa no mundo, em como preparar o filho para viver no mundo. De repente, saciado, o menino dorme e a jovem mãe leva-o de volta  ao berço, puxa as cortinas e deixa que seu pequeno sonhe com os anjos, continuando a cantar suavemente uma cantiga de ninar.

Vejo aquela outra mulher, de origem  italiana, natural de Santa Catarina ou do Rio Grande do Sul. O retrato foi tirado na década de vinte com uma daquelas máquinas fotográficas que faziam fumaça. Mulher forte, generosa. Ela e o marido colocaram dez filhos no mundo. Todos sobreviveram. Apenas Sofia nasceu mirradinha e quase não  “vingou”. Os outros foram vencendo.  Um deles hoje é prefeito da cidade e uma das meninas está em Brasília, trabalhando no Ministério da Educação. Casa simples, de colonos, com fogão de lenha, quintal grande, grande área nos fundos com uma imensa mesa.  Os filhos foram pelo mundo, moram perto ou longe. Voltam sempre à casa daquela senhora de mãos calejadas de rachar lenha, de cuidar da estrebaria das vacas, de trabalhar na roça com o marido, com chapéu de palha na cabeça, aqueles imensos chapéus de palha. No domingo das mães, a casa fica cheia. Come-se bem, há grande alegria no ar, cantos italianos, muita polenta, muitas danças e tudo é festa. E um bom vinho.

Ali está aquela outra mãe. Os filhos estão crescidos estudando em faculdades. Os três vêm à missa das 18 horas quase todos os domingos.  O marido é piloto de avião e vive no ar… O três sentam-se no terceiro banco perto do altar lateral de São José.  Ela é professora de português numa  Escola Estadual. Depois da missa voltam a casa para o lanche de domingo, antes de recomeçarem a vida na fatídica segunda-feira. Os meninos são adolescentes quase jovens. Ainda vão à missa.  Mas vivem antenados, Facebook…  Por enquanto, as coisas estão tranquilas. Vamos ver até quando eles participarão da missa de domingo. Por enquanto vão.

Há o retrato daquela mulher ainda jovem, mãe de dois garotos. De repente, ela ficou sabendo que seu marido tinha uma “namorada” e que tinha mesmo um filho com a outra… Quando tudo ficou provado, a mulher  exigiu a partida do marido que queria continuar com a vida do jeito que estava… Ajudou a colocar todas as suas coisas em caixas e malas. Passou a ser mãe e pai dos garotos. De quando em vez passa perto dela uma nuvem de tristeza. Ela não é mais a esposa do pai de seus filhos.

Aquela senhora já está bem idosa. Tem muita dificuldade em andar. Vestida com um tailleur azul marinho com blusa branca senta-se no primeiro banco da igreja. Ali será rezada a missa de corpo presente do filho mais velho que morreu num terrível acidente de carro. Ficará perto do caixão do filho. Participa da missa com serenidade. Terminada a encomendação do corpo, beija o caixão e pede que levem para a casa. Não se sentia em condições de ver o sepultamento do filho. Preferia ficar sozinha se entregando a Deus.

IV. PASTORAL

Sobre a oração: da teoria à prática

 

“Senhor Deus, dá-me tudo o que pode me levar a ti. Senhor Deus, afasta tudo o que pode me afastar de ti”

(Santa Edith Stein).

 

Todos nós, um dia ou outro, experimentamos imperioso desejo de oração. De onde vem esse anelo? Certamente de nossa condição humana. A oração consiste numa atitude humana universal que remonta à noite dos tempos. Tal desejo vem de Deus que incessantemente chama o homem ao seu encontro. Trata-se de um mistério de relacionamento. Rezar não é empreitada fácil. Os apóstolos, os companheiros mais próximos de Jesus, pediram que ele os ensinasse a rezar.

Jesus respondeu que, na oração não se devia usar muitas palavras. Ensinou uma forma de oração curta e programática, isto é, o Pai-nosso. São Paulo, de seu lado, pede que rezemos incessantemente, sem interrupção, sem cessar.

Como rezar sem cessar e com poucas palavras? Jesus dizia que os que desejam orar precisam entrar no quarto, fechar a porta a fim de rezar ao Pai que escuta no segredo. Lucas, nos Atos, falando da vida dos primeiros cristãos, diz que eram assíduos no ensinamento dos apóstolos, na comunhão fraterna, na fração do pão e na oração. Deve-se rezar em particular ou com a comunidade? Com poucas palavras como no Pai-nosso ou sem cessar?

Santo Agostinho pode nos ajudar: “Na verdade, louvamos a Deus agora que nos encontramos reunidos na igreja. Mas logo, ao voltarmos para casa, parece que deixamos de louvar a Deus. Não deixes de viver santamente e louvarás sempre a Deus. Deixas de louvá-lo, quando te afastas da justiça e do que lhe agrada. Mas se nunca te desviares do bom caminho, ainda que a tua língua se cale, tua vida proclamará; e o ouvido de Deus estará perto de teu coração. Porque assim como nossos ouvidos escutam nossas palavras, assim os ouvidos de Deus  escutam nossos pensamentos”.  (Liturgia da Horas  II, p. 779-780).

A oração é, ao mesmo tempo, um encontro marcado que se prepara e uma improvisação que brota do coração, um impulso para Deus e um dom de Deus.  Ela é comunitária e solitária.

Quando alguma coisa é importante para nós, o primeiro que fazemos é organizar nossa agenda de tal forma que possamos realizar o que temos no coração. Se quisermos ter uma vida de oração satisfatória é necessário organizar-se de tal maneira que haja tempo para ela.  Bom seria, de fato, fixar um tempo de manhã antes de começar as atividades do dia ou depois que voltamos ao nosso canto, no fim da tarde e antes do descanso noturno? Muito tempo? O suficiente, e sobretudo, que perdure  ao longo do tempo. O sem cessar é importante.

Para estar e falar com o Senhor, como para qualquer encontro, precisamos de condições mínimas: um lugar que nos agrada, uma postura serena e atenta, uma bela imagem do Senhor, quem sabe até uma lamparina acesa.  Além disso, precisamos ser ajudados na arte de rezar. Deus não nos fala da mesma forma como conversamos com nosso vizinho de andar. Para ouvi-lo é preciso fazer lugar em nosso coração. Bom será se servir das orações da tradição cristã, a começar pelo Pai-nosso, pelas preces que estão nas Escrituras, de modo particular, rezar com os salmos.

Não se pode esquecer de um aspecto assaz importante: se rezamos é porque Deus nos chama. Ele quer encontrar-se conosco. A oração não é resultado de nossos esforços, mas vem da iniciativa de Deus. Importante é deixar que ele atue e aja. Nossa tarefa consiste na fidelidade e regularidade no tempo de oração, fidelidade ao longo das semanas, dos meses e dos anos. A oração exige nossa firme vontade e, ao mesmo tempo, o abandono total.

Não somos os primeiros a desejar rezar e não sabemos exatamente como fazer. Outros que nos precederam podem nos ajudar. Não devemos hesitar em pedir ajuda.  As pessoas que já fizeram uma caminhada na vida de oração ficarão felizes se puderem nos ajudar.  Precisamos lançar mão de sites, livros e revistas. Nada substitui, no entanto, uma experiência concreta. Por que não participar de um retiro?

São numerosos os caminhos da oração.  A oração monástica é, sem dúvida, em nossa Igreja, a mais viva e mesmo a mais impressionante. Muitos mestres de oração foram surgindo, de modo particular, na tradição carmelitana (Teresa d’Àvila, João da Cruz, Terezinha de Lisieux). Não poucos de nossos contemporâneos redescobriram a oração através do Movimento da Renovação Carismática.

Michel Hubaut, descrevendo o caminho de oração de Francisco de Assis, fala da insistência do santo de deixar-se habitar pelo Espírito. “Para perseverar na vida de oração, necessário se faz ter a convicção de ser ‘habitado pelo Espírito, que  no coração do homem, murmura, inspira, respira, intercede e adora. Esse Espírito não me dou a mim mesmo.  Acolho-o todo maravilhado, como Francisco. Não sou sua fonte, mas o lugar onde a fonte brota. O Espírito se serve do canal de meus desejos humanos, de minhas aspirações, mas não se confunde com elas. Ele, esse Espírito, passa pelas fronteiras de minha casa, pelo impulso de meus sentimentos, envolto em minhas palavras, mas brotando de um outro lugar.  Esse Espírito é mais forte do que minhas impressões sempre frágeis e efêmeras. Não se mede a riqueza de minha oração pela riqueza do vocabulário que emprego, pela coerência de meu discurso interior, pelo grau elevado de minhas emoções, mas se realiza na medida da abertura de meu coração ao desejo do Espírito”.  (Chemins d’interiorité avec saint François, p.  107-108).

A oração cristã é, ao mesmo tempo, pessoal e comunitária, sem o compromisso pessoal com a oração, a liturgia se transforma num rito seco e sem vida. Sem a oração comunitária nossa oração pessoal se esvazia de sua substância. Nossa oração pessoal encontra sua plena realização na Eucaristia que é o ápice e fonte de toda oração. Sempre haveremos de nos lembrar da alegria da videira e dos ramos. Os que se unem a Cristo no mistério da Eucaristia, de modo particular, se sentem ramos da videira.

Obs.: Tivemos diante de nossos olhos um folder intitulado Comment prier?, inserido na revista Croire Aujourd’hui.

V. NOSSO GÊNERO DE VIDA

Reflexões sobre as Constituições Gerais dos Frades Menores

 

Castidade (I)

 

Art. 9 das CCGG

§ 1.  Pelo voto de castidade, os irmãos  levam uma vida célibe em pureza de alma e de corpo “por causa do Reino dos céus”, a fim de pensarem nas coisas do Senhor com um coração indiviso e amarem o Senhor Deus com todo esforço, todo o afeto, todas as entranhas, todos os desejos e vontades, numa vida evangélica e fraterna.

1. Os religiosos fazem votos. Na verdade, antes de tudo, querem seguir de maneira radical o Cristo que se desenha no horizonte de suas vidas como o único necessário. Prometem obedecer dócil e alegremente ao Senhor que os visita  e solicita a inteireza de assentimento à vontade amorosa do Pai. Dispõem-se a despojar-se de si, não apropriar-se de bens que lhes são dados pelo Senhor e levam uma vida simples, não complicando-a com exigências materiais, nem com o desejo de possuir glórias e honras. Pobremente são servos e não senhores. Prometem pobreza de coração: querem ser pessoas leves e livres. Fazem também o voto de castidade perfeita. Sabemos que uma das pulsões mais fortes que experimenta o ser humano é aquela ligada à sexualidade. O Criador fez o homem, homem e mulher e colocou neles a mútua atração. A desordem do coração pode fazer com uma sexualidade mal vivida e mal digerida nos afaste de Deus.

2. Rapazes e moças, de ontem e de hoje, sempre experimentaram esse desejo veemente de entrega irrestrita ao Senhor, não porque quiseram ou querem fugir do mundo, não por falta de apreço pelo amor masculino e feminino e pela família, mas por experimentarem que o Senhor os convidava para um tipo de relacionamento amoroso, do tipo esponsal, irrestrito, através de uma doação de todo o seu ser, inclusive, na dimensão da busca do feminino pelo masculino e vice-versa.  Não se trata de nenhum “sacrifício” extraordinário. O chamamento do Senhor aponta para luz e plenitude. Não é questão de qualquer sorte de diminuição ou mutilação humana. Todas as entranhas daquele que é chamado são colocadas em orientação a essa entrega amorosa e esponsal. “Quem puder compreender que compreenda”.

3. O texto das CCGG falam de uma vida célibe em pureza da alma e do corpo. Não se pode falar da castidade no espírito de São Francisco sem mencionar o texto da Admoestação XVI: “Bem-aventurados os de puro coração, porque eles verão a Deus  (Mt 5,8). São verdadeiramente puros de coração os que desprezam as coisas terrenas, buscam as celestes e nunca desistem de adorar e de procurar o Deus vivo e verdadeiro com o coração e a mente puros”.

4. Esser/Grau (Pour le Royaume) assim falam da pureza de coração: “A pureza exige que  as pessoas se desprendam dos bens da terra para poderem chegar à liberdade interior, ou melhor dizendo, para se distanciar de toda escravidão  resultado do apego  aos valores terrenos sejam eles coisas, pessoas ou nosso eu. A pureza rompe as correntes do egoísmo, do amor a si mesmo, da estima pelos bens do mundo (…). A pureza faz nascer uma sede sobrenatural e lhe dá consistência. O vazio criado pela pureza libertadora será locupletado pela ação divina. A verdadeira pureza de coração se verifica quando de nada nos apropriamos, quando renunciamos ao amor de nós mesmos para tender com todas as forças na direção de Deus, em outras palavras, tornando-nos livres para amar somente a Deus. Este é o sentido profundo desta manifestação da alma. Francisco afirma-o expressamente no final d admoestação. Quem conseguiu, pela mortificação, cultivar a pureza de coração e da mente, sente-se “pressionado” a adorar e a ver o Senhor Deus vivo e verdadeiro”. A pureza faz cair as escamas que impedem de contemplar a Deus sem cessar. Sem a pureza a pessoa contempla muito imperfeitamente Senhor. Felizes os de coração puro, porque a graça redentora, ou como Francisco gosta de dizer, “o espírito do Senhor” pode agir plenamente neles sem encontrar obstáculos e de uni-los a Deus, fonte de alegrias” (p. 34-35).

5. Pureza de coração é condição para que uma pessoa possa viver a virgindade consagrada. Esta não consiste apenas na abstinência sexual, mas numa orientação “unida” da vida, numa organização serena do interior para Deus, sumo bem, Esposo amável que merece a inteireza  de nosso coração.  A vida de castidade vai além da continência sexual. Não se limita apenas ao aspecto físico. O dom que se faz a Deus com o voto de castidade perfeita quer dizer uma entrega do corpo, do afeto, da vida toda numa antecipação, ainda na carne, da festa eterna onde participaremos das núpcias do Cordeiro. Quem puder compreender que compreenda. Os que têm pureza de coração podem bem entender o que significa o esplendor do voto de castidade perfeita.

6. Religiosos franciscanos fazemos nossa profissão do voto de castidade. O texto das CCGG insiste na pureza da alma e do corpo, como acabamos de frisar. Não o fazemos por motivos naturais quaisquer, mas por cauda do Reino dos céus, desse mundo novo de amor a Deus e aos irmãos, mundo de irmãos, mundo de paz e de reconciliação, mundo em que os pequenos são príncipes e os grandes são derrubados de seus tronos, mundo de Deus que, com nossa vida, nosso espírito, nosso corpo desejamos anunciar. Os que fazem o voto de virgindade consagrada pensam nas coisas do Senhor com um coração sem  fissuras.  Esse amor ao Senhor será marcado pelo afeto, com todas as entranhas, todos os desejos e vontades.  Trata-se de uma vivência da virgindade numa existência profundamente marcada pelo evangelho e pela fraternidade. Sem isto, a castidade consagrada não tem  brilho.  As pessoas podem até ter um controle sobre sua sexualidade, mas o coração não se entrega totalmente ao Senhor. Vivência do evangelho e prática da fraternidade colorem belamente a castidade consagrada.

(continua)