Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Sete anos do Pontificado de Francisco

Os primeiros passos do Pontificado

No 7º aniversário da eleição do Papa recordamos os sinais concretos de Francisco nas primeiras semanas do seu pontificado.
Passaram sete anos desde a eleição para a Cátedra de Pedro, do Cardeal Jorge Mário Bergoglio. Quis chamar-se Francisco e desde aquele dia a todos conquistou com a sua simplicidade, a sua ternura, a sua espontaneidade.

Nas primeiras duas semanas o Papa Francisco deixou claro que não trazia apenas um novo estilo mas a frescura do conteúdo do Evangelho. Recordamos os sinais de Francisco no seu primeiro mês como bispo de Roma e Pastor Universal da Igreja.

A oração do povo para a bênção de Deus

13 março 2013, esta é a data da “viragem franciscana”. Com um passo decidido e uma naturalidade desconcertante, o Papa Francisco desde o primeiro momento do seu pontificado deixou claras várias atitudes e sinais que não eram apenas um novo estilo ou formato, mas reveladores do conteúdo fresco do Evangelho.

E, assim, inesperadamente o Papa Francisco como que desceu naquela noite da varanda da Basílica de S. Pedro até junto do seu povo ao qual se inclinou para receber a oração que pede a bênção de Deus. Um momento único, original e inovador, um primeiro grande sinal para um novo rumo:

“E agora eu gostaria de dar a bênção, mas antes… antes peço-vos um favor: antes de o bispo abençoar o povo, peço-vos que rezeis ao Senhor para que Ele me abençoe: a oração do povo que pede a bênção para o seu bispo. Façamos em silêncio esta oração de vós por mim”. (13 de Março 2013)

Verbos do pontificado: caminhar, edificar, confessar

No dia seguinte à eleição, na Capela Sistina, o Santo Padre na primeira missa celebrada como Papa juntamente com aqueles a quem chama de “irmãos cardeais”, Francisco centra a homilia em três verbos: caminhar, edificar, confessar. No centro da vida dos discípulos de Cristo está sempre a Cruz:

“Quando caminhamos sem a Cruz, quando edificamos sem a Cruz e quando confessamos um Cristo sem Cruz, não somos discípulos do Senhor: somos mundanos, somos bispos, padres, cardeais, papa, mas não discípulos do Senhor”. (Missa Pro Ecclesia, 14 de Março)

Igreja pobre para os pobres

Sábado, 14 de março, Sala Paulo VI: a notícia do dia são… os jornalistas … que são recebidos pelo Papa. Numa audiência muito especial concedida pelo Santo Padre aos jornalistas que estavam em serviço para o conclave, o Papa revelou porque escolheu o nome de Francisco explicando que o comentário do Cardeal brasileiro Hummes para que não se esquecesse dos pobres, foi determinante:

“Não te esqueças dos pobres!’. E aquela palavra entrou aqui: os pobres, os pobres. Depois, imediatamente em relação aos pobres, pensei em Francisco de Assis. É o homem que nos dá este espírito de paz, o homem pobre… Ah, como gostaria de uma Igreja pobre e para os pobres.” (Audiência aos Jornalistas, 16 de Março)

Misericórdia: Deus perdoa sempre

Domingo, 17 de março: primeiro Angelus do Papa Francisco numa Praça de S. Pedro superlotada de gente faminta das palavras do Santo Padre, que nesse dia afirmou que o Senhor nos perdoa sempre e tem um coração de misericórdia para todos:

“Ele, nunca se cansa de perdoar, mas nós, por vezes, cansamo-nos de pedir perdão. Nunca nos cansemos, nunca nos cansemos! Ele é o Pai amoroso que perdoa sempre, que tem um coração de misericórdia para todos nós. E também nós aprendamos a ser misericordiosos para com todos.” (Angelus, 17 de março)

O poder é servir

19 de março, Festa de S. José: a Praça de S. Pedro enche-se novamente, desta vez também com a presença de Chefes de Estado e de governo e líderes religiosos, entre os quais o Patriarca Ecuménico Bartolomeu I. O Papa Francisco celebra missa para o início do seu ministério petrino. Da homilia, centrada no tema do “guardar” o próximo e a criação, permanecerá na memória a passagem do poder como serviço:

“Nunca nos esqueçamos que o verdadeiro poder é o serviço e que também o Papa para exercer o poder deve entrar cada vez mais naquele serviço que tem o seu vértice luminoso na Cruz”. (Missa do Início Solene do pontificado, 19 de Março)

Viver na esperança

Aproximava-se a Semana Santa desse ano de 2013 e no dia 24 de março, Domingo de Ramos, estão mais de 200 mil fiéis reunidos na Praça de S. Pedro para a Missa. Muitos os jovens presentes. Concretamente, para eles, o Santo Padre dirige palavras de encorajamento dizendo-lhes para viverem na esperança:

“E por favor, não deixeis que vos roubem a esperança! Não deixeis que roubem a esperança! Aquela que nos dá Jesus”. (Domingo de Ramos, 24 de Março)

Pastores com o odor das ovelhas

Na Quinta-feira Santa, 28 de março, na Missa Crismal, com os sacerdotes da sua diocese, o Papa Francisco, na sua homilia, convida os sacerdotes a saírem de si próprios e a irem para as periferias, físicas e existenciais, onde o povo mais sofre. Pastores com o odor das suas ovelhas:

“Isto eu vos peço: sede pastores com o odor das ovelhas, pastores no meio do próprio rebanho, e pescadores de homens”. (Missa Crismal, 28 de Março)

Jesus Ressuscitou e transforma a nossa vida

No Domingo de Páscoa, dia 31 de março o Papa Francisco proclamou que a esperança do cristão nasce “do amor de Jesus que venceu a morte”. “Cristo ressuscitou” – anuncia o Santo Padre que na sua mensagem pascal, incentiva todas as pessoas a deixarem-se transformar por Jesus:

“Deixemo-nos renovar pela misericórdia de Deus, deixemo-nos amar por Jesus, deixemos que o poder do seu amor transforme também a nossa vida; e tornemo-nos instrumentos desta misericórdia, canais através dos quais Deus pode irrigar a terra, guardar a criação e fazer florescer a justiça e a paz”. (Bênção Urbi et orbi, 31 de março)

Todos estes sinais verbais e gestuais de profunda proximidade com o povo de Deus, revelados nas primeiras semanas do Papa Francisco, em março de 2013, têm vindo a marcar o programa deste pontificado e o futuro da Igreja.

Laudetur Iesus Christus

Rui Saraiva – Porto

Imagem: Vatican News

Homilia da inauguração do Pontificado de Francisco

Na manhã desta terça-feira, 19, aconteceu no Vaticano, sede da Igreja Católica, a Santa Missa de inauguração do pontificado do Papa Francisco, na Solenidade de São José, Patrono da Igreja.

“Guardemos Cristo na nossa vida, para guardar os outros e guardar a criação. Guardemos com amor aquilo que Deus nos deu. Não devemos ter medo da bondade e da ternura. Quem serve com amor é capaz de proteger”, afirmou o Papa.


Queridos irmãos e irmãs!

Agradeço ao Senhor por poder celebrar esta Santa Missa de início do Ministério Petrino na solenidade de São José, esposo da Virgem Maria e patrono da Igreja universal: é uma coincidência densa de significado e é também o onomástico do meu venerado Predecessor: acompanhamo-lo com a oração, cheia de estima e gratidão.

Saúdo, com afeto, os irmãos cardeais e bispos, os sacerdotes, os diáconos, os religiosos e as religiosas e todos os fiéis leigos. Agradeço, pela sua presença, aos representantes das outras Igrejas e Comunidades eclesiais, bem como aos representantes da comunidade judaica e de outras comunidades religiosas. Dirijo a minha cordial saudação aos Chefes de Estado e de Governo, às delegações oficiais de tantos países do mundo e ao Corpo Diplomático.

Ouvimos ler, no Evangelho, que “José fez como lhe ordenou o anjo do Senhor e recebeu sua esposa” (Mt 1, 24). Nestas palavras, encerra-se já a missão que Deus confia a José: ser custos, guardião. Guardião de quem? De Maria e de Jesus, mas é uma guarda que depois se alarga à Igreja, como sublinhou o Beato João Paulo II: “São José, assim como cuidou com amor de Maria e se dedicou com empenho jubiloso à educação de Jesus Cristo, assim também guarda e protege o seu Corpo místico, a Igreja, da qual a Virgem Santíssima é figura e modelo” (Exort. ap. Redemptoris Custos, 1).

Como realiza José esta guarda? Com discrição, com humildade, no silêncio, mas com uma presença constante e uma fidelidade total, mesmo quando não consegue entender. Desde o casamento com Maria até ao episódio de Jesus, aos doze anos, no templo de Jerusalém, acompanha com solicitude e amor cada momento.

Permanece ao lado de Maria, sua esposa, tanto nos momentos serenos como nos momentos difíceis da vida, na ida a Belém para o recenseamento e nas horas ansiosas e felizes do parto; no momento dramático da fuga para o Egito e na busca preocupada do filho no templo; e depois na vida quotidiana da casa de Nazaré, na carpintaria onde ensinou o ofício a Jesus.

Como vive José a sua vocação de guardião de Maria, de Jesus, da Igreja? Numa constante atenção a Deus, aberto aos seus sinais, disponível mais ao projeto d’Ele que ao seu. E isto mesmo é o que Deus pede a David, como ouvimos na primeira Leitura: Deus não deseja uma casa construída pelo homem, mas quer a fidelidade à sua Palavra, ao seu desígnio; e é o próprio Deus que constrói a casa, mas de pedras vivas marcadas pelo seu Espírito.

E José é “guardião”, porque sabe ouvir a Deus, deixa-se guiar pela sua vontade e, por isso mesmo, se mostra ainda mais sensível com as pessoas que lhe estão confiadas, sabe ler com realismo os acontecimentos, está atento àquilo que o rodeia, e toma as decisões mais sensatas. Nele, queridos amigos, vemos como se responde à vocação de Deus: com disponibilidade e prontidão; mas vemos também qual é o centro da vocação cristã: Cristo. Guardemos Cristo na nossa vida, para guardar os outros, para guardar a criação!

Entretanto a vocação de guardião não diz respeito apenas a nós, cristãos, mas tem uma dimensão antecedente, que é simplesmente humana e diz respeito a todos: é a de guardar a criação inteira, a beleza da criação, como se diz no livro de Gênesis e nos mostrou São Francisco de Assis: é ter respeito por toda a criatura de Deus e pelo ambiente onde vivemos. É guardar as pessoas, cuidar carinhosamente de todas elas e cada uma, especialmente das crianças, dos idosos, daqueles que são mais frágeis e que muitas vezes estão na periferia do nosso coração. É cuidar uns dos outros na família: os esposos guardam-se reciprocamente, depois, como pais, cuidam dos filhos, e, com o passar do tempo, os próprios filhos tornam-se guardiões dos pais. É viver com sinceridade as amizades, que são um mútuo guardar-se na intimidade, no respeito e no bem. Fundamentalmente tudo está confiado à guarda do homem, e é uma responsabilidade que nos diz respeito a todos. Sede guardiões dos dons de Deus!

E quando o homem falha nesta responsabilidade, quando não cuidamos da criação e dos irmãos, então encontra lugar a destruição e o coração fica ressequido. Infelizmente, em cada época da história, existem “Herodes” que tramam desígnios de morte, destroem e deturpam o rosto do homem e da mulher.

Queria pedir, por favor, a quantos ocupam cargos de responsabilidade em âmbito econômico, político ou social, a todos os homens e mulheres de boa vontade: sejamos “guardiões” da criação, do desígnio de Deus inscrito na natureza, guardiões do outro, do ambiente; não deixemos que sinais de destruição e morte acompanhem o caminho deste nosso mundo! Mas, para “guardar”, devemos também cuidar de nós mesmos. Lembremo-nos de que o ódio, a inveja, o orgulho sujam a vida; então guardar quer dizer vigiar sobre os nossos sentimentos, o nosso coração, porque é dele que saem as boas intenções e as más: aquelas que edificam e as que destroem. Não devemos ter medo de bondade, ou mesmo de ternura.

A propósito, deixai-me acrescentar mais uma observação: cuidar, guardar requer bondade, requer ser praticado com ternura. Nos Evangelhos, São José aparece como um homem forte, corajoso, trabalhador, mas, no seu íntimo, sobressai uma grande ternura, que não é a virtude dos fracos, antes pelo contrário denota fortaleza de ânimo e capacidade de solicitude, de compaixão, de verdadeira abertura ao outro, de amor. Não devemos ter medo da bondade, da ternura!

Hoje, juntamente com a festa de São José, celebramos o início do ministério do novo Bispo de Roma, Sucessor de Pedro, que inclui também um poder. É certo que Jesus Cristo deu um poder a Pedro, mas de que poder se trata? À tríplice pergunta de Jesus a Pedro sobre o amor, segue-se o tríplice convite: apascenta os meus cordeiros, apascenta as minhas ovelhas.

Não esqueçamos jamais que o verdadeiro poder é o serviço, e que o próprio Papa, para exercer o poder, deve entrar sempre mais naquele serviço que tem o seu vértice luminoso na Cruz; deve olhar para o serviço humilde, concreto, rico de fé, de São José e, como ele, abrir os braços para guardar todo o Povo de Deus e acolher, com afeto e ternura, a humanidade inteira, especialmente os mais pobres, os mais fracos, os mais pequeninos, aqueles que Mateus descreve no Juízo final sobre a caridade: quem tem fome, sede, é estrangeiro, está nu, doente, na prisão (cf. Mt 25, 31-46). Apenas aqueles que servem com amor capaz de proteger.

Na segunda Leitura, São Paulo fala de Abraão, que acreditou «com uma esperança, para além do que se podia esperar» (Rm 4, 18). Com uma esperança, para além do que se podia esperar! Também hoje, perante tantos pedaços de céu cinzento, há necessidade de ver a luz da esperança e de darmos nós mesmos esperança. Guardar a criação, cada homem e cada mulher, com um olhar de ternura e amor, é abrir o horizonte da esperança, é abrir um rasgo de luz no meio de tantas nuvens, é levar o calor da esperança! E, para o crente, para nós cristãos, como Abraão, como São José, a esperança que levamos tem o horizonte de Deus que nos foi aberto em Cristo, está fundada sobre a rocha que é Deus.

Guardar Jesus com Maria, guardar a criação inteira, guardar toda a pessoa, especialmente a mais pobre, guardarmo-nos a nós mesmos: eis um serviço que o Bispo de Roma está chamado a cumprir, mas para o qual todos nós estamos chamados, fazendo resplandecer a estrela da esperança: Guardemos com amor aquilo que Deus nos deu!

Peço a intercessão da Virgem Maria, de São José, de São Pedro e São Paulo, de São Francisco, para que o Espírito Santo acompanhe o meu ministério, e, a todos vós, digo: rezai por mim! Amém.

(Fonte: Boletim da Santa Sé)

Francisco, uma parábola sobre a proximidade de Deus

Entrevista com o cardeal Luis Antonio Tagle, prefeito da Congregação para a Evangelização dos Povos, sobre o sétimo aniversário da eleição do Papa Francisco
Orando pelos que sofrem, sem distinções: seja às populações contagiadas pelo Coronavírus como às que sofrem pela guerra como acontece na Síria. Assim vive o Papa Francisco nestes dias particulares, com as medidas extraordinárias para contrastar a pandemia. Dias que marcam o sétimo aniversário da sua eleição à Cátedra de Pedro. O dia 13 de março de 2013 é uma recordação inesquecível para os fiéis de todo o mundo e é recordado com particular emoção pelo cardeal Luis Antonio Tagle. Nesta entrevista ao Vatican News, o prefeito da Congregação para a Evangelização dos Povos, fala sobre os temas chave do Pontificado, definindo estes sete anos de Francisco como uma “parábola” sobre a proximidade e a compaixão de Deus.
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Cardeal Tagle, passaram sete anos da eleição do Papa Francisco. Quais são suas recordações pessoais daquele dia?

Eu era um dos seis novos cardeais criados pelo Papa Bento XVI no seu último Consistório de 24 de novembro de 2012. Três meses depois participei do Conclave que elegeu Papa Francisco. O evento é uma experiência única, mas com muitos aspectos. Entre as numerosas recordações daquele dia, gostaria de falar de duas. Primeiramente quando o cardeal Bergoglio obteve o número de votos necessários para ser eleito Papa, entre os cardeais nasceu espontâneo aplausos de alegrias e louvores a Deus, que mais uma vez nos garantia que não teria abandonado a sua Igreja. Mas quando olhei para o cardeal Bergoglio ele estava sentado com a cabeça abaixada. A minha exuberância transformou-se, de improviso, em pathos. No gesto do novo Papa percebi o peso da obediência, a aceitação à vontade de Deus. Percebi também a necessidade de baixar a cabeça em oração, um ato de confiança em Deus, que é o verdadeiro Pastor da Igreja. Depois, quando nos reunimos com Papa Francisco para saudar a multidão reunida na Praça São Pedro dei-me conta de que cada novo Pontífice é um dom que Deus “desvendará” lentamente no decorrer dos anos do seu ministério papal, uma promessa que Deus cumprirá diante do Seu povo. Naquele dia, enquanto eu agradecia a Deus pelo dom de ter Papa Francisco como nosso Papa, emocionava-me vendo o dom e a promessa que Deus teria iniciado a compartilhar com a Igreja e o mundo nos anos que viriam.

O que este Pontificado trouxe para o senhor pessoalmente e como pastor de uma grande diocese como Manila?

Além da riqueza do ensinamento e dos gestos que recebemos do Papa Francisco nestes últimos sete anos, alegro-me pelas lições que aprendi com o seu exemplo, especialmente como pastor em Manila. Prestar atenção às pessoas individualmente no meio da grande multidão, manter contato pessoal dentro de uma grande organização ou “burocracia” eclesiástica, aceitar os próprios limites e a necessidade de ter colaboradores em meio a esperas “infinitas”, saber que você é um servidor e não o Salvador.

O senhor teve muitas ocasiões de encontro com o Papa Francisco. O que mais o impressiona como pessoa e como testemunho?

O cardeal Bergoglio e eu trabalhamos juntos como membros do Conselho Ordinário da Secretaria do Sínodo dos Bispos de 2005 a 2008. Impressiona-me o fato que levou ao papado a pessoa simples que sempre foi, de humor e consciência que sempre conheci. Praticamente, todos os encontros que tive com ele, a primeira pergunta que me fez não se refere às questões do dia, mas é: “como estão os seus pais?”. Mesmo se justamente são muitos os que o consideram um dos motores e moldadores mais influentes da história e da humanidade contemporânea, eu vejo nele e nas nossas conversas uma simples “parábola” da proximidade e da compaixão de Deus. Sendo esta “parábola”, Papa Francisco pode mover e modelar a história.

Para o Papa, os descartados são os primeiros: doentes, pobres, migrantes. Atualmente podemos nos referir às pessoas atingidas pelo Coronavírus. Porém, há pessoas que têm dificuldade em aceitar a sua “opção preferencial” pelos últimos. Por que, na sua opinião?

Não quero julgar ninguém, especialmente os que, como o senhor diz, têm dificuldade de aceitar esta “opção preferencial” pelos descartados, como também pela Criação. Desejo simplesmente recordar a todos, incluindo eu mesmo, que o amor especial que os cristãos devem ter pelos últimos na sociedade, não é uma invenção do Papa Francisco. A Bíblia, a prática da Igreja desde o seu nascimento, os ensinamentos sociais da Igreja, o testemunho dos mártires e santos, assim como a missão constante da Igreja pelos pobres e os esquecidos no decorrer dos séculos, constituem um coral e uma sinfonia que somos convidados a escutar e aos quais somos chamados a unir as nossas vozes e os “instrumentos” dos quais dispomos, quer dizer a nossa pessoa, o nosso tempo, os nossos talentos, a nossa riqueza. Proponho mais contatos pessoais e encontros com as pessoas indefesas e pobres. Mas devemos consentir que estes encontros nos perturbem o coração para nos levar à oração, de modo que possamos sentir Jesus que nos fala através dos pobres.

Para o Papa Francisco o anúncio missionário é fundamental. Como pode ser mais concreta a “Igreja em saída” que o Papa fala. De que modo isso inspira o senhor no seu cargo de Prefeito da Congregação para a Evangelização dos Povos?

É verdade que a “Igreja em saída” segundo o Papa Francisco é uma Igreja que vai na direção dos homens e mulheres e as situações concretas do mundo para levar o Evangelho. Sempre através de palavras e fatos. A missão ou evangelização é a razão do “ser” Igreja. Porém, não podemos esquecer que o Papa Francisco sublinha também o fato essencial que a missão deve ter origem a partir de um profundo encontro com Jesus, de uma experiência de fé e da convicção de que Jesus nos ama e nos salva, de um coração cheio de alegria que apenas o Evangelho pode dar, de um coração movido pelo Espírito Santo para partilhar com os outros, de modo que a nossa e a sua alegria possa ser perfeita (cf. 1 João 1,4). Sem Jesus e o Espírito Santo, a missão não é “um sair” que chega do Pai. Torna-se um projeto humano, um programa social ou cívico que por si pode ser bom, mas talvez não seja uma missão cristã ou eclesial no sentido da palavra “missão”. A missão cristã autêntica exige testemunhas autênticas. Precisamos de missionários autênticos, não apenas de operários. Esperamos conseguir manter e promover esta orientação na Congregação para a Evangelização dos Povos

Por fim, quais são seus votos ao Santo Padre neste aniversário tão importante.

Desejo que o Papa Francisco possa continuar a descobrir e manifestar o dom e a promessa feita por Deus à Igreja e à humanidade quando, sete anos atrás, foi chamado ao ministério petrino. Que possa ser consolado pela oração e pelo amor de tantas pessoas. E gostaria de dizer: “Santo Padre, fique com saúde e cheio de alegria!”.

Alessandro Gisotti – Vatican News

Os cinco primeiros anos de Francisco, o papa 'que desceu do trono'

Logo após o “habemus papam“, naquela noite de 13 de março de 2013 em Roma, o sorridente cardeal Jorge Bergoglio apresentou-se para uma Praça São Pedro lotada. Havia se tornado, então, papa Francisco, o 266º sumo pontífice da Igreja Católica. “Parece que meus colegas foram buscar um papa no fim do mundo”, disse ele, em referência à sua Argentina natal.

Bom humor à parte, Bergoglio assumia uma Igreja em crise – em meio a diversos escândalos de pedofilia do clero, com divisões internas e perdendo fiéis e popularidade em todos os cantos do mundo – e após uma histórica renúncia, já que Bento 16 foi o primeiro pontífice a abdicar do trono de Pedro em quase 600 anos.

Sua eleição, por si só, foi repleta de ineditismos. Pela primeira vez, a Igreja Católica tem um líder latinoamericano. Pela primeira vez, um jesuíta. E, pela primeira vez, alguém adotava o nome Francisco – sugestão dada a Bergoglio pelo seu colega brasileiro, o cardeal emérito de São Paulo d. Claudio Hummes, que pediu a ele que não se esquecesse dos pobres.

Passados cinco anos, as crises da Igreja permanecem prementes, com um papado ainda exercido sob a sombra das acusações de abusos sexuais contra sacerdotes. Isso, junto com a resistência a mudanças e lutas de poder entre bispos, padres e cardeais, torna Francisco um alvo frequente de hostilidades dentro e fora da Igreja.

Mas defensores argumentam que o papa imprimiu à conservadora instituição uma personalidade mais carismática, além de se envolver em questões mundiais urgentes: publicou uma encíclica em defesa da ecologia, fala com frequência em defesa dos refugiados da crise imigratória e intermediou a histórica retomada da diplomacia entre os Estados Unidos e Cuba.

“Francisco trouxe para a Igreja uma visão revigorante, interessante e atraente. Enquanto outros papas se concentraram na aplicação de regras ou normas doutrinárias, ele tenta atrair as pessoas para a mensagem primordial: uma Igreja que espalha a boa-nova de Jesus por meio do encontro, do diálogo e do testemunho”, analisa o vaticanista Joshua J. McElwee, autor de livros sobre o atual papa. “Muitos católicos têm achado essa visão convidativa.”

O teólogo e filósofo Fernando Altemeyer Junior, professor do Departamento de Ciência da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), avalia que “os cinco anos do pontificado de Francisco são um bálsamo de oxigênio para os cristãos, e braços abertos aos outros crentes e mesmo aos ateus que buscam a verdade e a justiça no mundo.”

“Francisco não veio repetir fórmulas e enrijecer respostas obsoletas e caducas. Francisco veio propor algo novo, como pastor da esperança e da alegria, especialmente aos jovens, aos migrantes e às famílias.”

Visão pastoral

O papa insiste que o seu papel é pastoral, lembra o jornalista Filipe Domingues, que acompanha de Roma o atual pontificado desde o início. “Isso quer dizer que ele vê o bispo, o padre, como um pastor que guia um rebanho. E quando uma ovelha se perde, o pastor deixa todas as outras e vai atrás daquela ovelha perdida”, explica.

“A sua visão de Igreja, quando fala de misericórdia, de acolher os mais fracos, de não forçar uma visão idealizada da família, de pensar no ambiente em que vivemos, que foi doado por Deus e, se não cuidarmos do ambiente prejudicamos em primeiro lugar os mais frágeis da sociedade… Tudo isso é guiado por uma visão pastoral, muito próxima das pessoas.”

Mestre e doutorando em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, Domingues ressalta que Francisco foi escolhido, “antes de mais nada, para conduzir uma reforma”.

Isso porque a renúncia de Bento 16 permitiu que os cardeais tivessem cerca de um mês para conversar abertamente sobre os problemas da Igreja – antes mesmo de entrar no conclave.

“Bergoglio foi eleito, claramente, com o objetivo de realizar uma ‘reforma de gestão’, de forma colegial e não autoritária. Por isso, foi criado o conselho de cardeais e uma série de mudanças administrativas foram feitas na Cúria Romana”, diz ele.

“Ainda não temos clareza de quais serão os efeitos disso na prática. É um processo lento e sem respostas de curto prazo. Deve continuar no pontificado do próximo papa, com certeza.”

Denúncias de abusos

O ponto mais delicado de seu papado, porém, continua sendo a avalanche de acusações de pedofilia contra sacerdotes católicos, como evidencia a hostilidade enfrentada por Francisco em sua recente visita ao Chile – país onde um bispo nomeado pelo papa é acusado de ter acobertado um padre condenado por abusos sexuais.

“Ele próprio já se perguntou recentemente se está reagindo adequadamente aos casos de abusos sexuais por parte do clero”, comenta McElwee. “Viajei com Francisco durante sua visita ao Chile, em janeiro, e ficou muito claro que muitas pessoas estavam desapontadas com sua defesa do bispo (acusado de acobertar o caso)”.

No ano passado, o jornalista italiano Emilio Fittipaldi, autor de livros sobre o Vaticano, afirmou em entrevistas que “Francisco não defende diretamente os pedófilos, mas fez quase nada para combater o fenômeno da pedofilia (na Igreja)”.

Domingues acredita que o tema é o ponto fraco do pontificado de Francisco. “Às vezes a questão é tratada como mais um problema, como os outros. Este não é um problema como os outros. É um dos problemas mais graves na história da Igreja e existe em todo o mundo, dentro e fora da Igreja”, diz. “É algo a ser abominado e expurgado da Igreja com todas as forças – não pode ficar parado em burocracias e lutas internas de poder.”

Lutas por poder

Por falar em lutas internas do poder, a resistência enfrentada por Francisco dentro da cúpula da Igreja também é um problema – que muitas vezes acaba exposto.

Em 2015, por exemplo, poucos dias antes do Sínodo dos Bispos, um evento que reuniu 270 religiosos de todo o mundo para debater no Vaticano, uma carta supostamente assinada por 13 cardeais descontentes com o papa acabou sendo publicada pelo vaticanista Sandro Magister.

O texto continha preocupações de que a Igreja Católica, sob a batuta de Francisco, estaria enveredando pelo “caminho protestante ‘liberal'”, ao “enevoar” ensinamentos e sacramentos. Pelo menos dois cardeais da ala conservadora da Igreja admitiram a existência da correspondência – embora tenham ressaltado que o teor não era exatamente como foi publicado pela imprensa.

“Em tempos recentes, não há notícia de um papa que tenha sofrido tanta resistência interna, da parte de bispos, padres ou cardeais”, avalia o padre Antonio Manzatto, doutor em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina e coordenador do grupo de pesquisa Lerte (Literatura, Religião e Teologia) da PUC-SP. “Tal oposição não advém de posições doutrinais, mas do apego a privilégios.”

“Ele nem sempre foi bom em se explicar aos conservadores, que estão assustados e desconcertados por ele”, acredita o vaticanista Austen Ivereigh, autor de The Great Reformer: Francis and the making of a radical pope (O grande reformador: Francisco e a formação de um papa radical, em tradução livre).

Para Domingues, como as reformas no Vaticano são lentas, esta morosidade traz uma incerteza que só aumenta os boatos e as aversões a qualquer mudança. “É natural que, quando entra um novo líder no poder, outros grupos percam representatividade, ou que algumas pessoas sejam afastadas de seus cargos. Mas as reformas que o papa conduz tocam forte nessas diferenças entre grupos políticos na Cúria e fora dela.”

“As pessoas da Cúria que se ressentem de Francisco dizem: ‘nós ainda estaremos aqui quando ele for embora’. Os burocratas não gostam de mudar”, comenta Ivereigh.

Dados compilados por Altemeyer a partir de informações disponibilizadas pelo Vaticano mostram que ao menos no colégio cardinalício a influência de Francisco já é grande. De todos os 216 cardeais vivos – de 83 países diferentes –, apenas 118 têm direito a voto num eventual conclave.

Isto porque os purpurados com mais de 80 anos não são mais eleitores. Considerando apenas os votantes, 49 foram nomeados no atual pontificado – outros 49 no pontificado de Bento 16; e o restante por João Paulo 2º.

Pastor ‘com cheiro das ovelhas’

Ao mesmo tempo, Francisco é visto como “um papa que desceu do trono”. Como se diz no meio religioso, seu papado é o de “um pastor com cheiro de ovelhas”.

“Ele quer transmitir ao mundo a ideia de que o papa é um líder, mas que está junto ao seu povo, no meio do povo, que veio do povo – por isso alguns o chamam de ‘populista’. E para estar junto é preciso viver com simplicidade, como vivem as pessoas mais humildes, e falar diretamente, olho no olho, e não de cima para baixo”, opina Domingues.

“Francisco procurou superar um fosso crescente entre a Igreja e o povo de hoje, por meio de uma reforma de atitudes e, quando necessário, das estruturas”, diz Ivereigh.

“Nessa área, suas conquistas têm sido enormes. As pessoas agora têm uma visão diferente da Igreja. Ela é vista como mais semelhante a Cristo, menos preocupada consigo mesma e mais ligada às necessidades e aos sofrimentos concretos do povo de hoje. É uma grande conquista em apenas cinco anos; mas, claro, está longe de ser completa.”

Em foto de 2013, Francisco chega à Praça São Pedro para sua primeira missa como papa

“Ele tem insistido que todos os membros da Igreja precisam motivar-se a partir do Evangelho de Jesus, e não a partir de valores da ‘mundanidade’: carreira, privilégios, glórias pessoais, etc.”, afirma Manzatto.

“Parece pouco, mas é muito se olharmos para os comportamentos de muitos membros atuais do clero. O segundo foco é pastoral, que se pode dizer social. A preocupação de que a Igreja esteja ao lado dos pequenos, dos fracos, dos sofredores, dos pobres. Seu ensinamento vai nessa direção, e a junção dos dois focos é a marca de seu pontificado.”

“A ênfase no social e na opção pelos pobres, rigorosamente falando, já estava presente nos papados anteriores, ainda que não tão acentuada”, comenta o sociólogo e biólogo Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador de projetos do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

“Até que ponto esses novos documentos (produzido pelo pontificado de Francisco) serão realmente o gérmen de uma época depende da acolhida global que receberão nos próximos 15 anos, do nascimento de uma nova geração de sacerdotes, consagrados e militantes católicos em nível mundial.”

Mais santos e beatos

Em cinco anos de pontificado, papa Francisco já é o maior canonizador de santos da Igreja Católica, conforme demonstra levantamento realizado por Altemeyer, da PUC-SP, com base em informações disponibilizadas pelo Vaticano.

Até agora, Francisco reconheceu 878 santos e 1.115 beatos. Antes, o recordista era João Paulo 2º, que nos 26 anos de pontificado fez 482 santos e 1.341 beatos. Bento 16, o antecessor de Francisco, inscreveu no cânon 45 novos santos e 371 beatos – foram quase 8 anos à frente da Igreja.

Altemeyer também compilou as viagens missionárias de Francisco. Até agora foram 17 viagens internas na Itália e 22 viagens internacionais nas quais visitou 31 países – entre eles Brasil, Estados Unidos, Cuba, Quênia, Bangladesh e Myanmar.

Sua produção documental e catequética já compreende 992 discursos, duas exortações apostólicas, 34 constituições apostólicas, 165 cartas, uma bula, 30 cartas apostólicas, 216 mensagens, 31 motu próprios e duas encíclicas – Lumen Fidei e Laudato Si’.

Avanços e preocupações

Do ponto de vista sociopolítico, um destaque da gestão do pontífice argentino é a publicação, em 2015, da 298ª encíclica papal, chamada de Laudato Si’ – a primeira da História a trazer o meio ambiente como tema principal.

“Essa encíclica teve um impacto real sobre os acordos ambientais de Paris, e foi calculada para isso”, afirma Domingues. “Mas ele mesmo, sozinho, não pode fazer nada para mudar os rumos do cenário global. É preciso que a sociedade e os líderes mundiais o ouçam e entrem em diálogo.”

Outro aspecto importante é a ênfase que Francisco dá à importância do acolhimento dos imigrantes, em um tempo de crise de refugiados mundial e forte clima de xenofobia, sobretudo com a ascensão de governos de direita na Europa.

“Sua frase sobre os imigrantes – ‘construir pontes, e não muros’ – tornou-se um slogan mundial”, lembra McElwee. “(O papa) é a voz que defende os pobres e profeticamente clama por uma mudança de sistema. Não é ouvido na medida em que os interesses econômicos dominam o comportamento de chefes de Estado ou outros líderes globais”, diz Manzatto.

Em termos de geopolítica mundial, Francisco já garantiu seu nome na história. Ele é apontado como o responsável pelo fim de um rompimento que parecia eterno: o das relações entre Cuba e os Estados Unidos, interrompidas em janeiro de 1961 e retomadas em dezembro de 2014.

Dezoito meses antes do anúncio diplomático, papa Francisco intermediou conversas entre ambos os governos, tanto no Canadá quanto no Vaticano. “É um tremendo impacto no cenário mundial”, comenta McElwee.

Texto da BBC Brasil

Sete anos de Francisco: sonho e profecia.

O dia 13 de março marca o sétimo aniversário da eleição de Bergoglio como bispo de Roma. Por ocasião da data, a editora EDB publicou o livro “Profezia di Francesco. Traiettorie di un pontificato” [Profecia de Francisco. Trajetórias de um pontificado], com contribuições de D. MenozziP. SequeriS. MorraP. BenantiA. Zani e K. Appel.

Trata-se da abordagem de um caminho realizado pela província dehoniana do norte da Itália que havia dedicado a esse tema a “Semana de Formação Permanente” em 2018.

A redação do Settimana News, 08-03-2020, apresenta o livro publicando a introdução, escrita pelo teólogo e padre italiano Marcello Neri, professor da Universidade de Flensburg, na Alemanha.

A tradução é de Moisés Sbardelotto (www.ihu.unisinos.br).

Eis o texto.

O alívio histórico do pontificado de Francisco é frequentemente coberto pelo zumbido dos murmúrios da oposição, pelos disparos antiaéreos lançados pelos seus estrênuos defensores e pelo desânimo daqueles que imaginavam uma repentina e verticalista transformação dogmática e canônica do corpo da Igreja.

Na disposição dos fronts que caracterizam hoje a Igreja Católica, o que corre o risco de se perder é precisamente o senso histórico de um ministério petrino determinado a fazer as contas evangelicamente com uma mudança de época que já começou há muito tempo.

Porque o ponto de ruptura em relação aos seus dois antecessores não está tanto, ou não apenas, na visão da Igreja, mas, acima de tudo, na consciência histórica do fim de alguns processos seculares e do início de outros que estão levando a transformações profundas da socialidade humana e da antropologia moderna.

Francisco age e pensa a Igreja precisamente a partir dessa consciência incômoda: a modernidade, como europeização do mundo e tudo o que isso inclui, já acabou há quase um século (P. Prodi).

Com essa modernidade, a Igreja instruíra uma relação dialética, que fez a sua história configurando as suas principais instituições que a marcaram e a moldaram. Em virtude dessa dialética, constitutiva e constitucional ao mesmo tempo, o fim da modernidade também significa chegar ao término de uma época da Igreja Católica.

O fim da modernidade

Em suma, em comparação com João Paulo II e Bento XVI, Francisco não pensa e não age mais como se a modernidade ainda existisse; e, portanto, começa a delinear uma visão da Igreja e do catolicismo coerente com a efetividade histórica dentro da qual eles projetam a sua fidelidade ao evangelho do Reino e à criação desejada por Deus. Fidelidade que não pode mais ser unívoca e uniforme, a mesma e idêntica onde quer que a fé se encontre sendo vivida no cotidiano dos homens e das mulheres de hoje.

Desde o início, a adesão comum à história de Jesus, como presença palpável do cuidado incondicional de Deus pela criação e pelas suas criaturas, pode ser efetivamente tal somente na medida em que se despedaça em uma série de relatos constitutivamente abertos sobre a retomada da fé e da sua imaginação, que os conjuga em contextos culturais e sociais extremamente diferentes entre si.

A decisão de Francisco é exatamente esta: apoiar a saída da Igreja Católica da luta contra os moinhos de vento da modernidade, reativando, no coração institucional da Igreja, a dinâmica original da notícia evangélica de Deus. Por muito tempo, a condição histórica permitiu que o catolicismo latino (aquele que se espalhou por todo o mundo) construísse um aparato conceitual, institucional, canônico e pastoral que podia renunciar formalmente ao corpo a corpo cotidiano com as Escrituras testemunhais.

O tempo novo

A intuição à qual Francisco permanece firmemente ancorado não é apenas o fato de que essa tática de ocultação não funciona mais, mas que a sua reproposição em uma nova condição histórica faria com que a Igreja Católica corresse o risco de se transformar em uma espécie de seita eletiva, por um lado, e em um agrupamento caracterizado por uma etnia cultural, por outro.

Tudo isso às custas daquela destinação universal e hospitaleira da fé, que é a razão (divina) da existência da Igreja Católica. Não há abertura, gesto, intenção, processo, expectativa no ministério de Francisco que não se enquadre no espaço luminoso desta persuasão fundamental: a hospitalidade do divino cristão tem o dever de cuidar da justiça e da dignidade da existência humana sobre a terra desejada por Deus – sem distinções e sem pré-seleções. Todos, indiscriminadamente, são os destinatários dessa boa notícia; e é dever da fé fazer com que possam percebê-la exatamente como tal.

Sem ingenuidade alguma, porque Francisco sabe muito bem que as potências mundanas se alimentam do gozo perverso de contradizer esse desejo de destinação do Reino de Deus. Mas, com a teimosia evangélica, recusa-se a deixar a elas a última palavra, travando uma batalha em favor da justiça que deve ser feita ao humano, sem a qual a sua dignidade corre o risco de permanecer apenas como uma declaração de intenções, que se expõe à ira e à vingança daquelas mesmas potências.

Firme no leme

E aqui, na brecha desse confronto de armas brancas, Francisco permanece bem firme, intercedendo por todos, especialmente por aqueles que são descartados sem piedade alguma pela lógica do gozo ilimitado de lucros especulados sobre o destino dos mais fracos e frágeis.

Atrair sobre si a violência das potências – e a de uma oposição eclesial que parece não se dar conta do risco de se colocar a seu serviço –, para que todos possam ter uma vida em abundância e aspirar à justiça esperada, é o pano de fundo cristológico ao qual o ministério petrino nunca deveria abrir mão.

Podemos ou não concordar com Francisco sobre muitas coisas, mas é exatamente isso que ele está fazendo por nós – independentemente daquilo que nós pensamos dele.

Por isso, o seu ministério merece ser compreendido e apoiado, enquanto assumimos o fardo daquela parte que ele não desempenha por nós, porque só pode ser realizada do modo desejado por Deus, mediante as práticas da nossa fé mais pessoal.

Nessa ótica, pareceu-nos oportuno reunir no livro que o leitor tem em mãos as conferências proferidas durante a Semana de Formação Permanente da Província Dehoniana do norte da Itália sobre o tema da “Profecia de Francisco”.

Capa do Livro “Profezia di Francesco” (Foto: Divulgação Settimana News)

Como aquela semana, este livro também não olha para o passado, mas para o tempo que vem: estar à altura da intenção evangélica de um pontificado também nos tempos em que ele será uma história que nos precedeu.

2019: a certeza da fé e a luta contra as idolatrias

Um ano intenso para Francisco, com muitas viagens e muitos encontros, com um objetivo: anunciar a Boa Nova da misericórdia de Deus.
Também neste ano, o Papa Francisco nos presenteou com uma catequese simples, para todos, sobre o amor de Deus. A missão mais importante é anunciar o Evangelho, disse ele, e neste 2019 ele o fez com as 41 Audiências Gerais (com os ciclos sobre o Pai Nosso e sobre os Atos dos Apóstolos, este último em andamento), 56 Angelus e Regina Caeli, mais de 60 homilias em celebrações públicas, 44 homilias na Santa Marta (isto sem falar nas mensagens, cartas, documentos, entrevistas que se tornaram livros e cerca de 260 discursos públicos).
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Certezas, não confusão

Francisco recorda a todos que, na base da nossa vida, há uma certeza consoladora: Deus nos ama e em Jesus deu a vida por nós. Trata-se da mensagem central de toda a sua missão (Evangelii gaudium, texto programático do Pontificado de Francisco). Convida a recordar a “fé simples e robusta” das mães e avós, que “dava a elas força e perseverança para seguir em frente e não deixar cair os braços”, “uma fé caseira, que passa despercebida, mas que constrói pouco a pouco o reino de Deus”. Uma fé que não se deixa confundir, porque se baseia nos fundamentos do Evangelho.

Fé e idolatria

Francisco exorta a adorar o único verdadeiro Deus, Uno e Trino, em uma sociedade que se torna cada vez mais pagã. “A idolatria – disse ele – não é somente ir a um templo pagão e adorar uma estátua. Não, idolatria é uma atitude do coração”, é quando se prefere algo porque é mais cômodo para si e se esquece do Senhor. Os ídolos mudaram de nome, mas estão mais presentes do que nunca: o ídolo do dinheiro, do sucesso, da carreira, da auto realização, do prazer e todos aqueles ídolos que prometem felicidade, mas que não a dão, antes pelo contrário, escravizam, nos roubam o amor. Os ídolos prometem vida, mas a tiram – disse o Papa em uma bela catequese no ano passado – enquanto o verdadeiro Deus não pede a vida, mas a dá.

O fariseu dentro de nós não quer ser corrigido

Às vezes, as palavras do Papa são fortes, como sabia fazer Jesus. No fundo é o seu Vigário. Como ele, adverte em particular para o comportamento farisaico daqueles que se consideram justos, mais ortodoxos, melhores que os outros. É “a religião do eu”, com seus ritos e suas orações, daqueles que “se confessam católicos, mas esqueceram de ser cristãos e humanos”, esqueceram de prestar o “verdadeiro culto a Deus, que sempre passa pelo amor ao próximo”.

Francisco propõe o caminho da autoacusação: em todos nós – observa – ressurge sempre “o fariseu”, presunçoso, campeão em justificar-se. O caminho da fé é sempre o de ter a humildade de deixar-se corrigir.

Mansidão diante dos ataques

Como as palavras fortes de Jesus, também as do Papa têm um duplo efeito: ou se sai convertidos ou ainda mais endurecidos. Disto as resistências internas e os ataques. Francisco não teme um cisma, disse no voo de volta da África.

“Hoje – observa – temos tantas escolas de rigidez dentro da Igreja, que não são cismas, mas são caminhos cristãos pseudocismáticos, que terminarão mal”, porque por trás desse comportamento rígido “não há santidade do Evangelho”.

O Papa convida a responder ao mal com o bem, a “ser mansos com as pessoas que são tentadas a fazer esses ataques”, porque “estão passando por algum problema” e devem ser acompanhadas “com mansidão”.

Eles temem que a Igreja de hoje não seja mais católica, colocando palavras nunca ditas na boca do Pontífice: mas não mudou nenhum dogma, há somente um passo adiante na acolhida e na misericórdia; não foram canceladas devoções, há somente o convite para vivê-las com o coração. Com a exortação para caminhar unidos como povo, para que o desenvolvimento da doutrina esteja sempre unido à verdadeira Tradição. E fica uma pergunta: os cristãos conseguirão ser misericordiosos entre eles?

Sínodo para a Amazônia: conversão a Jesus, Ele é o centro

Em outubro passado realizou-se o Sínodo para a região Pan-Amazônica. O Papa repetiu muitas vezes a palavra “conversão”, que é o conceito que encontrou seu lugar no Documento final como a principal exortação da assembleia. O Sínodo pede uma conversão quádrupla: sinodal, porque a Igreja deve ser cada vez mais um caminhar juntos e não dividida ou sozinha; cultural, porque é necessário saber falar com as diferentes culturas; ecológica, porque a exploração egoísta do meio ambiente leva à destruição dos povos; pastoral, porque o anúncio do Evangelho é urgente.

Na base dessas quatro conversões há a única conversão ao Evangelho vivo, que é Jesus. A verdadeira conversão é colocar-se de lado – diz Francisco – sair do centro, colocar Cristo no centro e deixar que o Espírito Santo seja o protagonista de nossa vida.

Lutar contra os abusos, dentro e fora da Igreja

Pode-se definir como histórico o encontro realizado em fevereiro no Vaticano: os responsáveis das Igrejas de todos os continentes trataram do flagelo dos abusos de menores, cometidos na esfera eclesial, e fizeram isso diante do mundo inteiro com coragem e transparência.

No discurso de encerramento do encontro, Francisco recorda, citando dados, que a maior parte dos abusos são cometidos por familiares e educadores, portanto no âmbito doméstico, escolar, esportivo e eclesial, sem mencionar o flagelo do turismo sexual e outras violências.

O fato de ser “um problema universal e transversal que infelizmente se encontra em toda parte” – precisa o Pontífice – “não diminui sua monstruosidade dentro da Igreja”, onde se torna ainda mais grave e escandaloso”, porque em contraste com sua autoridade moral e sua credibilidade ética”.

Com o Motu proprio Vos estis lux mundi, o Papa estabelece novos procedimentos para denunciar abusos, moléstias e violências, e assegurar que os bispos e superiores religiosos respondam por seu agir. ​​

É introduzida a obrigação para clérigos e religiosos de denunciar os abusos. Cada diocese deve criar um sistema facilmente acessível ao público para receber denúncias. Francisco também abole o segredo pontifício para esses casos e altera a norma relativa ao delito de pornografia infantil, incluindo na categoria “delicta graviora”  – os delitos mais graves – a posse e a disseminação de imagens pornográficas envolvendo menores de 18 anos.

Reforma: mais estruturas missionárias

Tiveram continuidade os trabalhos do Conselho de Cardeais (C6) para a reforma da Cúria Romana, para que todas as estruturas da Igreja sejam mais missionárias.

Está sendo finalizado o exame do esboço da nova Constituição Apostólica, cujo título provisório é “Praedicate evangelium”, para significar que o principal serviço que a Santa Sé deve prestar é o do anúncio do Evangelho.

O Papa altera, enquanto isso, o papel do Decano do Colégio Cardinalício: aceita a renúncia do cardeal Sodano, no cargo desde 2005, e com um Motu proprio fixa um tempo determinado para esta missão: cinco anos, eventualmente renováveis.

Que o dinheiro seja para servir ao Evangelho e aos pobres

Prossegue também a reforma financeira, especialmente nos quesitos transparência e contenção de custos. O Papa Francisco renovou o Estatuto do IOR: é introduzida de forma permanente a figura do Auditor externo para a verificação das contas, segundo os padrões internacionais.

Os princípios católicos subjacentes à missão do IOR são especificados, para que a instituição seja mais fiel à sua missão original.

O jesuíta Juan Antonio Guerrero Alves é nomeado prefeito da Secretaria para a Economia. O Papa autoriza uma investigação da magistratura vaticana em relação a várias pessoas que servem à Santa Sé, no âmbito de algumas transações financeiras.

E a Propósito do Óbolo de São Pedro, o Pontífice ressalta que é uma boa administração fazer o dinheiro recebido render, e não deixá-lo parado, guardado na gaveta. Mas o investimento deve sempre ser “moral”, porque o dinheiro está a serviço da evangelização e dos pobres.

Redescobrir a Palavra de Deus para conhecer Jesus

Com a Carta Apostólica “Aperuit illis“, de 30 de setembro, o Papa institui o Domingo da Palavra de Deus, um dia especial para exortar todos os fiéis a ler e meditar a Bíblia, porque – como dizia São Jerônimo – a “ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo.”

É preciso redescobrir a importância fundamental de uma Palavra que transforma concretamente a vida. A data solene foi estabelecida, todos os anos, no terceiro domingo do Tempo Ordinário (em 2020, será em 26 de janeiro).

Que não falte a bela tradição do Presépio

Em 1º de dezembro, Francisco assina em Greccio a Carta Apostólica Admirabile signum, na qual exorta a se redescobrir e revitalizar a bela tradição do presépio.

“Representar o evento do nascimento de Jesus – escreve – é equivalente a anunciar o mistério da Encarnação do Filho de Deus com simplicidade e alegria”. É um ato de evangelização, bonito de se ver “nos locais de trabalho, nas escolas, nos hospitais, nas prisões, nas praças”.

Cristãos perseguidos, hoje mais do que nos primeiros tempos

Francisco nunca se cansa de denunciar as perseguições anticristãs. Hoje – repete – há mais mártires do que nos primeiros tempos do cristianismo.

Em janeiro, a Suprema Corte do Paquistão absolveu definitivamente Asia Bibi, da acusação injusta de blasfêmia, pela qual havia sido condenada à morte. Esta mulher católica, mãe de 5 filhos, estava presa desde 2009. Ela deixou o país com sua família. Tanto Bento XVI quanto o Papa Francisco haviam acompanhado o desenrolar de sua história com grande discrição, por razões de segurança.

Uma das filhas, Eisham, havia encontrado Francisco no ano passado, trazendo a ele um beijo de sua mãe. O Papa disse a ela: “Penso seguidamente em sua mãe e rezo por ela”. E a define como  “maravilhosa mulher mártir”.

21 de abril é Páscoa: um ataque de extremistas islâmicos contra igrejas cristãs no Sri Lanka provoca a morte de mais de 250 pessoas enquanto rezavam. O apelo do Papa chega no mesmo dia. Mas Francisco não deixa de denunciar também ataques contra outras religiões, como aquele contra a mesquitas em Christchurch, Nova Zelândia, em 15 de março, que provocou mais de 50 vítimas fatais.

Defender a família e a vida, toda vida

O Papa, em 25 de março em Loreto, reitera que, em particular no mundo de hoje, “a família fundada no casamento entre um homem e uma mulher assume uma importância e uma missão essenciais”, e seu representante na ONU, o arcebispo Bernardito Auza, recorda suas palavras sobre a ideologia de gênero: é um “passo atrás” para a humanidade.

Francisco defende a vida desde a concepção até seu fim natural. Ele intervém diretamente em favor de Vincent Lambert, o enfermeiro francês de 42 anos, em estado de consciência mínima, que faleceu em julho do ano passado: “Não construímos – foi sua advertência – uma civilização que elimina pessoas cuja vida acreditamos não vale mais a pena ser vivida: toda vida tem valor, sempre”.

O olhar do Papa é de 360​​°: a vida, os direitos e a dignidade devem ser sempre defendidos, desde os nascituros àqueles que sofrem de fome ou sofrem violências, dos doentes e dos anciãos aos migrantes que correm o risco de morrer em busca de um futuro melhor. A justiça não é seletiva, não é para algumas categorias humanas e outras não, é universal.

Aos jovens: descubram o amor de Deus e caminhem contra a corrente

Este ano o Papa publicou a Exortação Apostólica “Christus vivit“, fruto do Sínodo sobre os jovens realizado no Vaticano em outubro de 2018. Este é o incipit: “Cristo vive. Ele é a nossa esperança e a juventude mais bonita deste mundo. (…) Por isso, as primeiras palavras que quero dirigir a cada jovem cristão são: Ele vive e quer você vivo!”.

O Papa escreve: “Peçamos ao Senhor que liberte a Igreja daqueles que querem envelhecê-la, fixá-la no passado, freá-la, torná-la imóvel. Peçamos também que a liberte de outra tentação: acreditar que é jovem porque cede a tudo o que o mundo lhe oferece,” mimetizando-se com os outros. “Não! Ela é jovem quando é ela mesma.”

Francisco propõe “caminhos de fraternidade” para viver a fé, evitando correr “o risco de fechar-se em pequenos grupos”. Convida os jovens a viver o compromisso social em contato com os pobres e a serem protagonistas da mudança para uma civilização mais justa e fraterna.  Por fim, exorta-os a se tornarem “missionários corajosos”, testemunhando o Evangelho em todos os lugares com suas próprias vidas, indo também contra a corrente, especialmente contra as chamadas colonizações ideológicas.

Viagens internacionais: paz para o mundo, porque somos irmãos

Neste 2019, Francisco realizou 7 viagens internacionais, visitando 11 países em 4 continentes, um ano recorde para suas missões fora da Itália. Anuncia o Evangelho da alegria no Panamá para a Jornada Mundial da Juventude; nos Emirados Árabes Unidos assina o histórico documento sobre a Fraternidade humana com o Grão Imame de al- Azhar; no Marrocos reitera a importância do diálogo inter-religioso; na Bulgária, Macedônia do Norte e Romênia, fala da unidade dos cristãos; em Moçambique, Madagascar e Maurício, levanta sua voz em defesa dos pobres e da Criação; na Tailândia, apela à promoção dos direitos das mulheres e das crianças, e no Japão, uma viagem centrada na paz, repete que não apenas o uso, mas também a posse de armas nucleares é imoral.

Santos e Beatos: mártires, leigos e com a púrpura

Também neste ano houve inúmeras canonizações e beatificações. Muitos mártires de todos os continentes e de todas as ideologias: muitos foram mortos por ódio à fé durante a guerra civil espanhola, mortos perdoando seus assassinos; outros, como os sete bispos da Igreja Greco-católica na Romênia beatificados por Francisco em Blaj, são mártires do regime comunista; outros ainda, como o bispo argentino Enrique Angel Angelelli e seus companheiros, foram vítimas de ditadura de direita.

Mas há também os santos leigos, como a suíça Margherita Bays, santos da “porta ao lado” que viveram sua vocação em família, em meio a mil dificuldades. E há tantos santos cardeais, como John Henry Newman, um convertido anglicano à fé católica.

Sacerdote há cinquenta anos, pela misericórdia de Deus

Em 2019, o Papa celebrou 50 anos de sacerdócio. Sua vocação remonta a 21 de setembro de 1953, memória de São Mateus, o cobrador de impostos convertido por Jesus: durante uma confissão, ele tem uma profunda experiência da misericórdia de Deus. É uma imensa alegria que o leva a tomar uma decisão “para sempre”: tornar-se sacerdote para dar aos outros a misericórdia recebida.

O padre, afirma Francisco, vive entre as pessoas com o coração misericordioso de Jesus. Hoje é o tempo da misericórdia. A Igreja  compreende isso cada vez mais em sua caminhada na história: com João XXIII, ela dá um importante passo nessa direção, continuado por todos os seus sucessores, em particular por João Paulo II, que institui o Domingo da Divina Misericórdia, inspirado por Santa Faustina Kowalska. Um dia, todos sem distinção, invocaremos o excesso de misericórdia de Deus que talvez aqui não tenhamos entendido.

Sergio Centofanti – Cidade do Vaticano

Sétimo ano do pontificado. Francisco e a ação litúrgica.

No dia 13 de março, será o sétimo aniversário da eleição de Francisco a bispo de Roma. Sete anos intensos, durante os quais o papa tentou pilotar a barca de Pedro para novas margens, porque estamos vivendo uma “mudança de época” que levanta “sérias interrogações sobre a identidade da nossa fé”, porque “não estamos mais em um regime de cristandade”, e é preciso uma “mudança de mentalidade” não apenas pastoral.

O caminho de reforma empreendido vigorosamente por Bergoglio tem sido continuamente marcado por polêmicas e por uma oposição às vezes decomposta. Ambas preencheram as crônicas, projetando uma sombra sobre o sentido e até sobre a ortodoxia das intervenções reformadoras.

Viandanti, aproveitando a ocasião do aniversário, gostaria de propor, com uma série de contribuições ponderadas, uma leitura que atravesse o período de sete anos, para captar, para além das polêmicas, o sentido profundo da mudança da conversão, da reforma que a Igreja está vivendo.

De modo simbólico, começamos com o tema da liturgia: no Concílio, a Constituição sobre a liturgia foi o primeiro documento aprovado pela grande assembleia.

A reflexão é de Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, em artigo publicado por Viandanti, 10-02-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto (www.ihu.unisinos.br).

Eis o artigo.

O primeiro papa filho do Concílio Vaticano II não podia deixar de ter uma relação particularmente “solta” e “imediata” com aquela nível da experiência cristã que é primário não apenas por estar enraizado no plano corpóreo e simbólico da vida eclesial, mas também porque o Concílio O Vaticano II teve primeiro como sua primeira produção documental a Constituição litúrgica e, depois, como sua primeira consequência institucional, precisamente a “reforma litúrgica”.

O retorno à fonte conciliar

O papa que relançou com poder o desígnio de reavaliação conciliar da Igreja Católica não podia deixar de dar um novo passo, precisamente no plano litúrgico. O valor dessa “mudança de ritmo” também deve ser avaliado levando em consideração dois fatores adicionais.

A liturgia é um tema que não parece ser central na sensibilidade do primeiro papa jesuíta. Mas é um tema sobre o qual, de uma forma singularmente intensa, concentraram-se os “desígnios de restauração” dos últimos 20 anos.

De certo modo, nesses sete anos de pontificado já, o magistério sobre a “ação ritual” do novo pontífice também viu, ao lado do grande “retorno à fonte conciliar” – proposto por Francisco não apenas com os seus atos oficiais, mas sobretudo com o seu modo de celebrar e pregar cotidiano – uma resistência que se manifestou, clamorosa e precisamente, no prefeito da Congregação para o Culto e os Sacramentos.

Gostaria de apresentar, acima de tudo, o “estilo litúrgico de Francisco”, depois as principais intervenções que dizem respeito à liturgia e, por fim, a tensão não resolvida com a Congregação para o Culto Divino.

O estilo litúrgico de Francisco

O primeiro dado sobre o qual é bom se debruçar é a “práxis litúrgica ordinária” do novo papa. Francisco é o primeiro papa que, tendo se formado integralmente na (e mediante a) liturgia conciliar, pode começar o dia com uma celebração comunitária, na qual profere uma homilia, diante e em conjunto com uma assembleia de povo.

As missas em Santa Marta são o espelho mais fiel de uma relação com a celebração litúrgica plenamente conciliar, sem qualquer nostalgia. O normativo é o modelo do pároco, até mesmo para o papa. Não existe mais a “capela privada” no Palácio Apostólico, onde se celebra sem povo e quase “privadamente”.

Essa passagem é simbolicamente fortíssima. E é o fruto de uma condição “geracional”, à qual, em geral, não se presta atenção. O Concílio, também o Concílio litúrgico, tornou-se “pai” e gerou filhos. Jorge Mario Bergoglio é “filho do Concílio”, acima de tudo por um motivo: como todos os filhos, ele não carrega sobre si a responsabilidade dos pais. São os pais que se sentem responsáveis pelos filhos. Os filhos, não. E são filhos justamente por isso!

A diferença de datas biográficas entre o último papa “pai do Concílio” (J. Ratzinger) e J. Bergoglio é decisiva aqui: Ratzinger nasceu em 1927 e foi ordenado presbítero em 1951, aos 24 anos; Bergoglio nasceu apenas nove anos depois, em 1936, mas foi ordenado presbítero em 1969, aos 33 anos.

Entre as duas ordenações, há quase uma geração. Nessa diferença, o Concílio Vaticano II se insere como mediação fundamental. O imaginário eclesial, a autoconsciência ministerial, a valorização da liberdade de consciência, a correlação com as outras confissões e fés, e a imediaticidade ritual estão marcados, em Francisco, “na carne e no sangue” pelas palavras e pelos decretos conciliares.

Uma abordagem dinâmica

Mesmo na primeira aparição, na sacada de São PedroFrancisco indicou claramente uma dupla escolha: a simplicidade do aparato e a referência ao sujeito “povo” no ato ritual. Assim, desde os primeiros discursos, apareceu a exigência de “não domesticar o Espírito”, que se expressou no Concílio Vaticano II, cuja reforma da liturgia é definida como “evento irreversível”.

Torna-se irreversível, assim, uma “abordagem dinâmica” da Tradição, que não é um museu, mas sim um jardim. Quanta diferença das referências ao Concílio que, até alguns meses antes, preocupavam-se, acima de tudo, em redimensioná-lo, domesticá-lo, desativá-lo. Não, o Concílio permite voltar à Igreja como a um jardim.

Nesse jardim, é possível “pedir ao povo que reze a Deus Pai para que abençoe a eleição do novo papa”; é possível que, na primeira missa celebrada no Vaticano, o novo papa se coloque no fundo da Igreja e cumprimente, um a um, todos os fiéis que saem. É possível que, na missa in coena domini, celebrada em uma prisão, lavem-se os pés de mulheres presas muçulmanas e que, a partir dessa nova evidência, seja oficialmente reformada a rubrica do missal que disciplina tal celebração.

As intervenções magisteriais

Nesse jardim, pode florescer uma nova confiança nas “línguas vernáculas”, que não são a tradução do latim, mas sim formas originais de experiência e de expressão do mistério pascal: por isso, os critérios da tradução devem respeitar a riqueza das novas línguas (Magnum principium, 2017); no jardim da Igreja, a memória de Maria Madalena adquire o nível de festa, enquanto é suprimida aquela Comissão Ecclesia Dei, que, desde 2007, havia se tornado um perigoso centro curial, especializado na transformação do jardim eclesial em museu tradicionalista.

Por fim, foi criado um domingo “da Palavra de Deus” (correspondente ao III Domingo do Tempo Comum – Aperuit illis, 2019) para valorizar a experiência de escuta da palavra, em um contexto de relações com a tradição judaica e com as outras confissões cristãs.

Tudo isso ocorre, porém, no contexto de uma condição bastante singular: o papa lança continuamente iniciativas para dinamizar a “festa ritual”, enquanto, a partir da direção da Congregação do Culto, ou seja, do dicastério mais diretamente interessado na liturgia, vêm sinais dissonantes. A recepção retardada dos atos a serem assumidos ou a interpretação invertida dos atos já assumidos é o sinal de uma tensão não resolvida por enquanto, que quase determina uma condição de “impasse”.

A resistência do modelo pré-conciliar

Acredito que, para interpretar esse “impasse”, devem-se considerar as dinâmicas da relação entre as iniciativas papais e a sua gestão por parte da Congregação para o Culto Divino. Com efeito, a Congregação para o Culto deveria expressar confiança e verdadeira esperança no Concílio Vaticano II.

Se se confia na liturgia do Vaticano II, se se considera irreversível a reforma litúrgica, se se põe fim ao arriscado “paralelismo ritual” entre formas pré-conciliares e conciliares, como é possível que as iniciativas que Francisco tomou diretamente no campo litúrgico (modalidade do lava-pés, festa de Maria Madalena, novos critérios de tradução…) tenham encontrado uma recepção tão fatigante, quando não uma interpretação decididamente invertida?

O exemplo papal é límpido e linear. Mas o enraizamento de uma liturgia “participada”, que tem como sujeitos Cristo e Igreja, não procede apenas “por exemplos”. Atos institucionais capilares, necessariamente mediados e acompanhados pelos cuidados da Congregação, são passagens inevitáveis e decisivas. Se faltarem, a liturgia permanece imóvel. E, se a liturgia não se move, a Igreja não se move. Porque a liturgia continua sendo, também desse ponto de vista, fons et culmen de qualquer outra ação eclesial.

A reforma da Igreja nunca será possível enquanto permanecer de pé a forma de expressão e de experiência – junto com o aparato sentimental e ideológico – de um modelo da Igreja que o Concílio Vaticano II reconheceu como superado, pedindo a sua atualização explicitamente e com autoridade.

Aqueles que querem deslegitimar Francisco

“O Papa Francisco tornou-se um alvo privilegiado. Críticas contra os últimos papas já haviam sido levantadas, mas Francisco é deslegitimado, suspeito de não ser fiel à tradição católica, de se curvar ao mundanismo predominante, de diluir a fé de acordo com as expectativas do mundo. É verdade que ele diz que está em paz e que, como homem de oração, escolhe o silêncio em vez de responder violentamente à violência desencadeada contra ele, mas essa situação faz com que muitos cristãos sofram e corre o risco de escandalizar.”

A opinião é do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado na revista Vita Pastorale, de novembro de 2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto (www.ihu.unisinos.br).

Eis o texto.

Passados poucos meses da eleição de Francisco, quando já se podiam perceber as principais características do seu pontificado, eu havia dito, escrito e repetido que, se na vida eclesial, se reforçasse o primado do Evangelho e se o papa tentasse realizar uma reforma, uma conversão da Igreja, então os poderes demoníacos, sentindo-se colocados contra o muro, se desencadeariam. Não chegaria um tempo de paz, uma situação idílica em que o Evangelho brilharia com mais eficácia, mas, ao contrário, apareceria o sinal da cruz. Assim aconteceu.

Já vivemos em um estado de guerra, em que a violência verbal, calúnias, acusações parecem aumentar a cada dia. Devemos reconhecer que essa guerra é a guerra do diabo que, segundo as Escrituras, traz o nome de divisor, acusador, mentiroso. É uma guerra que – pelo menos aqui, nas terras da antiga cristandade – não é combatida por inimigos externos ao cristianismo, mas sim por católicos contra outros católicos.

Na vida comum da Igreja, já é costume buscar a oposição, tachar de heresia aqueles que simplesmente têm uma palavra cristã diferente, acusar moralmente aqueles que são percebidos e classificados como adversários. Calúnias, intrigas, fofocas que querem difamar, agredir e deslegitimar aqueles que exercem uma autoridade na Igreja.

Nos últimos meses, frequentemente tenho ouvido exclamações como estas: “Não aguentamos mais! Agora já temos o suficiente! Quando vai acabar essa febre de procurar bodes expiatórios?”. Hoje, são especialmente os presbíteros que são atacados, difamados e postos em um estado de constante suspeita. Por responsabilidades graves e delituosas de alguns, todos acabam sendo atingidos.

E eu sei que, nessa guerra – travada principalmente nos campos de batalha da mídia, da internet e das redes sociais –, nós mesmos, como homens e mulheres da Igreja, acabamos favorecendo um efeito multiplicador dos escândalos. Não se trata de esconder a verdade, mas de se negar ao jogo das expectativas escandalizadas que amaciam o ar.

Nessa guerra, o próprio Papa Francisco tornou-se um alvo privilegiado. Críticas contra os últimos papas já haviam sido levantadas, mas Francisco é deslegitimado, suspeito de não ser fiel à tradição católica, de se curvar ao mundanismo predominante, de diluir a fé de acordo com as expectativas do mundo. É verdade que ele diz que está em paz e que, como homem de oração, escolhe o silêncio em vez de responder violentamente à violência desencadeada contra ele, mas essa situação faz com que muitos cristãos sofram e corre o risco de escandalizar.

O clima é tal que uma mera suspeita – não a acusação de um delito punível pela lei do Estado – de comportamento imoral de um presbítero já pode perturbar a vida de muitos deles e levá-los a situações extremas, impossibilitados de se defender diante de uma acusação pública. Parece haver uma corrida para procurar culpados.

O papa não se defende, mas pede que os católicos vigiem diante dessa ação diabólica que quer provocar divisão, cisma, contraposição dentro da Igreja. Ele pede para rezar. A urgência para os católicos é a escuta do Evangelho, que pede para não esconder o mal, mas para usar de misericórdia para com aqueles que o cometeram. Não pede para minimizar ações delituosas perpetradas por ministros da Igreja, mas para tentar impedir a sua reiteração com todos os meios legítimos. Não pede para castigar os pecadores, mas para ajudá-los a recuperar a dignidade humana pisoteada por eles mesmos.

Se “tolerância zero” significa que não se pode admitir ou esconder delitos, isso está de acordo com a justiça e a parrésia, mas, se significasse “nenhuma misericórdia ao pecador”, então não seriam palavras cristãs.

Um bispo emérito, meu grande amigo há décadas, Gérard Daucourt, escreveu um livreto com um título significativo: Chi è senza peccato? Anche preti e vescovi hanno bisogno di misericordia [Quem não tem pecado? Até padres e bispos precisam de misericórdia]. Sim, porque os presbíteros já parecem ser os únicos que não merecem misericórdia.

Porém, nós, cristãos, conhecemos bem o mandamento. Não levantarás falso testemunho contra o teu próximo. A partir dessa injunção, devemos aprender a lei da palavra que pede liberdade, sinceridade, lealdade. Caso contrário, a própria palavra degenera e cria corrupção e morte nas relações interpessoais.

Todos conhecemos esse risco por tê-lo experimentado: nas nossas vidas, em família, nas histórias de amor, na amizade, na vida social, na vida eclesial… A maledicência já é falso testemunho contra os outros: não há necessidade de um contexto jurídico para acusar, caluniar, instigar suspeitas, difamar o outro. Vício cotidiano, que não percebemos, mas que é um vício grave, que afeta fortemente as relações, contradizendo o bem que pode ser reconhecido e atestado.

Maledicências e calúnias sempre deixam vestígios, como lembra o clássico adágio de “O Barbeiro de Sevilha”: “Caluniem, caluniem: algo permanecerá”. Na Igreja, esse falatório doentio parece poluir as palavras intercambiadas todos os dias. E, quando a mentira se espalha – especialmente através da mídia –, não só a confiança é ferida e pisoteada, mas também dá lugar à desconfiança, ao medo do outro.

Nós, cristãos, nunca devemos esquecer que, quando pronunciamos uma palavra sobre quem é irmão ou irmã, devemos sempre dizê-la pelo outro, e não contra o outro. Nesse sentido, pode até ser maléfico dizer a verdade se esta impedir a caridade, em vez de favorecê-la: a sinceridade verbal pode se perverter em mentira ética.

Às vezes, por exemplo, silenciar o pecado cometido por outro e, portanto, usar de misericórdia para com ele – se tal pecado não for favorecido pelo nosso silêncio – não é mentira, mas obediência à verdade como fidelidade e misericórdia. Dietrich Bonhoeffer escrevia: “Quem pretende ‘dizer a verdade’ sempre e em todo o lugar, a todo o momento e a qualquer pessoa, é um cínico que só exibe um simulacro morto da verdade… Na realidade, destrói a verdade viva entre os homens. Ofende o pudor, profana o mistério, viola a confiança, trai a comunidade em que vive e sorri com arrogância sobre os destroços que causou… Exige vítimas e se sente como um deus acima das fracas e frágeis criaturas, mas não sabe que está a serviço de Satanás” (Ethica, p. 309).

Sim, hoje na Igreja alguns invocam a sinceridade e a transparência. E, em nome dessas exigências, acusam o outro de pecado, mesmo quando este não é um crime de acordo com as leis do Estado.

Intransigentes? Justos inveterados? Não, apenas espiões do pecado alheio, que nunca conheceram o próprio pecado. E, como autodenominados justos, veem nos outros apenas pecadores. Essa guerra eclesial nasce da banalidade do mal: uma fofoca, uma suspeita, algumas palavras vãs se tornam um incêndio, como nos lembra o apóstolo Tiago: “A língua é um fogo, o mundo da maldade. A língua, colocada entre os nossos membros, contamina o corpo inteiro, incendeia o curso da vida, tirando a sua chama do inferno” (Tg 3, 6).

Não é esse o fogo purificador de que precisamos hoje, dentro da Igreja e nas suas relações com a sociedade. É o fogo do amor que devemos acender e guardar, o fogo que impede que a caridade se esfrie, que ilumina a vergonha sem aniquilar o pecador. Um fogo que é o fogo do Espírito.